A região do norte do Espírito Santo conhecida como Sapê do Norte, municípios de São Mateus e Conceição da Barra, é ocupada por descendentes de negros escravizados desde o século 18 e também indígenas das nações Tupininkin e Guarani.
A partir do fim da década de 1960 a área passou a ser ocupada por grandes empresas, principalmente a Aracruz Celulose S.A. A ocupação da área quilombola se deu, na maior parte dos casos, de forma ilegal, conforme comprovado pela CPI da Aracruz da Assembléia Legislativa do Espírito Santo. Ao analisar como estas terras foram adquiridas por estas empresas percebeu-se que existiam fortes indícios de ilegalidade no processo.
Segundo a legislação da época, Lei Estadual 617/52, para se requerer a propriedade de terra pertencentes ao estado, o requerente deveria provar que morava na terra e que tinha sobre esta a posse. Condição que não era atendida pela Aracruz. Em muitos casos a empresa utilizava “laranjas” como mostrou a CPI.
A degradação ambiental e a violência contra as comunidades quilombolas e indígenas cometidas pela Aracruz têm sido sistematicamente denunciadas pelo jornal capixaba Século Diário. Em 2003, foram 31 reportagens, 88 em 2004, 96 em 2005 e 89 em 2006. De forma contundente e praticamente solitária os jornalistas do Século têm mostrado todo o processo de destruição. Essa violência inclui a expulsão das comunidades de suas terras, o envenenamento de mananciais, desvios de rios, destruição das fontes de alimentos e de grande parte da biodiversidade, desestruturando as comunidades tradicionais que vivem na área.
Para Simone Ferreira, geógrafa da USP que fez pesquisa nas comunidades quilombolas do Sapê do Norte, “a monocultura do eucalipto quase inviabilizou as comunidades quilombolas, pois elas não tinham mais como pescar e sequer podiam usar a madeira como lenha, pois eram impedidos pelos guardas da Aracruz Celulose”.
Em artigo sobre a violência da empresa Aracruz, o repórter Ubervalter Coimbra, do Século Diário, afirma: “Violência que se manifesta com emprego de milícia armada, com cobertura das polícias Militar e Civil, até contra os que catam restos de eucalipto, inservíveis para produção de celulose, para fazer carvão destinado a uso doméstico ou para pequenas vendas destinadas a garantir a subsistência, vez que não têm terras para produzir nem outros meios para ganhar dinheiro’.
A tentativa da Aracruz de silenciar o Século Diário tem sido intensa: já são 28 processos, dos quais 25 queixas-crime. Em todos os processos a empresa conta com defesa de vários advogados, inclusive de fora do Espírito Santo. O processo nº AP 1513/024050164995 é contra os diretores do Século Diário, Stenka do Amaral Calado e Rogério Medeiros, protocolado em 29 de julho de 2005. É a Arazruz buscando calar o Século Diário por repercutir as denúncias de suas mazelas ambientais, sociais e econômicas.
Além dos dois diretores, também foram alvo de processos os repórteres Flávia Bernardes, Manaíra Medeiros e Ubervalter Coimbra. Na sentença do julgamento da repórter Manaíra Medeiros, a juíza da 3ª Vara Criminal de Vitória Maria Cristina de Souza Ferreira, lemos: “Primeiramente, é sabido que a liberdade de imprensa é um dos pilares que sustentam o Estado Democrático de Direito, tendo sido elevada a princípio constitucional pela Carta Magna vigente após longo e tenebroso período de ditadura militar (…). No caso em tela, verifica-se que a querelada (repórter) se reservou em sua matéria jornalística a descrever os fatos e a criticar a conduta da querelante (Aracruz), que, como é público e notório, por ser uma grande empresa que utiliza como matéria-prima árvores, notadamente eucaliptos, vem efetivando seu plantio em grandes extensões, gerando o que os ambientalistas chamam de deserto verde, pois naquele novo ecossistema é escassa a fauna e flora silvestre”. (http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2006/ 03/348180.shtml)
Podemos terminar com a resposta belíssima de Século Diário à tentativa de intimidação da Aracruz: “Onde e quando for necessário os jornalistas de Século Diário vão confirmar que a Aracruz Celulose pratica mazelas sociais no Espírito Santo, atingindo violentamente populações tradicionais como os quilombolas e índios, além de pequenos proprietários rurais.”)
Ah, se todos agissem assim!
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Antropológo, ativista do EnegreSer — Coletivo Negro no Distrito Federal e Entorno, Brasília