Existe algo em mim que pulsa como antigamente, e não é nada disso que vocês estão pensando. É alguma coisa que havia esquecido na juventude, perdida talvez entre lembranças da primeira edição do Incidente em Antares, do Érico Veríssimo, ou o fascículo dedicado a Geraldo Vandré na coleção da Abril Cultural, e a metade do período Geisel, quando ele demitiu o Sílvio Frota, nomeou o Dilermando Gomes Monteiro e o novo comandante do II Exército concedeu entrevista afável à imprensa. Lá, ainda traumatizada com o assassinato de Vladimir Herzog, a atriz Dina Sfat traduziu nossa inquietação em uma frase apenas, mais ou menos a seguinte: “General, eu morro de medo só de estar aqui na sua frente”. Farda metia medo, estrelas gemadas paralisavam de pavor e Dilermando de sorriso amistoso e fala fácil tinha os ombros enfeitados com várias delas.
Naquele tempo, pulsava dentro de nós uma indignação cívica que o Henfil resumiu na exortação “Indigne-se dois minutos por dia”. Militares eram, então, o repositório das nossas angústias e frustrações. Muitos de nós saboreávamos anúncios fúnebres nos jornais quando de uma alta patente. Pura bobagem, mas eram tempos difíceis, e acompanhávamos nos dias seguintes a publicação do convite para a missa de sétimo dia. Bebíamos a isso, os tolos jovens de então, indignados com tudo e diante de tudo. Tinha uma colega que não dava esmola para “acirrar as contradições” e conheci um sujeito que aliciava meninas entusiasmadas para o “aparelho” de um incerto Movimento 26 de Outubro, do qual ninguém ouvira falar. Comeu-se muita gente em nome da pseudoluta libertária.
Leitura obrigatória
Uma das coisas que pulsavam era o velho e bom Jornal do Brasil do Tristão de Athayde esgrimindo com Nélson Rodrigues, que escrevia no reacionário O Globo, chamava D. Hélder Câmara de “bispo vermelho” e desancava a esquerda com tamanha maestria que despertava simpatia – ninguém podia ser tão direitista assim, muito menos o autor de Vestido de Noiva, Beijo no Asfalto, Engraçadinha e tantos outros textos verdadeiramente revolucionários. Jamais pude imaginar o Nélson em confraternização com Plínio Correia de Oliveira ou Gustavo Corção, dois pilares do obscurantismo. O grande dramaturgo e cronista esportivo tinha uma missão, salvar o filho “subversivo” preso e torturado pelos militares que lhe cobravam na forma das “Confissões de Nélson Rodrigues” publicadas duas vezes por semana em página inteira no Globo não a liberdade de Nelsinho, mas a manutenção de sua vida no cárcere.
Alceu Amoroso Lima, que assinava Tristão de Athayde, possuía sólida cultura humanista, era católico fervoroso de família, tinha uma irmã freira e não admitia a maldade com o arcebispo de Olinda e Recife. Aliás, não admitia nada que viesse do outro lado. Já no fim da vida, Nélson Rodrigues contou que durante anos, em todo Natal, telefonava para o Alceu, numa tentativa de se aproximar. “Ele dizia sempre que estava rezando muito por mim…” lembrou, lamentando a falta de amor cristão num católico tão devoto.
Pois o JB reunia Alceu, Carlos Drummond de Andrade, Armando Nogueira, João Saldanha, José Carlos Oliveira, Alberto Dines, Wilson Figueiredo, Carlos Castello Branco… é bom parar porque a memória já começa a falhar. Era leitura diária obrigatória, imprescindível, para sabermos nas entrelinhas o que acontecia nos meandros do poder militar, nas trincheiras da liberdade de expressão, nos palcos da cultura censurada. De certa forma e em boa medida, o Jornal do Brasil adotou os órfãos do Correio da Manhã da Dona Niomar Moniz Sodré Bittencourt, baiana de estirpe, filha do jornalista, advogado e deputado estadual Antônio Moniz Sodré de Aragão. E durante todo o regime militar e até na redemocratização, manteve a postura digna de defesa da liberdade de imprensa e da pluralidade de opiniões.
