Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Seqüenciamento de genoma, panacéia de todos os males

No Instituto de Biociências da USP, tradicionalmente os veteranos do curso promovem uma aula inaugural para calouros de Biologia. Essa aula é repleta de bobagens biológicas e não-biológicas, e sempre foi uma maneira divertida e inofensiva de receber os calouros.

Este ano aceitei, com muita honra, o convite para ser o professor da ‘aula-trote’. Com outro colega, meu contemporâneo na graduação em Biologia, nos divertimos inventando absurdos para anunciar nessa aula, com a maior seriedade.

Um dos tópicos que arrancaram mais risadas dos veteranos, que também assistiam à aula, foi o que chamamos de ‘Genética de aves de altitude’. Essa suposta linha de pesquisa do Instituto teria como objetivo o melhoramento genético de urubus para que essas aves não voassem mais tão alto, evitando assim o choque com aeronaves. É claro que, por se tratar de uma aula-trote, a explicação tinha requintes de non sense, como a captura dos urubus em pleno vôo por pesquisadores-pára-quedistas.

No entanto, um dos alunos ingressantes me surpreendeu com uma pergunta. ‘Se eu estou entendendo bem, professor’, disse ele, ‘vocês querem fazer melhoramento genético de urubus’. ‘Isso mesmo’, respondi. ‘Mas não seria mais fácil’, atalhou, ‘buscar alguma solução nas aeronaves, para que os urubus não entrem dentro das turbinas?’ É claro que ele tinha percebido o absurdo do raciocínio, mas eu não podia dar o braço a torcer. Respondi que até agora os engenheiros aeronáuticos não tinham conseguido uma solução aerodinamicamente viável etc. etc. e, como o problema persistia, os biólogos resolveram entrar em ação. O menino meneou a cabeça, como quem diz ‘não é possível’.

E o tratamento da água?

Trotes à parte, ontem fui surpreendido pela notícia de que pesquisadores brasileiros estão sendo festejados por terem identificado genes do verme Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose, que poderiam servir como vacina gênica contra essa doença. Conforme o que foi divulgado, camundongos vacinados retêm em seus corpos por volta de 50% a menos de vermes. Como convém às pesquisas científicas de destaque, o resultado acabava de ser publicado em renomada revista internacional, e a devida patente dos genes já estava sendo requerida nos EUA.

A pesquisa mereceu destaque sobretudo porque a doença, conhecida também como ‘barriga d’água’, atinge 10 milhões de pessoas só no Brasil. É típica de países subdesenvolvidos e de locais sem saneamento básico, pois o verme chega ao corpo humano após o indivíduo entrar em contato com as chamadas ‘lagoas de coceira’. Pode-se pegar a doença tomando banho na água infectada, ou meramente pisando em poças nas quais haja o caramujo que abriga o verme durante parte de seu ciclo de vida.

A pesquisa brasileira baseou-se no seqüenciamento do genoma do verme, técnica que atualmente parece ser a panacéia contra todos os males, e obviamente consumiu milhões de dólares dentro e fora do Brasil. Contudo, a pesquisa parece não ter como objetivo principal erradicar a doença, e em certa medida segue o mesmo raciocínio absurdo do melhoramento genético de urubus. Não seria mais fácil investir em outro ponto para acabar com o problema?

Sendo a doença uma questão basicamente de saneamento, não seria mais fácil investir no tratamento da água? Ainda que isso não fosse possível, não seria mais fácil (e infinitamente mais barato) investir em agentes que pudessem esclarecer a população quanto à relação de causa e efeito entre nadar em ‘lagoas de coceira’ e ficar barrigudo? Mesmo na área de pesquisa, não valeria a pena investir no estudo do caramujo, e descobrir maneiras de reduzir suas populações, de forma parecida com o que tem sido feito em relação ao mosquito da dengue? Parece que a solução do problema está longe do genoma do verme, cujos melhores resultados chegam apenas a reduzir 50% da infecção.

De pára-quedas

Isso mostra que a motivação maior dos cientistas não é erradicar a doença, e sim fazer a pesquisa da moda, publicar artigos, fazer uma carreira brilhante resolvendo problemas que não existem. Poder-se-ia argumentar que se trata de pesquisa básica, na qual estão sendo desenvolvidas técnicas ou idéias que lançariam luz nas teorias da biologia. Entretanto, nem desse ponto de vista é possível salvar tal tipo de pesquisa, pois o seqüenciamento é meramente uma técnica que, em sua maior parte, pode ser executada por qualquer pessoa bem treinada, e na qual não deveríamos desperdiçar nossos graduandos e pós-graduandos, que são extremamente onerosos para o Estado. Esses deveriam estar pensando em problemas reais, básicos ou aplicados, e não buscando publicar artigos, fazer carreira em cima de seqüenciamento de genomas sem objetivo.

Mas o pior de toda a história é que as agências brasileiras de fomento à pesquisa, como a Fapesp e CNPq, têm seguido essa lógica absurda do carreirismo científico sem objetivo: projetos que incluem os termos ‘genoma’ ou ‘seqüenciamento’ parecem ter chances maiores de conseguir financiamento, mesmo que seus objetivos não sejam muito claros.

Esse tipo de pesquisa incrementa os ‘indicadores científicos’ do Brasil, como número de doutores ‘formados’, artigos publicados etc. Mas não atende aos interesses do nosso país.

E a imprensa tem sido muito pouco crítica em relação a essa situação. O sensacionalismo impera, decifrar o genoma é a panacéia. Será que nunca ninguém parou para pensar que já deciframos muita coisa, mas a solução ainda está longe?

Vou escrever um projeto sobre a ‘Genética de aves de altitude’. Quem sabe não ganho dinheiro para saltar de pára-quedas atrás de urubus?

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Biólogo e professor de Ciências