Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como juntar fatos, cacos e bytes

Reflexões sobre o ano que se encerra e projeções para o que começará em breve. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (18/12) pela TV Brasil veiculou a quinta edição especial em formato de balanço do ano que passou e exercício de futurologia sobre o que será destaque no próximo. Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro três convidados com perfis complementares para levar ao telespectador visões distintas da mesma realidade: o cientista político Renato Lessa, o economista Sérgio Besserman e o filósofo Adauto Novaes.

Renato Lessa, professor titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), é presidente do Instituto Ciência Hoje e pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Sérgio Besserman é presidente da Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável da Prefeitura do Rio de Janeiro e professor de Economia da PUC-RJ. Estuda as consequências econômicas e sociais das mudanças climáticas, foi diretor de Planejamento do BNDES, presidente do IBGE e do Instituto Pereira Passos. Adauto Novaes é jornalista e professor formado pela Sorbonne. Foi redator do Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil, dirigiu o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte do Ministério da Cultura e é fundador do Centro de Estudos Artepensamento, por meio do qual organiza ciclos de conferências.

Antes do debate no estúdio, em editorial Dines chamou a atenção para o papel das novas ferramentas de comunicação no mundo: “O veloz processo de fragmentação pelas novas tecnologias de informação está criando um novo compromisso da mídia com o seu público: juntar fatos, cacos, bits e bytes. O jornalismo converteu-se na busca de sentido e dimensão, transformar o jorro contínuo – em tempo real – de irrelevâncias em algo relevante” [ver íntegra abaixo].

Choque de poderes

Na abertura do debate, Dines chamou a atenção para a crise institucional que pode ser deflagrada a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal de cassar o mandato dos deputados condenados no julgamento na Ação Penal 470, que examinou o escândalo do mensalão. Dines ressaltou que o princípio do equilíbrio e da harmonia entre os poderes da República deve ser observado. Renato Lessa relembrou que as rusgas entre o Poder Legislativo e o Judiciário vêm ocorrendo nos últimos anos, mas ganharam dramaticidade com o julgamento do mensalão.

“É uma característica permanente da República que nós temos a partir da Constituição de 1988 a ideia de que temos dois tipos de representação, ambos com acolhida constitucional. Um é a representação clássica, que é a eleitoral: nós, eleitores, elegemos nossos representantes e eles legislam. Mas há uma outra forma de representação, que é exercida pelo Supremo, como guardião da Constituição”, disse Lessa.

Nesse sentido, a Carta Magna brasileira não é apenas um simples conjunto de regras. Ela apresenta um forte conteúdo normativo programático que é interpretado caso a caso e, embora os juízes não tenham sido eleitos no sentido clássico da palavra, acabam representando o interesse público. Lessa comentou que é esperado que o exercício pleno dessas duas formas de representação crie problemas. O sistema político brasileiro terá que conviver com essa superposição dos poderes que, em determinadas situações, cria uma dinâmica confusa.

Crise moral?

Sérgio Besserman disse que o atrito entre os poderes é um aprendizado para a sociedade. A Constituição brasileira é ambígua, o que permite interpretações. “Eu, como outros 196 milhões, passei a maior parte do tempo da Ação Penal 470 pensando da mesma forma que o presidente atual do STF [Joaquim Barbosa]. Irresistível: um negro, vestido de Batman, com dor, fazendo Justiça. Aquele grupo refletiu mais o meu pensamento. Mas, neste assunto de quem cassa o mandato de um parlamentar, aí eu me alinho em termos de pensamento com a Câmara. O risco passa a ser ainda maior: ao invés de uma crise institucional, uma crise moral. Se a Câmara não cumprir a função ritualística de fazer a cassação, a gente vai para uma crise moral, que é muito mais grave do que a institucional”, disse Besserman.

O filósofo Adauto Novaes contou que nos ciclos de conferência que organiza a situação do Ocidente não é vista exatamente como uma crise, mas como uma mutação gerada pela tecnociência, pela biotecnologia e pela revolução da informática. Nenhuma área da atividade humana está livre dessa grande transformação. Novaes sublinhou que a tecnologia também é um fator importante no contexto político brasileiro atual: “Existe um elemento hoje que é o que chamam de ciberdemocracia. Os partidos políticos, sindicatos e a velha imprensa estão perdendo um pouco o monopólio da informação. Uma grande massa começa a se manifestar de maneira direta sobre os acontecimentos sociais e políticos. Isto é um dado importante, hoje”.

A radicalização da ideologia

Dines levou para a pauta de discussão as implicações ideológicas do massacre na escola Sandy Hook, em Newtown (Connecticut, EUA), ocorrido na sexta-feira (14/12). Para ele, há uma ala da direita que quer impor à sociedade norte-americana valores ultrapassados, como o de que é preciso um rifle para garantir a democracia. Dines ressaltou que o mais poderoso lobby americano, Associação Nacional do Rifle, fundada em 1871, com quase 5 milhões de integrantes, controla a carreira política de vários congressistas.

Besserman explicou que economistas e estatísticos veem essa questão de forma simplista. Para eles, em qualquer cultura, sempre haverá pessoas com problemas mentais que, se tiverem armas, cometerão crimes bárbaros. No entanto, Besserman ponderou que se o criminoso usar uma faca ou um pedaço de pau, a extensão dos danos será bem menor do que se tiver à sua disposição um revólver ou um rifle.

