‘No meio da crise política, a Imprensa virou alvo. Os que aparecem como acusados falam em massacre e em conspiração. Alguns acusadores falam em benevolência e falta de firmeza. Ninguém fala em espelho.
É comum. Mesmo entre os maiores defensores da liberdade, muitas vezes ouvi coisas do tipo: ‘Como é que vocês abrem espaço para um assunto como esse?’ O assunto pode ser legítimo, mas, se fere a suscetibilidade de um determinado grupo, ele quer vê-lo banido do noticiário.
Todos têm uma tendência de ver o espaço para suas idéias sempre mais reduzido do que o espaço para as idéias de seus adversários. Um estágio nas redações do país acabaria com essa ilusão autoritária.
A cada minuto, os jornalistas devem estar prontos para ter acesso ao que acontece no Brasil e no mundo. Devem ser capazes de captar os fatos, escolher aquele com relevância para ser divulgado, entendê-lo, decodificá-lo e recodificá-lo numa linguagem acessível a multidões. É um processo contínuo, sem trégua, até o fechamento.
A regra é aquela exigida pelo público: cobrir os eventos com correção, abordando todos os ângulos e dando voz a todas as personagens. Mas sempre há quem lembre que exercitar permanentemente a crítica para evitar a intromissão da nossa subjetividade, e a conseqüente falta de isenção, é impossível num processo frenético como o jornalístico. Mas será mesmo que nós jornalistas estaremos condenados a oferecer ao público informação contaminada, material enviesado?
Não, eu digo não com tranqüilidade. Porque o mesmo ambiente e o mesmo processo que tornam impossível um exercício auto-reflexivo contínuo de crítica aos nossos valores produzem a vacina contra a falta de isenção, contra a contaminação do noticiário pelos valores do editor, pelo olhar do editor: o jornalismo é sempre um trabalho coletivo. Não existe o jornalismo de uma pessoa só. A vacina é então a multiplicidade de cabeças que fazem um jornal.
No momento em que um fato chega à redação, o processo tem início. Quem o ‘vende’ ao editor já carrega a ‘venda’ com o seu olhar, com os seus valores. Mas logo a vacina entra em ação. O grupo que ouve a ‘venda’ filtrará os valores dos colegas com os seus próprios valores, neutralizando o efeito maléfico que o primeiro poderia ter. É muito comum que se ouça de primeira um ‘isso não vale’, para, logo a seguir, ver-se instalar uma discussão rápida, mas intensa, sobre se ‘isso vale ou não vale mesmo’, num debate extremamente produtivo. A um bom editor, mesmo àqueles cheios de si, basta ouvir um ‘eu acho que vale e você vai errar se não publicar’ para que uma luz amarela se acenda: ‘Será que vale, será que não vale?’
Não se trata de indecisão; trata-se da consciência de que ninguém sabe tudo sozinho, de que o faro para o que é notícia muitas vezes é o faro para saber ouvir as opiniões daqueles que estão ao seu redor. Decidido que um assunto ‘vale’, inicia-se o processo de ‘como’ publicá-lo: com destaque ou sem destaque, grande ou pequeno, com imagem ou sem imagem, na primeira página ou nas páginas internas? Tudo isso vem acompanhado de uma discussão entre cabeças diferentes.
Não, não se trata de democratismo. Nada em jornalismo é decidido por maioria. Não se vota. A maioria nem sempre ganha. Aliás, a maioria nem sempre se materializa. Eu me refiro à natureza mesma do processo de trabalho: trata-se de um trabalho coletivo, imperativamente coletivo, necessariamente coletivo. Depende-se do repórter, do fotógrafo, do redator, do diagramador, do subeditor, do editor, do editor-chefe, do diretor de redação. Tudo depende sempre de uma coleção de cabeças.
A vacina funciona também graças a outra característica das redações: não existe filtro ideológico.
Eu sei, o leitor agora deve estar achando que exagerei. Mas é a pura verdade. Evidentemente, um jornal procura se cercar dos melhores profissionais: daqueles que apuram bem, daqueles que escrevem bem, daqueles que são criativos, daqueles que são éticos, daqueles que têm uma boa história profissional. Mas nunca seleciona um profissional com critérios políticos, ideológicos ou religiosos. Um católico não terá mais chance do que um protestante ou um muçulmano. Ninguém pergunta: ‘Em quem você votou nas últimas eleições?’ Não se quer saber também a orientação sexual dos profissionais.
