Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quatro patas bom, duas patas ruim

Este título é o slogan dos animais que tomaram o poder numa fazenda, expulsando os seres humanos, no excelente livro Revolução dos Bichos, de George Orwell. Começou a ser usado para fazer a revolução contra os homens; continuou, após a vitória, agora contra qualquer companheiro animal que contestasse o poder dos porcos que lideravam o grupo, ou contra os companheiros porcos que não concordassem sistematicamente com o porco-chefe, Napoleão. A palavra dos opositores era abafada pelo grito da massa: “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”.

O debate político atual está abafado pela gritaria, pela repetição de slogans, pela cretinice da argumentação. É quase impossível extrair lições do caso do mensalão, tal o alarido das torcidas e o bater das ferraduras. Mas uma lição, acredita este colunista, tem de ser aprendida: a TV ao vivo é incompatível com um julgamento. A presença da TV distorce o comportamento; basta observar um grupo de pessoas em silêncio que, tão logo a TV chega, começa a pular e a gritar, como se outra coisa não fizesse o tempo inteiro.

A Suprema Corte americana não permite TV. Aqui, durante muito tempo, também não se permitiu. Aliás, nem fotos eram possíveis: a imprensa contratava ilustradores que desenhavam cenas do julgamento. O colunista Elio Gaspari, inteligente, ponderado, é favorável à presença da TV: acredita que determinados comportamentos pouco recomendáveis na Corte só são possíveis porque falta transparência aos trabalhos. Este colunista discorda: a síndrome do “Alô, Mamãe” faz com que todos fiquem mais vaidosos e menos compenetrados.

As tevês legislativas tiveram um efeito devastador sobre os cabelos de Suas Excelências: foi um festival de perucas e tinturas, frequentemente mal feitas, enfeando ainda mais o cenário. Surgiram os ternos novos, os especialistas em entrevistas falando o tempo todo – uma chatice, que em nada contribui para os trabalhos. Chatice que, a propósito, não era nada imprevisível: sempre houve parlamentares especializados em fazer discursos curtos, com ou sem plateia, para que constassem na Voz do Brasil. E a Voz do Brasil nem imagem tem!

Até que ponto a rudeza com que se enfrentaram os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski não terá sido ampliada para que nenhum aparecesse na TV como perdedor? Até que ponto a dramática saída do plenário do ministro Marco Aurélio Mello, balançando a capa (que tem algum nome jurídico que este colunista jamais consegue recordar), não terá a ver com a imagem da TV?

No famoso debate entre Kennedy e Nixon, a verdade mostrou duas faces. Para quem lê o que foi discutido, Nixon ganhou de goleada. Para quem vê o debate, o jovem Kennedy, bronzeado, bem barbeado, descansado, bateu o soturno, cansado Nixon, que ainda por cima tinha no rosto a sombra da barba que já nascia. Um solar, radiante; outro sombrio, exausto. Como ninguém leu o debate e todos o viram, Kennedy saiu como o grande vencedor – do debate e da eleição.

Mas vale a pena fazer outra pergunta: qual a vantagem, para o país, de ter o julgamento transmitido pela TV? O cidadão comum sequer entendia o que diziam os doutos ministros, que jamais solicitam, só deprecam, jamais concordam, apenas anuem. Terá alguém aprendido algo com tantos meses de debates em um só julgamento?

Quando algo é implantado, torna-se difícil desimplantá-lo. Mas vale a pena discutir se apresentação de um julgamento pela TV traz mais vantagens do que desvantagens. E, se for o caso, que se desimplantem as transmissões. Julgamento é a aplicação da lei, não um espetáculo midiático. E, aproveitando a oportunidade, desativar as tevês legislativas e outros penduricalhos caríssimos faria muito bem aos cofres públicos, sem afetar de maneira alguma os telespectadores.

 

Voltando aos bichos

A Revolução dos Bichos conta como os animais tomaram conta da fazenda, como os porcos tomaram a liderança dos animais, como um porco derrotou seu maior adversário (lembra muito a disputa entre Stalin e Trotsky, na União Soviética). Os homens eram odiados; quatro pernas era bom, duas pernas era ruim. Até que os porcos passaram a negociar com os homens e aprenderam penosamente a andar sobre duas pernas. Os animais, perplexos, assistindo a uma confraternização entre homens e porcos, já tinham dificuldade em distinguir quem era homem, quem era porco.

 

Os selvagens e o jornalismo

Houve época em que as ameaças aos jornalistas vinham de regiões longínquas, com conflitos de terras, guerras entre grupos econômicos, coronelismo em pleno funcionamento, e atingiam especialmente profissionais de pequenos veículos, sem condições (ou vontade) de dar-lhes cobertura. O Brasil está mudando para pior: agora, as ameaças aos jornalistas são feitas, impunemente, nos estados mais desenvolvidos, e atingem profissionais de veículos da maior importância. Houve pressões diversas que levaram o jornalista Fábio Pannunzio, da Rede Bandeirantes, a desistir de seu blog, e o jornalista André Caramante, da Folha de S.Paulo, a precisar se esconder, sob risco de vida.

