A minissérie A casa das sete mulheres, como obra de ficção que utiliza a memória e a história, recolocou em pauta dois temas recorrentes: a revolução farroupilha e a oficialização de certo sentimento identitário no Rio Grande do Sul. Ao ser reapresentada na Rede Globo, deu continuidade ao debate sobre os limites da “liberdade de criação” ao tratar de fenômenos históricos. Acriticamente parece ter predominado a posição de que a dramaturgia tudo pode e que os eventos do passado não passam de cenários de época.
Nessa visão, sob o salvo-conduto da ficção, a narrativa instrumentaliza plasticamente os “episódios”. Equivocadamente, as versões das “pesquisas” servem apenas para “legitimizar” o discurso estético.
A versão “global” da revolução farroupilha, incorporada em atores contemporâneos, sem caracterização dos indivíduos inseridos na primeira metade do século 19, demonstra a fragilidade das representações de seres humanos concretos como de personagens de ficção fora das possibilidades delimitadas pelas historicidades das respectivas épocas. Encontrar essas dimensões compete tanto à história como à arte. A interpretação que busca os sentidos a partir dos eventos assume uma responsabilidade de método com o real, compreendido na flexibilidade das representações. Tanto a narrativa historiográfica como a obra estética têm sentidos diversos se os seus pontos de partida forem a “história” ou a “memória”.
O espelho e o reflexo
As concepções sobre esses dois campos são parâmetros para compreender a implicação cultural d´A casa das sete mulheres.
A memória não significa uma reposição existencial no presente de fenômenos coerentes do passado. Ela é uma expressão da identidade e não, necessariamente, da consciência. Generaliza um campo imaginário para a construção de um ethos simbólico conforme o interesse dos indivíduos envolvidos nessa operação. A constatação de que grande parte da historiografia se associa a processos cívicos, com literatos militantes em geral, movimentos tradicionalistas e a indústria cultural regional, para produzir para a memória, não credencia ninguém a considerar seus textos como história. Esses elementos auxiliam na tipificação de personagens contemporâneos e não do que se convencionou, com algum rigor, a denominar de históricos, por mais flexível que seja o termo.
A história é o campo do conhecimento; a memória, do comportamento.
Portanto, as narrativas sustentadas na memória, no processo de olhar para o passado, são ilusões contemporâneas para afirmar identidades gentílicas expressas por personagens ficcionais semióforos, ícones comportamentais, sustentados, quase sempre, em morais dogmáticas; invariavelmente, representam o culto de um espaço territorial mais vinculado ao imaginário do que à geografia inóspita, como no caso do Rio Grande do Sul. Essa é a fonte principal d´A casa das sete mulheres, que, em seu efeito de massa, é o espelho e o reflexo da concepção oficial, a teledramaturgia de um mito fundante. Fazendo eco a esse lastro cultural, o “evento” foi redimensionado em épico televisivo, sem a dramaticidade enfrentada e suportada pela sociedade sulina durante dez anos de guerra.
Os roteiristas absorveram toda a ilusão memorialística regional, que é (re)produzida e garantida pelo Estado, através de diversos órgãos que impõem e garantem o calendário ritualístico gauchesco, entidades tradicionalistas e conservadoras da sociedade civil, cuja missão é o culto das oligarquias vinculadas à conquista e à ocupação do Rio Grande, à exaltação das refregas bélicas e a divinização do latifúndio como espaço fundante, como se todos os habitantes estivessem umbilical e gentilicamente vinculados a ele. As estâncias, de fato, constituíram a materialidade do sistema de conquista nos séculos 17 e 18 e garantiram a posse do território através de proprietários/líderes militares. A segurança proporcionada pelo chefe, culturalmente, se traduziu em sentido de pertencimento.
O cenário da arte
No entanto, o núcleo dessa vinculação real e simbólica era propriedade de um escravocrata, que submetia os cativos ao rigor da vigilância, especialmente pela proximidade dos países platinos em região de extensas fronteiras abertas, convidativas à fuga. Nesse sentido, certa visão romântica, bucólica, de afeição e peninhas dos senhores sobre a condição do negro, acabou invadindo a cena. Não tem postulado em defesa da “liberdade de criação” que justifique, pois produziu uma representação “real” que implica diretamente em uma ilusão sobre o passado.
