Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cultura, ditadura e imprensa alternativa

Hoje, com a consolidação da democracia e do sistema capitalista – da corrida frenética pelo lucro – muito se falou, sem qualquer afirmação concreta e concisa, que já não havia espaço na sociedade para a imprensa alternativa. Que o fim do regime autocrático colocaria fim à necessidade e função de uma mídia declaradamente, direta ou indiretamente, opositora.

Confundiu-se, em determinado período da história recente do Brasil, que a luta do alternativo era unicamente promover o fim do regime militar e que, portanto, não haveria, hoje, condições favoráveis à existência de uma imprensa defensora dos interesses nacionais e populares. De certa forma, após o fim do regime autoritário, eles deixaram de desempenhar o papel de antes, já que a nova conjuntura requeria uma adaptação e remodelação aos conceitos outorgados para não sucumbir diante de novos paradigmas estabelecidos após a abertura política.

Era chegado o momento de estratégias ousadas, novas possibilidades e um processo de massificação dos jornais alternativos a partir da incorporação de meios massivos e amplificadores como, por exemplo, a multiplicação de tiragens para uma geração e propagação dos pensamentos e comportamentos apropriados para o funcionamento e massificação dos ideais defendidos pelos jornais alternativos – além de uma maior acessibilidade e popularização, principalmente uma maior aproximação com a imensa massa de trabalhadores, uma novidade trazida a partir dos acontecimentos em curso no país.

Já sabendo que a imprensa desempenha – segundo o filósofo e pesquisador estadunidense Douglas Kellner pontua em Cultura da Mídia – o papel categórico de fornecer a legitimação ideológica que fundamenta a existência e a integração dos indivíduos em sociedade, promovendo – juntamente com a cultura – a legitimação dos governos autoritários.

O choque de culturas

Predominava no Brasil, naquele momento (1964-1985), a cultura da ditadura que funcionava com um poderoso instrumento para promover os valores do governo militar e as atitudes tomadas por quem se dizia ser o representante do povo e o protetor da nação contra a “ameaça vermelha”. De certa forma, como afirma o filósofo e crítico literário britânico Terry Eagleton em A Ideia de Cultura, “uma cultura pluralista deve ser de qualquer forma exclusivista, já que precisa excluir os inimigos do pluralismo”. Não que a cultura da ditadura seja pluralista, longe disso. Trocando-se pluralista/pluralismo por ditatorial/autoritarismo, ou sinonímias, o argumento é completamente válido.

Como assinala Geoffrey Hartman em The fateful question of culture, nós temos agora cultura da fotografia, cultura das armas de fogo, cultura da prestação de serviços, cultura de museu, cultura da dor, cultura do medo, cultura dos cafés etc. Por que não haveria uma cultura do autoritarismo em plena ditadura, para algumas pessoas, refletindo obedientemente à fragmentação da vida política neste período?

Esta mesma cultura conflitava com a cultura democrática, a cultura comunista, a cultura anarquista, a cultura popular etc. Estas, por sua vez, tendiam a considerar a cultura mais ampla – a ditatorial – sufocadamente opressiva, com frequência por excelentes razões, elas compartilharam aversão às atitudes de forte repressão do Estado ao interesse de emancipação com ações diretas de militantes, políticos, estudantes e guerrilheiros armados que passavam a se organizar, em sua maioria na ilegalidade, como a Guerrilha do Araguaia (a maior guerrilha brasileira), a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB, uma dissidência do PCB), o Movimento Nacionalistas Revolucionário (MNR), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), o Comando de Libertação Nacional (Colina) a Ação Popular (AP), que mais tarde seria chamada de APML (Ação Popular Marxista-Leninista) e os movimentos estudantis, organizados principalmente pela União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBEs) e respectivas União Estadual dos Estudantes (UEEs), entre outros.

A transformação social

A cultura passa a ser um campo de batalha feroz, deixa de ser parte da solução para se tornar parte do problema. “Tornou-se parte do próprio léxico do conflito político. A cultura passa a ser um campo de batalha em que as causas se travam publicamente e se combatem uma contra a outra”, afirma Eagleton.

Não seria diferente no caso do Brasil; a cultura como cúmplice criminosa é apenas um lado da história. Há muito na cultura que presta testemunho contra a ditadura. Porque a cultura significa não apenas uma identidade exclusivista, ou um lado da moeda apenas, mas se refere também àqueles que protestam coletivamente contra uma tal identidade. Se houve uma cultura da ditadura brasileira, haveria, pois, a necessidade de se criar uma contracultura do autoritarismo, uma cultura de resistência ditatorial. Uma vez que ambos os sentidos da palavra são ambivalentes e conflitantes, nenhum deles pode ser simplesmente mobilizado sem que haja a provocação de um choque com o outro; um antagonismo.