Não é que essa ausência de filtro seja fruto apenas de uma regra formal. O filtro simplesmente não existe. Quando se trabalha com grandes grupos profissionais (falo de 100, 200, 300 profissionais), é impossível reunir um time ideologicamente uniforme. Simplesmente não há tantos da mesma espécie. É essa diversidade que funciona como uma vacina.
A diversidade é sempre uma vacina, e em mais de um aspecto. Mesmo quando um jornal erra, mesmo quando comete excessos, serão sempre os seus concorrentes a chamá-lo à realidade. Um assunto menosprezado por um e ressaltado por muitos acaba se impondo ao noticiário, sempre para benefício do público. É da natureza do mercado das informações, quando ele é livre, que tudo se dê dessa forma. O que um não disse, seja por erro, seja por incompetência, seja por omissão, o outro dirá. O que um disser de errado, o outro dirá de certo. Mesmo que um jornal erre por muitas semanas, outros acertarão. E será sempre o público a julgar.
A diversidade de que falo aqui – principal garantidora da isenção no jornalismo diário – em nada diminui as crenças de um jornal. Mas o espaço para que isso aconteça é o espaço dos editoriais, da opinião, nunca o do noticiário.
Apesar disso, há intelectuais que olham para nós e vêem não pessoas livres, profissionais éticos, orgulhosos do seu trabalho, mas blocos monolíticos comandados como robôs por capitalistas com objetivos bem desenhados. Marilena Chauí se espantou com as marchas e contramarchas do noticiário político, como se isso fosse uma novidade da crise atual. Ela dá a entender que gostaria de ver os fatos políticos sendo noticiados com uma coerência que eles não têm. Os jornais não podem contar uma história arrumada, coerente, plena de sentido se ela não se apresenta assim. É no processo que a coerência se constrói, que o sentido se forma. No jornalismo diário, numa crise política explosiva, não se pode ter a dimensão do todo antes que o todo exista.
Chauí se mostra perplexa diante da constatação de que, em nações livres, a mídia, estando na esfera do privado, é a porta de acesso ao espaço público das discussões, dos debates, da produção e recepção das informações pelos cidadãos. Com isso, o meio, privado, deformaria a mensagem segundo seus interesses. É uma visão que infantiliza o público: para se manterem, as empresas de mídia devem satisfazer os anseios do público, e este demanda informação de qualidade, correta, isenta, abrangente. Eu poderia dizer que a crítica de Chauí revela um saudosismo de experiências como o ‘Pravda’. Mas seria injusto: ela sabe que ali não se tratava de jornalismo, mas de propaganda.
Jornalismo só existe onde há liberdade. O que no fundo choca esses intelectuais não é a cobertura da crise, mas a liberdade de a cobrir.’
Mino Carta
‘E seria este o jornalismo?’, copyright Carta Capital, 04/10/05
‘Há colegas que não hesitam em desconhecer, ou cancelar, a simples verdade factual. Volta e meia, há quem recorde que CartaCapital apoiou a candidatura de Lula à Presidência da República em 2002, qual tivesse sido traição à prática do jornalismo, quando não pecado a ser punido com o inferno. Os torquemadas de plantão esquecem que a mídia nativa, praticamente em peso, apoiou Collor em 1989 e Fernando Henrique em 1994 e 98. E José Serra, enquanto o confronto de três anos atrás pareceu equilibrado.
A diferença talvez esteja na escolha, insólita, de um candidato da oposição, e tanto mais de origem pobre, nada além de metalúrgico. E quem sabe também resida em diversas expectativas em relação ao futuro do País, de um lado os partidários ferozes do status quo, do bem-bom para poucos, e, do outro, a Armata Brancaleone dos sonhadores da igualdade.
Nada de espantos. A mídia verde-amarela serve ao poder desde sempre porque é rosto do próprio. A constante, enfadonha defesa da liberdade de imprensa é tão hipócrita quanto a não menos tediosa profissão de fé na isenção e no pluralismo pontualmente pronunciada em candentes editoriais.
