Sobre a potência do corpo vivo pouco se sabe. Tantos séculos de intimidação, repressão e educação dos gestos resultaram em hesitação e fragilidade. O corpo não está lá onde o vemos: nos retoques da publicidade, nos ideais de beleza, nas academias de ginástica, nos ídolos do esporte. O corpo, vivo, é outra coisa. Sua potência fala através de suores, movimentos, deslocamentos, envolvimentos, intensidades. É uma potência que se atualiza no indignado, na criança brincando, no calor dos amantes, no calafrio do enfermo, no tremor do soldado, nos mistérios do metabolismo.
Por isso é mais fácil explorar corpos mortos, que nada mais têm a dizer e se dão à dissecção fria dos especialistas. A ciência e a imprensa sabem disso. Houve um tempo em que a exibição de imagens de cadáveres era reservada à mídia dita sensacionalista. Na maioria das redações havia uma regra clara a esse respeito e, quando não, o acordo era tácito. Hoje, mesmo na imprensa que se arroga respeitável, o flerte com a morte é escandaloso e assume várias formas. Está presente, por exemplo, na divulgação pouco investigada da ameaça de um suicídio indígena em massa, também em fotografias de mortos por chacinas e em imagens amadoras vindas de celulares que, espalhados mundo afora, mostram cadáveres ultrajados de crianças, mulheres e famílias, corpos da guerra e do terrorismo.
Com isso, o tempo do grande fotojornalismo parece também ter ficado para trás. Apressadas, as redações se apropriam de imagens grotescas e mórbidas que circulam nas redes sociais, cuja credibilidade muitas vezes é duvidosa. Claro que uma participação maior do público na composição da notícia tem vantagens e é um dos elementos da nova era do jornalismo. Mas a responsabilidade pela propagação continua sendo do veículo.
Corpos vivos e imagens de cadáveres
A quantidade de cadáveres expostos nos jornais e telejornais é inversamente proporcional à reflexão. Quanto mais se mostra, menos se pensa. Morte é morte em qualquer lugar: choca, atrai e horroriza ao mesmo tempo, testa os limites dos vivos. Se transformada em imagem, a mesma morte pode ser usada como diretriz de opinião.
É assim que, nas últimas semanas, leitores e telespectadores demonstram solidariedade ao lado das imagens que mais convencem. Quem mostrar as piores mortes ganhará a simpatia do público: palestinos ou israelenses? Caiovás ou pecuaristas? Traficantes ou policiais? Não há nem bem nem mal. O que há é apenas o velho casamento entre imprensa e necrofilia, mostrando sua capacidade de se reinventar.
Eis um campo fenomenal que ainda apresentará muitos desafios à ciência da comunicação. Se pensamentos como os de Espinosa, Deleuze, Bergson e Foucault já lidaram com os fundamentos da questão, resta aos contemporâneos atentos à realidade mutante dos meios confrontarem seus desdobramentos, sem temer o cenário em que corpos vivos são devorados por imagens de cadáveres.
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[Danielle Naves de Oliveira é jornalista e doutora em Ciências da Comunicação, de Marburg (Alemanha)]