E as pressões chegam ao rico Paraná – mais do que ao Paraná, à capital, Curitiba. O jornalista Mauri König, 46 anos, 22 de profissão, trabalha na Gazeta do Povo, um jornal grande, e é diretor de uma grande entidade, a Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Vem recebendo ameaças de morte, extensivas à sua família. Foi obrigado a esconder-se, sob proteção de escolta particular. Há quem diga que deixou o país temporariamente, para proteger-se até o caso ser esclarecido. Pior: tudo indica que König esteja sendo ameaçado por quem teria a missão de protegê-lo, policiais.

Aparentemente, os problemas de König começaram quando fez reportagens, em maio último, sobre uso irregular de carros da polícia por delegados. Carro público era utilizado para fins particulares – até mesmo para visitas a bordéis. A série chamava-se “Polícia fora da lei”.

Num dos telefonemas dados a König, um anônimo afirmou ser policial militar e disse que ouviu de colegas que cinco PMs do Rio tinham ido a Curitiba para metralhá-lo.

O Gaeco – Grupo de Ação contra o Crime Organizado, do Ministério Público, abriu investigação sobre o caso. Agora é esperar que os criminosos sejam identificados e presos, para que König possa voltar a trabalhar – e para que o público volte a ter as informações que merece e pelas quais paga.

 

Risco permanente

Em São José dos Campos, SP, o radialista João Alkimin, que move campanha para banir da cidade as máquinas caça-níqueis (que ele vê, que todos veem, mas que muitas vezes os policiais têm dificuldade de ver) já sofreu dois atentados a bala. No último, a ação foi filmada por câmeras de segurança na rua. Mas a polícia não consegue agir porque, apesar da gravação, alega falta de informações. E a coisa não para nos atentados: há fortes indícios de que o esquema de gravações telefônicas clandestinas montado pela PM em Presidente Prudente, SP, vem grampeando sistematicamente os telefones de Alkimin. Foi ele que pediu a abertura de inquérito sobre a grampolândia, apresentando nomes de desembargadores, jornalistas e policiais que também estariam tendo seu sigilo telefônico violado de maneira ilegal. A investigação está sendo iniciada.

Alkimin tem um azar na vida: é primo do governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB, e ambos não se bicam. Mas qual o problema? A imprensa em geral, sempre que toca no tema, passa rapidamente pela questão dos atentados e do funcionamento dos caça-níqueis e prefere se concentrar em profundas pesquisas para tentar demonstrar que o governador e o radialista não são primos. São – e se não fossem, isso modificaria em alguma coisa a reportagem que não é feita?

 

Silêncio da imprensa

O movimento surgiu quando se soube que Moacir, craque do Flamengo nos anos 1950, reserva de Didi na Seleção campeã do mundo de 1958, vivia em condições precárias, quase sem recursos, numa cidadezinha do Equador. Rapidamente houve a mobilização dos interessados e, em cima do drama de Moacir, criaram mais uma sinecura: os jogadores campeões do mundo em 1958,1962 e 1970 (por algum motivo, os ganhadores de Copas posteriores a 1970 não ganham nada) receberam um “auxílio especial” de R$ 100 mil; e os que estiverem em situação mais difícil receberão também um auxílio mensal no valor do teto pago pela Previdência. Que belo gesto! Como é bom ser bom com o dinheiro dos outros!

Pois vamos à imprensa. Ninguém fez um levantamento da situação financeira dos jogadores campeões em 1958, 62 e 70. Pelé estará precisando dos R$ 100 mil? Tostão certamente não está, tanto que recusou o “auxílio especial”. Mazolla, empresário que vive na Itália com seu nome original, José Altafini, certamente não precisa. Leão é técnico, Pepe foi técnico por muito tempo. E os outros? Bem que os repórteres poderiam mostrá-los, e mostrar também se necessitam do “auxílio especial” que o país dá aos atletas que lhe trouxeram tantas glórias.

Poderiam levantar também a vida de outros atletas, de outros esportes, que também trouxeram glórias ao país – dos descendentes de Ademar Ferreira da Silva, campeão olímpico de salto triplo, a Maria Esther Bueno, uma das maiores tenistas da história; dos descendentes do recém-falecido Nelson Prudêncio, também astro do salto triplo, até os campeões e campeãs de vôlei e basquete. Por que o privilégio ao futebol profissional? Os irmãos Grael, nos barcos, e Nélson Prudente, nos cavalos, merecem menos respeito, menos homenagens?

Os meios de comunicação não podem se reduzir a meros transmissores de mensagens oficiais. Que tal complementar as informações?

 

Como…

Thelma Reston, ótima atriz, morreu na semana passada. Qual sua idade?