Grandes órgãos de imprensa da Europa e da América do Norte, independentes no sentido de não partidários, definem sua preferência na hora dos embates eleitorais, e nem por isso negam sua vocação. Partidária em várias ocasiões, provou ser, e prova hoje, a mídia brasileira. Ela é do partido do poder, da minoria afluente e influente.
Se cabe surpresa, diz respeito aos profissionais. Ou não cabe, desde que os jornalistas chamam seus patrões de colegas? Não me canso de repetir: o Brasil é o único lugar que conheço onde empresários midiáticos têm a mesma filiação sindical dos seus empregados. Os quais, no entanto, jamais poderiam aspirar à carteirinha das associações da indústria e do comércio.
Às vezes me assalta uma pergunta carregada de dúvidas: como pode um profissional honrado assumir certas posições do patrão que se valem da omissão e, até, da mentira? Eis aí a verdadeira traição à prática do jornalismo, cometida impavidamente nestes dias de crise. Fico pasmo ao verificar que tantos companheiros de outras jornadas esquecem os ideais e os compromissos do passado e aderem à manipulação da opinião pública, e não hesitam em desconhecer, ou cancelar, a simples verdade factual.
Posturas políticas e ideológicas podem ser criticadas, mas cada um tem direito às suas. Falo aqui é de quem manda às favas a responsabilidade da profissão. Colho um exemplo, pequeno talvez, mas nítido, e representativo, na edição de sexta, 23 de setembro, de O Estado de S. Paulo. Página A8, título no alto da página: ‘CPI dos Correios desqualifica dossiê contra tucanos.’
A questão toca esta redação, pois o assunto foi capa da edição passada. CartaCapital teve o cuidado, ao publicar documentos que provariam tramóia dos tempos da Presidência de FHC (leia desenvolvimentos à página 31 da edição impressa), de não acusar ninguém. Certo é, contudo, que o dossiê não chegou à CPI. A qual, portanto, não teria condições de desqualificá-lo.
É possível que o Estadão se antecipe em defesa do seu partido preferido, perfeito herdeiro do udenismo paulista velho de guerra, de quem foi porta-voz em épocas idas. Mas que dizer do autor do título, e daquele que o aprovou, colegas autênticos, creio eu?
P.S.: E que dizer dos colegas que, nas mais distintas publicações, candidatam Daniel Dantas à beatificação? E que dizer de quem apresenta Naji Nahas como empresário-modelo?’
Eleno Mendonça
‘Caímos no buraco negro?’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 01/10/05
‘Passados ‘meses’ de investigação e até agora não se sabe a origem dos recursos da grandiosa movimentação de Marcos Valério. Hoje surgiu uma nova versão. Em entrevista à Folha de S.Paulo, o presidente da CPI dos Correios, senador Delcídio Amaral, disse que o dinheiro do caixa dois do PT pode vir de contas no exterior. É realmente fantástico o poder de dedução dos nossos políticos, mais ainda o poder de investigação de órgãos como Receita Federal e Banco Central. Já tive vários colegas que ficam na chamada malha fina da RF por pequenos erros na declaração, ou porque de propósito ou não deixaram de declarar algum frila, ninharia, coisa de centavos se comparado a essas somas. Então, fica no ar a pergunta: se todos os envolvidos dizem ter declarado no imposto de renda, por que ninguém desconfiou de nada se não há origem dos recursos?
Para o senador Delcídio, está cada vez mais claro que os tais empréstimos tomados por Marcos Valério e supostamente repassados ao partido não passam de fachada. Será preciso então gastar meses, recolher pilhas e pilhas de papéis, tomar depoimentos à exaustão para concluir isso? Sinceramente acho que não. Basta pegar uma operação, pegar o fio da meada e ir até o final. Agora disseram que vão contratar uma empresa especialista. Será preciso isso? Será que no Brasil, na Receita, no BC não há técnicos de boa qualidade e com capacidade de analisar tudo isso? Penso sinceramente que sim. Acho que tudo depende da velocidade que se quer dar às coisas e da chamada vontade política.
Outra coisa: todas essas pessoas envolvidas têm o que se chama no jargão fiscal de ‘sinais exteriores de riqueza’, ou seja, evolução patrimonial muitas vezes acima de sua capacidade de ganho. Para tornar mais claras as coisas: são pessoas que não têm dinheiro para comprar tanta coisa ou não têm como comprovar a origem. Não estamos falando aqui da compra de um quartinho conjugado na periferia, mas casas suntuosas, de carros vistosos. Por que isso tudo parece nem pareceu estranho a quem investiga o caso?
