Para o senso comum há duas maneiras de identificar um filósofo: primeiro, quando ele escreve algo que muitos não entendem; segundo, quando emite palpite sobre uma discussão já ultrapassada. Sem pretender usurpar tal título, faço-me valer dessas duas atitudes. O assunto: o impacto das imagens televisivas sobre a consciência de cada pessoa. A preocupação foca a relação entre os atos de violência e a visão que dela temos quando a dimensão dada pela mídia ultrapassa nossa capacidade individual de avaliar o caso.
Uma primeira observação: a consciência humana é limitada. Jamais teremos consciência de tudo ao mesmo tempo. Isso significa que somente temos acesso a fragmentos da realidade, mas nunca temos acesso imediato a tudo. Enquanto escrevo este texto não sou capaz de me concentrar nele e, no mesmo instante, ter consciência do que pode ou não estar ocorrendo numa caverna. Somente Deus pode ter consciência de todas as coisas intuitivamente. Por isso Ele é Deus.
Mas, em se tratando da tecnologia, a coisa muda: existem formas humanas de aumentar a consciência para além daquilo que os nossos sentidos podem concretamente experimentar. Quem assiste à TV, principalmente a um telejornal ao vivo, é capaz de ter consciência de coisas que estão para além de seu alcance físico-geográfico. Logo, a TV, o jornal, a mídia participam da maximização da consciência. É possível, ao mesmo tempo, ver o que está acontecendo numa esquina de São Paulo e, ao mesmo tempo, na mesma tela de TV, ver o que está acontecendo num restaurante no Japão.
A condição de ator
Dito isto, é possível afirmar que o que uma pessoa vê através da TV aumenta sua capacidade de ter consciência. Por isso, ter consciência do que vê é mais fácil do que ter consciência do que não é dado à visão. Mesmo sem ter ido à Lua, é possível ter consciência de coisas que não presenciamos, mas vimos através dos meios de comunicação. E, com certeza, o que vemos nos provoca mais impressão do que aquilo que nos chega por relatos.
Porém, há algo mais: é possível garantir que as coisas que vemos alterem nossa consciência sobre o mundo. E mais, altera a percepção que temos de nós mesmos. Quem se olha no espelho não consegue ficar imparcial. O simples “ver a si mesmo” provoca alterações na própria pessoa que se observa: retoca o cabelo, a maquiagem, ou seja, “quem vê a si mesmo tem como conseqüência a mudança”: alterações acontecem quando somos objetos de nossa própria atenção. Não é a toa que a palavra “refletir”, no latim, fala de uma atividade da consciência, e significa olhar-se no espelho.
Agora, “ser visto” na TV é algo que também provoca alterações em nós. Num assalto a ônibus, em São Paulo, determinado assaltante, ao perceber que estava sendo filmado, deixou de ser o que era. Mas não somente ele: os policiais, os transeuntes etc. Isso fez com que, ao se darem conta de estar sendo vistos, ao vivo, pela TV, cada qual assumisse a função de ator. Um simples assalto deixou de ser um mero caso concreto e se transformou num cenário, onde “ser visto por um público para além do imediato geográfico” não mais estava na mesma ordem psíquica de ser avistado apenas por quem estava geograficamente perto. Da mesma forma para os agentes da segurança: cada qual saiu de sua condição de trabalhador público para a condição de ator. As cenas inconscientes, sobre os heróis de cada um, acumuladas na memória ao longo da vida, então passam a ditar a regra de “como se portar diante das câmeras”, “como se comportar quando se está sendo observado”.
Sentimento “criado”
Se ser observado altera a realidade de quem é visto, surge a pergunta: quem olha vê a realidade ou apenas uma construção? O que é visto está sempre garantido como real? Mais importante: o que vemos nos apresenta uma realidade ou constrói uma outra mais espetaculosa? Ora, quem vê São Paulo pelo noticiário bárbaro tem uma impressão equivocada da cidade. Eis aí o porquê de muitos problemas se tornam maiores que nossa capacidade “real” de pensarmos sobre ele. Ao discuti-los, somos “teleguiados” pela visão e pelo espetáculo, e não pelos dados reais e objetivos. E pior: o bandido deixa de ser um mero bandido e se transforma em agente de espetáculo hollywoodiano. Nos ataques do PCC em São Paulo, a polícia se pôs no lugar fragilizado do bandido que morre. Foi quando as discussões sobre segurança tomaram a rabeira do impacto, e uma compreensão razoável sobre “o que aconteceu” não foi assegurada.
Aí emerge o sentimento que toda impressão deste tipo causa: insegurança, emergência da barbárie, a vitória do mal contra o bem. E muito disto não passa, na maioria das vezes, de um sentimento “criado” por aquilo que vemos. Não que as mortes sejam virtuais, mas às vezes somos escravos das impressões que as imagens nos causam quando nossa mente está “treinada” a transformá-las em espetáculo.
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Mestre em Filosofia Política pela UFG, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Católica de Goiás e Faculdades Alfa, Goiânia