Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apesar do teleprompter

Quando, em plena semana da eleição, você encontra um historiador de presidentes americanos da Universidade Princeton, de New Jersey, num hotel da ensolarada Los Angeles? Quando o historiador tem paixão por música e está lançando um livro sobre os 125 anos da lendária gravadora Columbia Records, lar de talentos como Billie Holiday, Leonard Bernstein e Bob Dylan, este, objeto de uma biografia escrita pelo nosso historiador de presidentes, Sean Wilentz. Cansada da cacofonia de um ano e meio de campanha eleitoral rancorosa, confessei ao entrevistado que gostaria de entrevistá-lo sobre Bob Dylan. Ele prometeu um segundo turno quando voltar à costa leste.

Em outubro, Wilentz publicou um ensaio na revista New Republic sob o título A Miragem, uma breve história dos fracassos do pós-partidarismo de George Washington a Barack Obama. Autor, entre outros, de The Rise of American Democracy: Jefferson to Lincoln (A Emergência da Democracia Americana: de Jefferson a Lincoln), de 2005, ele lembra que um dos atrativos da candidatura de Obama em 2008 era sua promessa de liderar acima das divisões partidárias.

A ducha de água fria não tardou, na forma de uma oposição radical insuflada pelo Tea Party. Mas Wilentz diz que a história americana não é lisonjeira com a ideia olímpica do líder acima do bem e do mal partidário. Na verdade, afirmou, toda vez que políticos americanos presumiram que sua sabedoria os qualificava para não descer às minúcias da negociação com partidos, o resultado foi uma desconexão fatal entre os líderes e os cidadãos.

Na conversa com o “Aliás”, Sean Wilentz lembra que o novo perfil demográfico manifestado nas urnas, dominado especialmente por mulheres jovens e com formação educacional e por latinos, a minoria que mais rapidamente cresce no país, oferece uma oportunidade a Barack Obama para contrabalançar os avanços da direita radicalizada. Ele vê também, na campanha mais cara da história americana, uma derrota do financiamento ilimitado. “Você precisa de um candidato decente”, diz, “e a orgia de dinheiro, em alguns casos, provocou represálias do eleitor.”

Que país é este que Obama encontra no segundo mandato?

Sean Wilentz – Houve um repúdio ao extremismo de direita, especialmente por parte das eleitoras, como na disputa do Senado em Indiana e Missouri, onde dois candidatos republicanos foram derrotados depois de declarações radicais sobre o aborto em casos de estupro. Se considerarmos a presença de mulheres e latinos nas urnas, a direita americana não deve estar se sentindo muito bem. O alto índice de desemprego bastava para pôr em risco a reeleição de Obama. Mas Mitt Romney se atolou nas primárias. Deslocou-se tanto para a direita que não pôde fazer o caminho de volta para o centro na eleição geral. Agora, Obama tem a oportunidade de liderar como um presidente de centro-esquerda.

Mas os republicanos mantém o controle da Câmara de Representantes.

S.W. – Se a Câmara se comportar de maneira obstrucionista, Obama tem de falar direto com o público, é uma questão de liderança presidencial. Ele chegou ao poder acreditando no pós-partidarismo, no território comum do interesse nacional, mas enfrentou uma realidade muito dura.

Barack Obama não participou das campanhas democratas para o Congresso. Essa convicção no pós-partidarismo influenciou sua decisão de se manter distante das eleições para o Senado e a Câmara? 

S.W. – Sim, e considero isso um erro que ele cometeu. Obama passa essa impressão de ser autocontido e de ter uma conexão menos decisiva com o Partido Democrata. Ele se beneficia do apoio do partido, mas o contrário não acontece. Nesse sentido, Obama sente um desconforto, como se a política partidária estivesse abaixo dele. Acho que os democratas precisam se reconstruir, apesar da distância do presidente.

Nesse contexto, a entrada de Bill Clinton, o consumado líder de partido, com aquele discurso na convenção democrata, foi crucial?

S.W. – Sim, Clinton adora política. Quer estar numa sala cheia de interlocutores, gosta do aspecto táctil da campanha. A ajuda que deu a Obama foi enorme. Se havia uma fraqueza na campanha antes da convenção, era, para usar uma expressão que detesto, falta de narrativa. Com um único pronunciamento, Clinton forneceu à campanha dos democratas histórias eloquentes para contar. Ele é mestre em abordar um problema, fala diretamente com o público. Já Obama é mais o orador: faz um belo discurso, olhando para o teleprompter. Parece preferir a figura olímpica do professor à do político.

Obama foi tratado com agressividade e até um certo desrespeito pela oposição. Mas isso não refletiria também certa perda de autoridade do cargo de presidente na visão do povo?

S.W. – É uma coisa que tem fluxo e refluxo na história americana. Tanto a Guerra do Vietnã quanto o escândalo de Watergate (que terminou com a renúncia do presidente Richard Nixon, em 1974) trouxeram crises agudas de legitimidade para os dois partidos. O público passou a desconfiar mais do poder. Mas há outra desconfiança, dos próprios políticos, bem mais antiga, calcada na noção da política como atividade inferior e corrupta, da qual os homens mais sábios preferem manter certa distância. Desconfio que Obama sinta esse desdém não declarado por esse tipo de política, não porque seja arrogante, mas porque não quer se rebaixar ao nível dos políticos comuns.

Por que a iniciativa doméstica mais importante do primeiro mandato de Obama, a reforma do seguro-saúde, continua impopular?