Eis que surge, neste contexto, uma imprensa disposta a se opor e criticar o sistema vigente; a revelar o que a imprensa servil ao sistema e favorável ao status quo tratou de se distanciar, buscando uma outra alternativa de jornalismo e imprensa, tomando para si o princípio jornalístico de aflorar os conflitos e produzir alterações significativas na intenção de que “os comportamentos e as ações sociais, derivadas dos atos comunicativos do jornalismo, realimentasse o processo social, provocando transformações nos cenários da atualidade e da ordenação ética, política e moral da sociedade”, como disse o pesquisador Manuel Carlos Chaparro, membro do Conselho Curador da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e ganhador de quatro Prêmios Esso de Jornalismo pelas suas matérias investigativas a respeito da função social do jornalismo. Não existe, pois, jornalismo se você não tem a intenção, direta ou indireta, de provocar uma mudança ou transformação social.

Interesse público e do público

Foram pessoas comuns: jornalistas, estudantes, intelectuais, militantes, políticos, que lutavam utilizando, como afirma o jornalista Clóvis Rossi em O que é jornalismo, “uma arma de aparência extremamente inofensiva”, as palavras, contra as Forças Armadas do Brasil, o governo brasileiro, o poder do Estado, exercendo o direito humano à subversão civil diante de uma ditadura. Exercendo o jornalismo mais que meramente uma profissão, mas como um direito fundamental do cidadão e do exercício civil de questionar o que se faz na máquina administrativa pública. Era função do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) e do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) “prevenir a proliferação de ideias consideradas (e chamadas por eles) ‘subversivas’ e reprimir o anarquismo e ideologias ‘exóticas’”, em nome dessas funções burocráticas e da cultura implantada foi criado um aparato repressor que prendeu, torturou e matou milhares de pessoas.

A cultura da ditadura não foi unicamente aquilo do que viveram os seus idealizadores e defensores. Ela também foi, em grande medida, aquilo para o que viveram, um modo de vida; não foi apenas o que se colocou no toca-fitas, foi aquilo pelo quê, muitas vezes, se matou. Foi nesse momento que o país vivenciou uma multiplicação da mídia alternativa em todo o território nacional, que vão do sucesso ao fracasso, em uma história de lutas, sacrifícios, riscos, perdas e ganhos. Contudo, somente por serem do povo (sob controle popular) e para o povo é que puderam servir aos ideais e causas populares.

Talvez, sem desmerecer a irreverência, o humor satírico atrativo e o conteúdo diferenciado, a própria perseguição e repressão levaram o conhecido hebdomadário O Pasquim a alcançar números espantosos de tiragens (200 mil exemplares semanais nos primeiros anos) e outras publicações, como Opinião e Movimento, funcionando indiretamente como um marketingao semanário, que tinha como baluarte o espírito de sacrifício e elevado grau de organização. Refletindo o próprio interesse da sociedade da época pelos assuntos tratados pelo semanário, já que havia interesse público, mas também do público. Vale lembrar que é da natureza humana a sensação de curiosidade que desperta frente a algo proibido ou censurado.

Jornalismo independente

No que diz respeito à historiografia, há um vácuo na trajetória da imprensa alternativa na Amazônia. Mas não é uma particularidade dessa região, o país ainda carece de pesquisadores empenhados para levar a conhecimento público a história da mídia alternativa em um país que sofreu com um regime ditatorial opressor, onde as liberdades individuais e os direitos humanos eram paulatinamente desrespeitados.

O bom jornalismo, refém do capitalismo e da autocensura, continuará a ser mero porta-voz. Este jornalismo, já que não assume uma autocrítica e reflexão em relação ao seu atual fazer profissional e diante dos erros de suas próprias vitórias, será fadado ao descrédito e não encontrará amparo em uma sociedade cada vez mais a procura de respostas para os seus problemas. Há uma incapacidade por parte do mercado, e por vezes do profissional, em refletir o exercer de sua profissão, em responder positivamente diante das enormes possibilidades colocadas pela democracia. Ademais, há uma covardia profissional, como afirmou Lúcio Flávio Pinto em entrevista ao Observatório da Imprensa, alguns jornalistas brasileiros e uma parte dos jornalistas no mundo não querem, hoje, correr riscos, querem uma carreira linear, um “lead linear”, como diria Marcuzzi.

O povo passa a ver suas demandas ficarem silenciadas pelos profissionais que deveriam ser críticos, mas que estão mais preocupados em manter o emprego do que em fazer jornalismo. Heródoto Barbeiro e Paulo Lima dizem no livro Manual de Telejornalismo que “ninguém se exime da justificativa de que ‘apenas cumpriu ordens do chefe’”.

Hoje, ainda deparamos com a impossibilidade de realização de um jornalismo independente no capitalismo monopolista, onde dificilmente a imprensa tradicional voltará a dar voz a todos e promover mudanças. No meio de grandes empresas jornalísticas, ainda agonizam representantes da mídia alternativa no Brasil, que clama para que sua história seja revelada.

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[Tarcizio Macedo é estudante de Jornalismo, Belém, PA]