Bem, tirando o erro original da fiscalização, há os erros de condução das investigações. É possível que por falta de prática o pessoal esteja querendo investigar tudo ao mesmo tempo, ou estejam em busca do holofote, deixando um caso para mostrar outro e assim sucessivamente. Acontece que esse tipo de trapalhada ou de indefinição ou ainda de falta de conhecimento é justamente o que querem os envolvidos. Isso faz atrasar os processos, os tornam cada vez mais volumosos e de difícil entendimento, permitem à defesa se apegar em pequenas falhas e tornam, o que é mais grave, mais curto o caminho entre a verdade e a pizza.
Um pouco de tudo isso já está a caminho. Faz umas três semanas que os vários casos empacaram. Os depoimentos não andam ou são iguais, as investigações pararam. Há, lógico, fatos como a eleição da mesa da Câmara, mas isso durou quatro dias, o resto do tempo está num lero lero de dar gosto. O que se vê é um noticiário morno, esquecido, recheado de outros temas, como se as CPIs tivessem terminado, como se todos os culpados tivessem sido punidos. É óbvio que se devem obedecer os prazos, dar chance de defesa, mas do jeito que tudo anda será muito difícil, improvável, esperar por uma solução que agrade a população e limpe a barra dos nossos políticos. Fica a sensação de que estamos dia-a-dia caindo no buraco negro onde tudo desaparece.’
Ferreira Gullar
‘Vale a pena ver de novo’, copyright Folha de S. Paulo, 02/10/05
‘Depois de três meses da comédia das CPIs montada na Câmara dos Deputados, fico a me lembrar dos momentos mais hilariantes e, ao mesmo tempo, mais reveladores do nosso universo político. O caráter performático do espetáculo a que o país iria assistir logo se revelou no desempenho do deputado Roberto Jefferson, que, agora cassado, poderá, quem sabe, seguir a carreira teatral, caso não se dê bem como cantor de ópera. E foi uma denúncia sua que provocou a primeira reação indignada da presente temporada teatral: a do deputado Valdemar Costa Neto.
-Vossa Excelência está mentindo. Está tentando enlamear a minha honra e a honra desta Casa, onde nunca se viu tanta indignidade! Saiba Vossa Excelência que vou processá-lo por calúnia e difamação!
Eu -que mal sabia quem era o Valdemar, mas sabia quem era Roberto Jefferson- acreditei no Valdemar. Qual não foi o meu espanto quando o vejo subir à tribuna da Câmara para renunciar ao mandato! Ou seja, admitia que as acusações de Jefferson eram verdadeiras. Mas, com a mesma cara-de-pau, afirmou:
-Nobre presidente Severino Cavalcanti, renuncio neste momento ao mandato de deputado federal para, assim, honrar o meu partido e as tradições da Câmara dos Deputados.
No primeiro momento, tomado de surpresa, não entendi nada do que ouvia; um segundo depois, disparei a rir.
Os dias se passaram, nasceu a CPI do Mensalão. Foi quando correu um ‘frisson’ entre os membros da comissão, deputados falando ao ouvido uns dos outros. Algo, sem dúvida, os inquietava: é que surgira uma lista com nomes de deputados da oposição que também teriam recebido o ‘mensalão’. O vice-presidente da comissão, deputado do PT, entregara a lista ao relator, um documento capaz de virar o jogo a favor do governo, segundo se dizia. Mas, de repente, levanta-se um deputado do PSDB e afirma:
-Acabo de saber que a tal lista com nomes de deputados da oposição foi trazida a esta CPI pelo seu vice-presidente. Quero informar que o vi, ontem à noite, entrando no carro do senhor Marcos Valério.
A revelação chocou a todos. O acusado, dando curso ao divertido espetáculo, correu para o microfone e gritou inflamado:
-Essa acusação é uma indignidade! Não admito que se ponha em dúvida a minha integridade moral de representante do povo! Jamais seria capaz de trazer para esta comissão um documento falso! E nego peremptoriamente que tenha entrado, ontem à noite, no carro do senhor Marcos Valério!
E com tal veemência o comediante falou que houve até um início de palmas da parte de seus companheiros de bancada. Mas o denunciante voltou à carga:
-Advirto Vossa Excelência de que, na garagem do Senado, há câmeras que registram tudo o que ali ocorre. E aproveito para solicitar ao senhor presidente da comissão que requisite as fitas gravadas durante a noite de ontem.
As fitas vieram. Daí a momentos, a televisão mostrava o vice-presidente da Comissão do Mensalão entrando no carro de Marcos Valério. Diante disso, não restou ao nobre deputado senão renunciar ao cargo. Como Valdemar, fez também um discurso em que admitia ter pisado na bola, mas tudo pelo bem de seu partido, do Congresso e da pátria… A essa altura, todos os dias, eu já ligava a televisão sorrindo por antecipação, na expectativa de novas cenas hilariantes. Bendito ‘mensalão’, que veio tornar bem mais divertida a vida de todos nós!
Mas faltava a apoteose: faltava o ‘mensalinho’… O ‘mensalinho’ do Severino.
Severino está longe de possuir o talento histriônico de um Jefferson. Pernambucano de João Alfredo, a sua figura está entre uma efígie de ex-voto e um personagem de cordel que, como tal, veio parar em Brasília e se tornou presidente da Câmara. Convivendo com os espertos, tornou-se esperto também. Espelhando-se em Lula, pernambucano e sertanejo como ele, sonhava ser presidente da República… mas eis que descobrem o seu ‘mensalinho’ quando já tinha galgado até a tribuna da ONU!
Severino levou um susto, mas logo se refez e voltou a Brasília com ânimo de cangaceiro e trabuco na mão: convocou uma entrevista coletiva e bradou: ‘É mentira! É mentira! É mentira!’. E o fez com tanta convicção que muita gente acreditou nele; até eu balancei, ainda que às gargalhadas, é claro.
-É verdade que vai renunciar?, perguntou-lhe um repórter gaiato.
-A palavra renúncia não consta de meu vocabulário -respondeu Severino, com admirável presença de espírito.
Como naqueles programas de humor em que os personagens mudam, mas o bordão é sempre o mesmo, as acusações se confirmaram e viu-se que, nesse caso, como nos anteriores, a indignação fazia parte do ‘script’.
Com o passar dos meses, os espetáculos da Câmara Brasileira de Comédias foram perdendo a graça. O pessoal já estava retornando ao ‘Casseta e Planeta’ quando começaram os ensaios de uma nova comédia, que logo estreou: a eleição de Aldo Rebelo para a presidência da Câmara, graças à intervenção de Lula -que, para isso, comprou os partidos do ‘mensalão’. O espetáculo não pode parar.’
DESARMAMENTO & MÍDIA
‘Vou votar contra’, copyright O Globo, 02/10/05
‘Faz quase dois anos escrevi aqui contra a lei que deverá proibir o comércio de armas no Brasil. Fico meio (serei moderno e vou usar essa palavra; todo mundo usa e preciso ser moderno ou perecer) sacaneado, quando me põem no bolo dos ‘babacas da mídia’, que só defendem direitos humanos para criminosos e trabalham pela aprovação de leis como essa do desarmamento. Nem sei que babacas são esses, eis que babacas há em toda profissão ou condição social, mas escrevi aqui contra o tal desarmamento. Precisava até de mais espaço do que o muito que já me dão, de forma que não é para poupar trabalho que reproduzo três parágrafos daquele texto. É porque iria os repetir, com outras palavras. Escrevi o que vai grifado abaixo:
‘Em primeiro lugar, o que parece não ter importância alguma, sou contra a violência. Em segundo lugar, menos um pouco desimportante, estamos há muito tempo em falta de mocinhos, em todos os níveis de governo. E, agora sim, importante, já vivemos nessa situação há muito tempo. Somos cidades de faroeste, diferençadas apenas por detalhes, como carros e motocicletas em vez de cavalos, e pela ausência de coldres recheados à mostra. De resto, basta pensar e ver que, em cidades onde morre mais gente baleada do que em países em guerra, só podemos ser uma espécie de faroeste. Já nos acostumamos, e por isso mal notamos. Quem nota, e pode, vai morar em fortalezas ou complexos penitenciários, eufemisticamente rotulados de ‘condomínios’, mas na verdade com mais segurança do que a velha Alcatraz, embora inútil pois às vezes os próprios agentes dessa ‘segurança’ estão por trás ou ao lado de sua violação. Quem pode dá no pé e vai morar em algum país no qual não seja necessário rezar sempre que um filho vai à rua e um celular para cada um desses filhos não é considerado equipamento de segurança indispensável. Quem chega de fora fica assombrado em ver o número de grades com as quais tudo é cercado, de edifícios a praças públicas, como se fosse normal o cidadão viver por trás de grades, enquanto o pau come solto lá fora.’