A liberdade de criação transforma-se em licenciosidade.
O ponto narrativo do conflito emana da jovem Manuela, desde o foco imaginativo do olhar oligárquico (na verdade, da idéia que os roteiristas globais possuem da elite farroupilha). O território monótono da campanha foi subvertido pela introdução ficcional dos espaços das demais regiões, invariavelmente, de apelo turístico. Assim, o tour passa a fazer parte da “história”.
A “humanização” dos conflitos sulinos e o bucólico universo familiar estancieiro dos escravocratas na imaginação da frágil e poética Manuela são cenas de um estágio insuperável do ideário da “democracia racial”.
Mas a contradição é o cenário da arte. O espaço dado ao soldado negro na minissérie, encontrável em Os varões assinalados, de Tabajara Ruas, e não no livro título, ao cabo, involucrou na memória do telespectador um sentimento de que os negros foram injustiçados e excluídos do acerto final entre os chefes farroupilhas e o Império.
Blocos populacionais
Para funcionar como recepção, na fórmula “global”, os interesses particulares dos proprietários farroupilhas foram transformados em projeto geral dos habitantes sulinos. Isso ocorreu pela adoção ficcional do modelo de “guerra de libertação nacional”, como se o Rio Grande do Sul, integralmente, tivesse provocado um levante contra o Império. Ora, pesquisas documentadas no arquivo de Domingos José de Almeida (incorporado no Arquivo Varela), charqueador e ex-ministro “rebelde”, demonstram que, no conjunto da própria elite rio-grandense, os farroupilhas eram minoria.
A maioria de estancieiros e charqueadores mobilizou as suas tropas em favor da causa monárquica. Durante os primeiros anos, os confrontos bélicos tiveram conotação de guerra civil, com o Rio Grande rural dividido. A maioria, especialmente nas cidades, enfrentou os rebeldes. Massas populares combateram “a república dos estancieiros”, conforme definição do perspicaz Décio Freitas. O povo porto-alegrense foi às trincheiras durante anos, como comprovou documentalmente Sérgio da Costa Franco, em seu excelente Porto Alegre sitiada.
Quando general Netto, solitariamente, proclamou a República Rio-Grandense, em 1836, um ano após o início do movimento reivindicatório de inserção política do poder regional e contra os impostos, em especial do projeto de “taxação da terra” pela Regência, formaram-se blocos populacionais sul-rio-grandenses de combate aos farrapos, pois essas pessoas estavam ameaçadas de perderem a nacionalidade brasileira, conquistada recentemente em um país que adquirira a independência e se fundara na década anterior, depois de uma prolongada luta contra o domínio português e a ameaça castelhana.
Escravidão mantida
O efeito desse projeto, do qual muitos artífices estavam inseridos na guerra civil, motivou muitos líderes farroupilhas a abandonaram a causa inicial quando ela passou de secessão reivindicativa para separação. De qualquer forma, a “república de papel”, que resultara do ímpeto do pequeno grupo proclamador, não superou certos limites e contradições internas e o governo rebelde jamais ultrapassou o limiar de um arremedo cênico republicano, dominado por senhores de escravos e monarquistas, onde os confusos republicanos, inspirados nos episódios europeus (e temerosos dos norte-americanos), tinham papéis secundários. Como eram os “intelectuais”, os “secretários”, os “jornalistas”, seus escritos para os chefes, em um nexo “utópico”, são interpretados pelos fundamentalistas (inclusive com respaldo de certos acadêmicos) como “documentos” de registros de eventos históricos “praticados”. Nessa “república de papel”, dentre suas incongruências reais, a maioria capitaneada por Bento Gonçalves era monarquista.
Ao contrário da afirmação propagandeada no carnaval temporão de setembro e nas datas de farto calendário de comemorações, a guerra não foi a causa fundamental de inviabilidade do regime e da constituição de um Estado republicano. Nos primeiros cinco anos houve equiparação entre as forças e os revoltosos dominaram amplo território, especialmente na campanha e nas regiões pecuárias. A luta interna farroupilha era eminentemente política, pois a minoria, de perfil monarquista constitucionalista, além da pequena facção republicano-liberal, postulava o fim da interinidade de Bento Gonçalves (cujo governo classificavam de “tirânico”), a formação de uma Assembléia Constituinte e a organização dos poderes.