** Portal 1 – “Morre aos 73 anos atriz da Globo Thelma Reston; veja fotos da carreira”

** Portal 2 – “Aos 75 anos morre a atriz Thelma Reston; último trabalho foi Aquele Beijo”

** Portal 3 – “Atriz de Aquele Beijo morre aos 73 anos”

** Portal 4 – “Thelma Reston morreu aos 73 anos”

** Portal 5 – “Morre, aos 75 anos, a atriz Thelma Reston”

** Portal 6 – “Thelma Restou morre aos 73 anos”

A propósito, Thelma Reston nasceu em Piracanjuba, Goiás, em 6 de julho de 1939, há pouco mais de 73 anos.

 

…é…

De um press-release publicado em jornais impressos exatamente na forma original:

** “Caso queira entrevistar o autor ou a capa do livro, por favor, entre em contato”.

Este colunista até que gostaria de entrevistar a capa do livro, mas parece que ela é chata.

 

…mesmo?

De um portal noticioso, importante, da internet:

** “Jovem acusado de disputar corrida com dois veículos é autuado em flagrante”

Certa vez, um delegado geral de polícia em São Paulo, no governo anterior do tucano Geraldo Alckmin, foi almoçar em Pindamonhangaba a bordo de duas viaturas. Mas é difícil que o jovem acusado tenha corrido com dois veículos ao mesmo tempo. Terá ele, pessoalmente, disputado a corrida contra dois veículos? Nem o pessoal do PCdoB, que acreditava que o líder chinês Mao Tsé-tung nadava mais rápido que o campeão olímpico Mark Spitz (e com idade bem mais avançada, e em distâncias muito maiores), acreditaria nisso. Haveria, talvez, um terceiro veículo implícito na notícia?

 

É assim mesmo

Um grande jornal impresso, de circulação nacional, atribui a nacionalidade belga ao glorioso esquadrão do Cluj, adversário do Inter de Milão. O Cluj, na verdade, é romeno, da região da Transilvânia. Em outras épocas, Cluj foi húngara. Mas nunca chegou à Bélgica. Cidades, como se sabe, detestam viajar.

 

As não notícias

Título de um grande portal noticioso da internet, a respeito da violência no trânsito:

** “Homem morre ao ser atropelado por pelo menos 10 carros no Paraná”

Pelo menos? Ninguém contou quantos carros estavam envolvidos no atropelamento? Se ninguém contou, como é que se sabe que havia pelo menos dez carros?

Mas há outras não notícias caprichadas, narrando fatos que podem eventualmente ter acontecido, ou não, da maneira como foram narrados, ou não:

** “Dois morrem e quatro ficam feridos em suposto racha”

Se não se tem certeza a respeito do racha, será que nenhum repórter compareceu ao local, baseando-se apenas em telefonemas para os vizinhos? Como se sabe com tanta segurança quantos morreram e quantos ficaram feridos se não se sabe direito nem o que é que aconteceu?

Já que a imprensa insiste em publicar não notícias, que tal exigir do jornaleiro que entregue as publicações contra não pagamento?

 

E eu com isso?

Mas notícias há que são notícias com toda a certeza. Primeiro, porque aquilo que antigamente se chamava “condicional” (e hoje recebe o estranho nome de “futuro do pretérito”) neste setor do noticiário foi abolido: ou é ou não é. Segundo, porque a mesma notícia sai em vários locais diferentes, indicando cruzamento de informações – ou uma assessoria de imprensa que ganhou a confiança de todos.

Essas notícias aconteceram mesmo:

** “Daniele Suzuki leva Kauai para passear de gravata”

** “Bieber mostra seu jatinho particular”

** “Narcisa Tamborindeguy curte show de Madonna em São Paulo”

** “Jessica Biel passeia com seus cães por NY”

** “Modelo transborda sensualidade no centro de São Paulo”

** “Milley Cyrus usa looks ousados em evento”

** “Paula Fernandes usa tomara que caia decotado em evento”

** “Alessandra Ambrosio brilha em evento”

** “Noite de encontros no Rio de Janeiro”

** “Kate Moss faz ensaio em praia francesa”

** “Daniel curte dia na praia com a família”

 

O grande título

Às vezes a gente se repete. Mas não é a gente que se repete: é que aquele índio americano de filme andou mexendo de novo nos títulos.

** “Presidente sul-coreana mudar com Coreia do Norte”

Mas também há novidades, uma delas fantástica: a tecnologia está presente de fato em tudo!

** “Mouse adaptado ajuda deficiente motor a operar computa…”

Dois detalhes: primeiro, o título estava assim mesmo, com reticências. Segundo, havia espaço para completar a palavra. Não completaram porque não quiseram.

Um título (de jornal impresso, dos grandes) pode provocar múltiplas ilações – inclusive a respeito das atividades das pessoas que entraram em óbito.

** “Veículos circulavam na contramão em rua da Vila Formosa; um deles atingiu carro onde estavam os dois mortos”

Mas o grande título da semana, com todo o respeito, cabe a um discurso da excelentíssima senhora presidenta, que não foi nada eleganta ao falar:

** “Dilma quer ‘pibão grandão’ em 2013”

Que seus desejos sejam atendidos.

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[Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados]