Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Geração sinopse

Em teoria não faz sentido. Ao disponibilizar instantaneamente dados até há pouco inacessíveis, a rede mundial de informação deveria ter como finalidades únicas o estímulo à reflexão e o aumento do intelecto, não a propagação de boatos e a superficialidade generalizada. Bem se vê que, projetada por engenheiros, a internet parece não ter levado em conta o componente social das relações humanas.

Ao contrário do que sugere nossa bandeira, ordem não leva necessariamente ao progresso. A ideia de velocidade e volume para redução de erros é característica dos avanços tecnológicos do século 20, em que o vagar de processos e o limite na oferta eram grandes problemas.

Com a abundância de conteúdo, passamos a viver um paradoxo de eficiência: há respostas demais para que se possa fazer bom uso delas. Por mais que um passeio nas paisagens informativas digitais dê a impressão de que a cultura se enriquece, o que acontece muitas vezes é o contrário: nos tornamos depósitos de dados e citações impensadas.

Antes do surgimento de YouTube, blogs e Wikipédia, dizia-se que informação era poder. A hierarquia, antes baseada em sigilo, não desapareceu. Foi transferida para a administração da complexidade das bases de dados. O livre acesso levou à sobrecarga de informação sem precedentes, em que são imprescindíveis filtros e intérpretes para dar sentido a tudo que se acumula.

Esses filtros não são neutros. É possível que nunca sejam. Isso se deve em boa parte à ganância de muitos que, apoiados na facilidade de acesso à rede, passaram a demandar mais tarefas do que seriam necessárias, eliminando o tempo necessário para a reflexão e a assimilação de informações.

Seara dos picaretas

Situações que até recentemente eram consideradas desconhecidas ou imprevisíveis hoje demandam respostas, ainda que imprecisas, inadequadas ou mesmo incorretas. Basta que sejam apresentadas em PowerPoint com vídeos e recitadas por alguém com assertividade que podem ser aceitas como verdade.

Como não é possível ser especialista em tudo nem estar presente em todos os lugares, são comuns ambientes de aparências, em que cada um busca saber o mínimo para não desmontar sua argumentação.

Dessa forma se constrói uma cadeia de falsas informações, citações e referências que não levam a lugar algum. Quando boa parte da fundamentação vem da primeira página de resultados do Google, fica fácil criar uma confusão superficial.

O conteúdo raso fica evidente na grande quantidade de livros de negócios que dizem quase nada, simplificam o não dito em “resumos executivos” e exploram argumentos rasos em mais de 300 páginas.

Para simplificar o trabalho de leitura do não escrito, serviços como GetAbstract e BizSum vendem resumos de seu conteúdo em páginas na internet, audiobooks e slides, facilitando o consumo em trânsito e sua replicação em reuniões. Se tudo isso ainda der muito trabalho, uma sinopse resume a ideia central e destaca os principais conteúdos em cem palavras ou menos.

Por mais que muitos executivos tenham boas intenções, não há como negar que esse terreno é extremamente fértil para a picaretagem. A pressa, já diziam nossas avós, é inimiga da perfeição. E da reflexão.

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[Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e colunista da Folha de S.Paulo; mantém o blog www.luli.com.br]