S.W. – Sabemos agora que a lei da reforma do seguro-saúde vai sobreviver. Com Mitt Romney, a reforma teria sido simplesmente desmantelada. E, apesar das pesquisas que apontam a impopularidade da reforma, posso prever que em 2014, à medida que dispositivos previstos na lei entrarem em vigor, ela vai se tornar popular. Por enquanto, as pessoas expressam opiniões desinformadas. Há essa desconfiança de que parece intervenção excessiva do governo.

O senhor concorda com a conclusão de que as mulheres e os latinos saíram dessa eleição vitoriosos?

S.W. – Sim, as mulheres repudiaram o Partido Republicano. A diferença de opinião entre os gêneros é enorme, especialmente em se tratando de mulheres de menos de 45 anos. Nós, americanos, evoluímos para costumes mais abertos em relação à sexualidade. Temas como remuneração igual para homens e mulheres não são mais controversos. E o que fizeram os republicanos? Radicalizaram. Antes eram contra o aborto. Nessa campanha, passaram a atacar o controle da natalidade. As mulheres viram isso, com razão, como uma interferência na sua saúde. Obama teve apoio inclusive de mulheres católicas, mesmo aquelas que possam ter resistência ao aborto. No caso da imigração, os republicanos têm sido ridículos. Veja que Ronald Reagan anistiou 3 milhões de imigrantes ilegais em 1982. Hoje seria crucificado. E a direita não consegue compreender que, em outras culturas, a mistura do público com o privado se dá de maneira diferente. Os republicanos aplicam sua agenda política em doses iguais para qualquer grupo demográfico.

A polarização partidária, que foi tão denunciada na campanha, deve continuar? 

S.W. – Sim, acredito que o problema continuará na mesma intensidade, pelo menos em questões econômicas. Veja como os republicanos radicalizaram na questão dos impostos. Quanto à imigração, é possível que, para sobreviver como partido, os republicanos sejam um pouco mais razoáveis. John Boehner, o líder republicano na Câmara, é um conservador que está cercado de radicais, ideólogos malucos. Paul Ryan, o candidato derrotado a vice de Romney, que se reelegeu para a Câmara, não é lunático, mas se alinha bem com o Tea Party. Essa polarização começou de fato com Ronald Reagan, em 1988. Ele não tinha um sucessor lógico no movimento conservador. O partido trouxe George Bush pai, que era mais centrista. Para conseguir ser indicado candidato, Bush fez campanha mais à direita. 

Na mesma tática usada por Mitt Romney? 

S.W. – Com certeza. Ambos começaram moderados e foram arrastados por forças radicais. Mas Goerge Bush pai, enfrentando uma recessão, descumpriu a promessa de campanha e elevou impostos. Newt Gingrich liderou a revolta que culminou na eleição legislativa já no governo Clinton e aí se consolidou essa intransigência da direita, que temos hoje. Clinton foi alvo de tentativa de impeachment porque manobrou muito bem contra os republicanos para se reeleger. Esse drama devia ter sido concluído de vez com a eleição do democrata Al Gore, em 2000, mas ele fez uma campanha fraca. A Suprema Corte deu a vitória a George Bush filho e, com o 11 de Setembro, Bush filho se tornou o presidente guerreiro. Mas veja que Bush também acabou em desgraça com a direita por vários motivos. Não ganhou a guerra do Iraque, passou uma importante reforma do Medicare que aumentou o subsídio para a compra de remédios, tentou fazer uma reforma de imigração e acabou por fazer passar o plano de resgate dos bancos com o crash de setembro de 2008. Foi o resgate que inspirou o Tea Party.

Uma crítica feita pelos adversários do presidente é que é difícil definir seu governo em termos de política externa.

S.W. – É preciso dar crédito a um presidente que herdou duas guerras em meio a um colapso econômico. Mas, dito isso, acho que a tendência de Obama é reagir, mais do que liderar, em política externa. E a conjuntura mundial ofereceu situações sem precedentes, como a Primavera Árabe. Se há um aspecto definido do primeiro mandato – e, aqui, o papel de Hillary Clinton nos bastidores foi muito importante –, é afastar a ideia de que um presidente democrata seja passivo diante de situações como a Líbia. Mas não vejo uma Doutrina Obama até agora. Sabemos que ele vê a transformação da importância dos Estados Unidos no mundo e ainda considera o país uma superpotência, mas numa relação de maior igualdade com outras potências. Agora que não vai mais fazer campanha, dependendo do que acontecer no Irã e na Síria, as duas situações mais agudas que ele enfrenta, pode enunciar uma política externa que produza um legado seu. 

A vitória de Obama representa uma confirmação da importância do governo federal na vida dos americanos?

S.W. – Não acredito nisso. E também não vejo movimentos ideológicos expressivos entre os democratas. Vejo indivíduos capazes de se expressar com força e ganhar relevância, como Elizabeth Warren, que derrotou o senador Scott Brown em Massachusetts. Ela estreia na política saindo do conforto de Harvard. Acho que vamos ouvir novas vozes. A esquerda democrata sempre foi problemática. Quando não consegue o que quer, apela para soluções como votar em Ralph Nader, o candidato alternativo em 2000. Não espero ideologia, e sim vigor. Os eleitores não fabricam o mandato, o presidente faz o seu. Esse é o significado dessa eleição. Os eleitores dão a vitória e o presidente lidera. E acho que Obama amadureceu. Estou otimista.

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[Lúcia Guimarães é jornalista, em Nova York]