Reli o texto inteiro (é de julho de 2003, para quem quiser saber) e poderia reproduzi-lo todo, porque ainda é pertinente, mas isto não se faz, parece que se está querendo passar a perna no jornal. Os dois parágrafos acima só faltam acrescentar que sou pessoalmente contra armas e brigas, nunca tive nem tenho arma e não represento ninguém, só minha consciência mesmo. E não estou só na minha posição, que é a de muita gente boa e insuspeita por aí, segundo leio na Internet e ouço falar. E então – perdão, leitores; perdão, editores – reproduzo outro parágrafo:
‘Para resolver isso, que cresce como um câncer em metástase desenfreada, os governos oferecem palavrório e legislação. Devemos ter as leis mais avançadas do mundo e vêm vindo mais. Por exemplo – e chego finalmente ao ponto mais polêmico — agora o plano é desarmar os cidadãos, proibindo terminantemente o porte de armas, mesmo que exclusivamente dentro de casa. Não tenho arma e sou visceralmente contra seu uso, mas não sou maluco. O cidadão que respeitar a lei não terá mais arma em casa, ou nem mesmo no sitiozinho, onde relaxar virou privilégio de quem pode contratar seguranças e ter cachorros ferozes por tudo quanto é canto. Mas o bandido? Ah, este estará de agora em diante perdido, porque o novo dispositivo legal cerceará sua ação criminosa. Verdade que terá certeza de que poderá entrar na casa de qualquer cidadão ordeiro, porque esse cidadão não contará com uma arma para se defender. Mas o bandido poderá ser facilmente vencido. Basta que se guarde um exemplar da nova lei para mostrar ao assaltante: ‘olhe aí, diz aqui que é proibido o porte de armas.’ ‘Ah, desculpe’, dirá o assaltante, pedindo licença para`se retirar e saindo sem bater a porta. ‘Foi mal, eu não tinha sido informado.’ E não duvido nada de que, se o cidadão tiver em casa um revólver, mesmo que não dê um tiro no assaltante, seja preso e processado inafiançavelmente, enquanto o assaltante, réu primário, servirá pena de dois anos em regime semi-aberto.’
Como desculpas renovadas, acrescento o pouco que resta acrescentar. O governo ataca de novo um problema complexo e cujo buraco está a léguas mais embaixo com os instrumentos estatais mais comuns entre nós: uma lei (ou medida provisória) moderníssima; uma ou várias comissões, todas com direito a jetons, passagens etc.; recadastramento de categorias diversas; anistia para quem não pagou o que devia; cala-bocas variados (cestas básicas, bolsas-escolas e outras reações tópicas que são chamadas de ‘programas sociais’, curiosa designação a algo que mantém corrupção, clientelismo e dependência de esmolas). Uma dessas pode ainda não ter aparecido, mas aparecerá.
Maconha e cocaína também não podem ser comercializadas (os gerúndios enlouquecidos e os verbos em izar vão terminar por nos afogar num mar de cretinismo invencível – nem ver mais as pessoas vêem, só visualizam) e, no entanto, a depreender do que lemos nas gazetas, compram-nas quem quer e onde quer, até mesmo em domicílio e sendo talvez possível o uso de cartões de crédito. Desta forma, só posso crer que se trata de mais uma armação da Cen-tral Brasileira de Trambicagem, a fim de estabelecer as futuras prósperas ‘bancas-de-fogo’, que se juntarão às já abundantes bocas-de-fumo. Armas não se poderão comprar legalmente. Ilegalmente, claro que sim, é para isso que existe a lei. Triste situação a do bandido, que só o faz sofrer e a nós ter pena. Já pensaram no peso na consciência dele como portador ilegal de arma? É de matar qualquer um – só resta assaltar para esquecer.
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.’