Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regina Lima

“É muito recorrente fazer a distinção entre os conceitos do interesse do público e o interesse público, nas discussões sobre as expectativas do público em relação à mídia. No caso da televisão, em que essas discussões são mais frequentes, o interesse do público é interpretado como a soma das preferências subjetivas dos telespectadores na escolha dos programas a que assistem. O interesse público, por sua vez, é caracterizado por um conjunto de princípios abstratos associados ao fortalecimento dos valores que se propõem que a mídia promova em prol do bem-estar geral. O conteúdo dos programas trataria dos bens imateriais indivisíveis que pertencem a todos e fazem parte do bem coletivo.¹

Os conhecimentos mobilizados para sondar o interesse do público partem das ciências da economia e da psicologia. O comportamento dos telespectadores vira o objeto das investigações e os atos de ligar e desligar a televisão e mudar de um canal para outro constituem as variáveis fundamentais. Já os conceitos do interesse público, em contraste, são derivados da filosofia e da ciência política, de onde vêm os modelos dos tipos de sociedade que as pessoas como cidadãos deveriam almejar. Se desejarmos uma sociedade em que prevalecem a participação, a justiça, a transparência, a diversidade, a tolerância e a não exploração, por exemplo, deveríamos insistir que a mídia se oriente por esses valores, independentemente de nossas preferências pessoais em termos da programação e do conteúdo seja qual for a mídia. A ética pura é que deveria comandar.

Na verdade, a distinção entre os dois conceitos é em grande parte espúria. Primeiro, porque a mídia televisiva, ao propagar seus sinais, se apropria de um bem coletivo, que é o espaço aéreo dividido em bandas de frequências. Como o espaço aéreo é um bem coletivo que não comporta a transmissão simultânea de sinais na mesma frequência ou em frequências muito próximas, há a necessidade de o Estado disciplinar a distribuição desse espaço por meio da concessão de licenças para a utilização exclusiva de faixas dele. É como em uma estrada de rodagem em que a presença do Estado tornou-se indispensável para controlar o trânsito. O mercado da mídia, portanto, deve sua própria existência à atuação do Estado, que, na conceituação hegeliana, é a máxima representação do interesse público ou do bem-estar coletivo.

Segundo, porque a averiguação do interesse do público por meio dos índices de audiência é um jogo de cartas marcadas pelas opções disponíveis no momento e pela cultura de consumismo que impregna a maioria delas em um mercado historicamente dominado pelas empresas privadas. Finalmente, os estudos sobre os processos de escolha coletiva – sistemas eleitorais, por exemplo – revelam que há vários procedimentos que podem ser utilizados para medir as preferências do público, os índices de audiência sendo apenas um deles.

Para o liberalismo clássico, a interferência do Estado nestes casos deveria ser a mínima necessária, não devendo passar do ponto de garantir a segurança do trânsito. Fora disso, as empresas deveriam gozar de plena liberdade para atuar de acordo com seus interesses. Essa posição costuma marcar as manifestações das empresas da mídia privada e suas associações de classe no Brasil.

A Constituição brasileira de 1988, porém, define outras responsabilidades do Estado em relação à comunicação pública, além dos limites minimalistas do pensamento liberal. E veja bem: a Constituição não foi resultado de um exercício do pensamento abstrato nem imposta por uma autoridade arbitrária. Ao contrário, ela foi produto do jogo de interesses envolvidos na sua elaboração na Assembleia Constituinte. O que significa que ela foi gerada pela atuação do ‘interesse do público’ na esfera política, que se expressava, dentre outros meios, por meio dos blocos organizados que participaram nas deliberações. Nas versões utilitárias e pluralistas modernas do pensamento liberal, convém notar, o comportamento dos grupos de interesse ou de pressão na esfera política é reconhecido tanto quanto o dos indivíduos na esfera do mercado e o interesse do público pode se voltar tanto para a formulação das regras do jogo, isto é, o contrato social, quanto para a satisfação de demandas imediatas.

Nos artigos 220, 221 e 223, a Constituição estabelece que os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio; manda que a produção das emissoras de rádio e televisão deem preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, promovam a cultura nacional e regional e estimulem a regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e manda que na outorga ou renovação de concessões seja respeitado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. As empresas públicas de mídia vêm ao atendimento de vários desses princípios de interesse público oriundos do interesse do público, como pode ser verificado no Artigo 2º da lei que criou a Empresa Brasil de Comunicação.

No mercado dominado pelas empresas privadas, as mídias públicas ainda enfrentam barreiras para transformar o interesse público, como é definido na Constituição e nas instituições criadas para implementá-lo, no interesse do público. É um processo que depende da educação e da cultura, nas quais as transformações costumam ser lentas e graduais. Ao mesmo tempo, ele depende do exercício dos próprios valores que as mídias públicas se propõem a fomentar. Por esse motivo, quanto maior a participação pública na cobrança da aplicação dos princípios que expressam os objetivos do interesse público na comunicação social, melhor.

Até a próxima semana.

1- http://www.oxisdaquestao.com.br/admin/arquivos/artigos/2012_7_31_14_31_7_54154.pdf”