Essa Constituinte, no refluxo bélico e na iminência da derrota com o fortalecimento da aliança entre rio-grandenses e tropas imperiais, foi convocada por um conselho de procuradores (prefeitos) e não pelo governo de Bento Gonçalves, conforme o desejo daqueles que lhe concederam o poder provisório. E, pasme-se, quando os constituintes promulgaram a Constituição da República Rio-Grandense, os direitos políticos eram mais restritivos do que os expressos na Carta Imperial. Adotou-se também o voto censitário e se manteve a escravidão. O requisito para votar ou se candidatar para o cargo de vereador e juiz de paz, era ter renda anual de, no mínimo, 100 mil réis; eleitor de deputado e senador, 200; diretores (prefeitos nomeados), 400; para ser candidato a deputado, membros do Tribunal de Apelação e Superior Tribunal de Justiça, Conselheiro de Estado e presidente, 600.
“Gênio do mal”
Não se tratava de uma “república” da igualdade, da fraternidade e da liberdade. E sim dos proprietários e daqueles que provinham rendimentos. Os “livres” pobres estavam excluídos. Por isso, durante a tentativa de normatização farroupilha, os direitos políticos ficaram restritos a menos de 1% da população. Consoante com essa realidade, o “exército” rebelde, em seu auge arregimentador, não conseguiu reunir mais que cinco mil homens para uma população regional de aproximadamente quatrocentos mil habitantes. Constituía-se basicamente pelos homens agregados aos seus chefes. A “guerra de libertação” do Rio Grande existe somente na imaginação.
Buscada como possível solução, no entanto, as eleições e a instalação da Constituinte em Alegrete, já nos estertores da revolta, não implicou na solução das divergências internas. Quando reunidos, os farroupilhas demonstraram que eram incapazes para fundarem um país. No âmbito constituinte, a bancada de Bento Gonçalves (maioria) aprovou um projeto suspendendo as garantias individuais dos próprios revolucionários e criou um Conselho de Estado com a atribuição de órgão de segurança.
Em resposta, a minoria lançou um manifesto afirmando que o governo “despótico” de Bento representava o “gênio do mal” e aprovava leis “repugnantes”, a exemplo da “horrorosa lei das confiscações”; administrativamente, Bento Gonçalves “animou com prêmios aos denunciantes (um dos maiores flagelos da humanidade); promulgou a pena de morte sobre crimes vagos e não especificou com a precisa clareza; decretou que a lei punindo não fosse igual para todos os cidadãos; talvez não haja uma só garantia dos direitos civis e políticos dos cidadãos que não fosse por sua excelência calcada aos pés! Talvez não haja um só artigo da Constituição que juramos que não fosse de fato ferido, atropelado e suspenso por sua excelência [Bento] e seus ministros prediletos”.
Simulacro de república
Um dos métodos do hoje heróico Bento Gonçalves era cercar a Assembléia com tropas sob o seu comando quando entravam em pauta projetos de seu (des)interesse. Esse processo autofágico dos farroupilhas atingiu o seu ápice com a imputação do assassinato do vice-presidente Paulino da Fontoura, representante da bancada minoritária, a Bento Gonçalves. Associado às denúncias de arbitrariedades e corrupção, ele renunciou em agosto de 1843. Essa é a materialidade objetiva da realidade (desconsiderada pela memória e, em especial, pela dramaturgia).
A falta de entendimento entre os líderes farroupilhas dissolveu o já precário governo ambulante das carretas, sendo insustentável a tese de existência de um Estado farroupilha, e o movimento passou a ser uma expressão de caudilhos, de bandos comandados por lideranças carismáticas e valentes, mas completamente débeis como estadistas.
Eles não tinham a pompa televisiva, habitavam rusticamente e não eram clones da representação chancelada pela indústria cultural dos senhores sulistas norte-americanos, modelo estético da minissérie.