Para Renato Lessa, o caso da escola Sand Hook mostra como o sistema político, em algumas situações, torna-se inimigo da vida. Há uma longa tradição da filosofia política que diz que governo e Estado foram inventados para proteger a vida das pessoas: “O que está diante de nós é que países com tradição democrática consolidada, história institucional densa, possuem sistemas políticos que não são capazes de cumprir o fundamento do pacto social, que é a preservação da vida”. Lessa comentou que é impossível alterar a segunda emenda da Constituição dos Estados Unidos, que assegura o direito à posse de armas: “Ela pertence a um mito de origem que aquele país não está disposto a abrir mão, que é a ideia de que ‘eu, enquanto indivíduo, tenho que ter capacidade de resistência contra algum poder despótico que viole os meus interesses’. É o espírito dos founding fathers. Isto está entranhado, é um mito americano. Na cultura política americana eles têm que viver com liberdade. É uma crença forte”.

Mudar a Constituição dos Estados Unidos é virtualmente impossível porque é preciso maioria em todas as assembleias estaduais. Isto dependeria que um presidente progressista nomeasse para a Suprema Corte integrantes com perfis mais liberais.

Correção de rumo

A crise política do Ocidente também foi examinada no programa. Adauto Novaes ressaltou que é preciso encontrar um rumo para o pensamento político: “Existe um prefácio do Paul Valery às Cartas Persas, de Montesquieu, que é muito interessante. Ele dizia que a Era da Barbárie é a Era dos Fatos. Nenhuma sociedade se estrutura e organiza sem as ‘coisas vagas’. ‘Coisas vagas’ quer dizer os ideais políticos, a metafísica, o espírito, coisas não apreensíveis. Eu acho que a gente está vivendo um pouco isso, hoje. A era dos fatos, a dificuldade de encontrar essas ‘coisas vagas’ que de alguma maneira possam nortear o pensamento político”. Os antigos conceitos usados até os anos 1980, como partidos e ideologias, não dão mais conta da realidade. Um exemplo é o conceito da luta de classes.

O Observatório também tratou de fenômenos como caudilhismo de esquerda, populismo de direita e conservadorismo religioso. Na avaliação de Renato Lessa, é preciso pensar sobre a natureza do nosso experimento político. O sistema representativo foi criado no século 18, portanto pode ser considerado recente e ainda está em construção: “Esse sistema tem um princípio interessante, que é o de que muitos escolhem os poucos que vão governar. É uma maneira de evitar a multidão governando diretamente e a monarquia. Então, alguém genialmente inventou um sistema em que todos podem escolher os poucos que governam”.

Renato Lessa explicou que há um requisito para que esse sistema funcione tal como foi imaginado: que existam instituições para organizar a opinião, socializar politicamente as pessoas, estabelecer correntes diferentes de pensamento. São os partidos políticos, criados para que o cidadão não fique sozinho diante da multidão. “O grande desafio é pensar a sobrevivência do sistema representativo ainda nos moldes tradicionais sem a presença desses elementos de mediação, que são os partidos. [Estes] se transformaram – sobretudo em países que ainda não fizeram a democratização densa, como o Brasil – em cartórios puramente eleitorais. São requisitos que a legislação eleitoral impõe para que alguém possa ser candidato e filiá-lo a um partido político”, criticou Lessa. O sistema político acaba permitindo compra de votos, caixa 2 e alianças conflitantes com o programa dos partidos.

Uma crise longe do fim

Os desdobramentos da crise de 2008 ainda estão em curso. Sérgio Besserman avalia que as transformações provocadas por ela são mais profundas do que o impacto de outras revoluções, como o Iluminismo. “Algo na linha de nos tornarmos obrigatoriamente diferentes do que somos. Na Economia, a grande recessão de 1873 levou vinte anos. Veio a de 1929, roubou o nome ‘grande recessão’ e levou vinte anos. Não existe nenhuma razão para imaginar que a grande recessão de 2008 não vá também ser um processo histórico que exija mais tempo”.

O programa refletiu sobre a interação da sociedade com a natureza do planeta. Na avaliação de Sérgio Besserman, a relação precisa mudar urgentemente. “Nós não estamos mais obtendo certos serviços que ela nos prestava e que não consegue se recuperar para continuar prestando, com a agravante de que quem sofre com a maior quantidade de furacão, inundação, seca e doenças são os pobres. [O drama] não é distribuído igualmente entre as pessoas do mundo”.

***

Informação e contexto

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 670, exibido em 18/12/2012

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Seguindo uma tradição iniciada em 2008, a última edição do ano tem um formato diferente: usamos a pauta dos últimos dias para montar uma projeção para as 48 pautas semanais de 2013.

O elenco deste ano é ligeiramente diferente dos anteriores, já que nem sempre é possível conciliar nossa agenda com as dos observadores convidados.

Participam desta edição Renato Lessa, cientista social especializado em teoria política; Sérgio Besserman Vianna, economista e ambientalista, e Adauto Novaes, filósofo e jornalista. Todos são professores e comunicadores, pensadores que dominam a arte de fazer pensar.

O veloz processo de fragmentação trazido pelas novas tecnologias de informação está criando um novo compromisso da mídia com o seu público: juntar fatos, cacos, bits e bytes. O jornalismo converteu-se na busca de sentido e dimensão, transformar o jorro contínuo – em tempo real – de irrelevâncias em algo relevante. O que antes se chamava de imprensa, virou uma enorme pressão para evitar que o cidadão-leitor se transforme num mero assinante e consumidor de um serviço informativo.