O constrangedor é que os artífices da memória impuseram ao Rio Grande do Sul um líder autoritário e antiparlamentar, contraditoriamente adotado como ícone protetor da Assembléia Legislativa, com direito a mural e representação em bronze no pórtico de entrada, e os senhores de escravos como heróis regionais. Essa memória, portanto, é a conservação e reprodução de um espaço simbólico do antigo regime, cultuada civicamente, mas operando através da indústria cultural.
Quando o barão de Caxias chegou ao Rio Grande do Sul para comandar o exército imperial, em 1842, constatou que o governo farroupilha era uma ilusão. Pacificou a província negociando individualmente com os chefes e com o “governo” do simulacro de república.
Rigor crítico
Determinou que não se suspendessem mais as ações das armas quando ocorressem as infindáveis rodadas de conversações de paz, percebendo que nisso estava a sobrevivência insurrecta. Escreveu ao ministro imperial Jerônimo Coelho que, em vista “do estado de desunião entre os rebeldes, não sei com quem se poderá tratar, com probabilidade de bom resultado”. Então, estabeleceu a estratégia que levaria os farroupilhas à derrota. Ao mesmo tempo em que “reconhecia” a representação formal do governo insurrecto, Caxias passou a negociar direta e sigilosamente com os caudilhos, decifrando esse imperativo regional. Nesse processo, fornecia salvo-condutos e concedia o perdão do imperador. Bento Gonçalves e outros líderes realizaram acertos secretos em separado com Caxias enquanto os confrontos bélicos prosseguiam, aguardando que o “governo farroupilha” concluísse as negociações para obter a anistia.
Nesse processo real, muitos heróis inventados contemporaneamente traíram seus pares, participaram de um jogo de cena, parecendo estarem em armas, enquanto Caxias ia costurando as negociações e isolando os rebeldes mais irrequietos.
O fato de Bento Gonçalves desconsiderar a delegação institucional do governo que ele foi titular por sete anos e fazer um acordo sigiloso com Caxias constitui claramente uma traição aos seus camaradas. Esses são os fatos! Quando considerados, as narrativas historiográficas ou estéticas se diferenciam da fandangação dos fenômenos e dos festejos da memória do civismo carnavalesco. A realidade possui discursos intrínsecos que os estilos estéticos não conseguem subverter. Contra “provas” não há interpretação que resista ao rigor crítico.
Fratura no panteão
Entretanto, a minissérie A casa das sete mulheres é também antinômica. Não existe uma articulação absolutamente coerente e agregada ao memorialismo pilchado. Quando os roteiristas recorrem a elementos históricos, a própria memória, como versão generalizada, sofre alterações. Essa transposição de “fatos” termina ingressando no imaginário fragmentadamente. Assim, o efeito no Rio Grande do Sul é diferente do que no resto do país e em outros públicos. O habitante sulista até então possuía, no geral, uma noção gentílica de guerra de libertação regional, dos farroupilhas como heróis abolicionistas, republicanos, levados ao separatismo por contingências, líderes de uma espécie de congregação harmoniosa e fraterna na promoção do bem. Em alguma medida, esses paradigmas foram quebrados.
Quem sabe se as fissuras na memória regional, redimensionada na recepção do telespectador, não assuma a proporção de um significativo processo de alteração de sentidos e se possa olhar para o passado com alguma racionalidade, consciência de sua constituição social e dimensão/limites da existência de seus personagens? Parece que um primeiro efeito nesse aspecto é o desconforto manifestado por integrantes dos Centros de Tradições Gaúchas formados exclusivamente por negros em comemorar a Semana Farroupilha depois de assistirem a A casa das sete mulheres.
Já é um mínimo de fratura no monolítico panteão construído pelo tradicionalismo, que embotou a grandeza e a complexidade da história sulina em um civismo inócuo, transformando, no exercício cotidiano, senhores de escravos e caudilhos em heróis regionais.
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Historiador e jornalista, professor de Comunicação Comparada e Crítica da Mídia na Faculdade de Artes e Comunicação, e de História e Mídia, no Mestrado em História da Universidade de Passo Fundo, RS