Bolo dividido
O fim da ditadura militar, o vazio intelectual, cultural e político que se seguiu e logo mais a onda neoliberal na economia mundial formaram o caldo para a transformação da imprensa brasileira no que é hoje. Sem reportagens, os jornais se encheram de releases, sem a censura prévia dos coronéis, as revistas perderam o discreto charme da Veja de Mino Carta, por exemplo, que, para driblá-la e noticiar uma crise política, era capaz de acrobacias do tipo “Uma nuvem cinzenta pairava no céu de Brasília, na manhã da terça-feira da semana passada, sobre o prédio do Congresso Nacional. Embora o Instituto Nacional de Meteorologia previsse sol e baixa umidade do ar, era possível sentir a proximidade de uma tormenta… blábláblá e blábláblá”.
Vazio de lideranças políticas e intelectuais, o país se voltou para o elogio da mediocridade, primeiro como afirmação da liberdade de opinião e de expressão, o extravasamento da demanda reprimida por tantos anos, mas depois por falta absoluta do que botar no lugar. Era a constatação de que uma geração se perdeu no caminho do golpe militar e nada podia substituí-la. É emblemático que nossos maiores valores na música popular, por exemplo, sejam os de três décadas atrás, dos festivais de música.
A televisão cresceu e ocupou espaço na produção de cultura e na formação da consciência crítica, perdeu-se rapidamente o hábito de ler, os jornais foram definhando e morrendo, as revistas minguando e forjou-se aí o jornalismo burocrático de hoje, sem curiosidade, sem apuração, jornalismo de objetivos como o que dá espaço aos dossiês, independentemente do conteúdo, apenas pelos nomes citados. Jornalismo de ocasião, de fachada, de empresários em cujas veias jamais correu tinta de rotativa. Jornalismo social, interessado e interesseiro, e cúmplice acima de tudo. Ninguém fala mal de ninguém, ninguém aponta erro de ninguém, ninguém provoca ninguém. Parece que o bolo da mídia está dividido e cada um tomou posse do pedacinho da informação que lhe cabe e pelo qual deve zelar apenas para não perder o que restou de credibilidade própria.
O fim da indignação
A imprensa se descaracterizou, perdeu sua função social, a razão mesma de existir. Como diz Millôr Fernandes, “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. E disse isso há tanto tempo que talvez nem ele se lembre mais se foi no ocaso do Estado Novo ou na ditadura militar de 1964. Na virada dos anos 60 para 70, jovem repórter do Correio da Manhã, vivi uma experiência nada heróica nem gloriosa, mas digna de registro como instantâneo de uma época: na cobertura de uma solenidade no Monumento ao Soldado Desconhecido, no Aterro do Flamengo, a imprensa foi segregada a um perímetro delimitado por soldados da Aeronáutica dispostos a distância de um metro entre si. Quando o general Médici caminhava para depositar a coroa de flores, o fotógrafo Luís Pinto, do Globo, saiu do limite na tentativa de um ângulo diferente e foi praticamente arrastado para um jipão, que partiu célere.
Todos nós vimos e, sem combinar nada, depositamos no chão nosso material de trabalho, primeiro os fotógrafos, seguidos por repórteres, câmeras, canetas, laudas dobradas e cadernos de anotação. Foi um gesto simbólico, afinal a agência de notícias oficial distribuiria fotos e textos mais tarde, mas nossa atitude era um eloqüente protesto contra o absurdo da prisão. E surtiu efeito: em questão de minutos o veículo militar retornou e o fotógrafo foi levado ao espaço onde estávamos.
Esse breve episódio me voltou à mente ao ler que os repórteres setoristas no Palácio do Planalto foram impedidos de acompanhar solenidades triviais por receio de que importunassem o presidente com perguntas sobre dossiê, corrupção e outros temas incômodos para Sua Excelência. Por que, então, não voltaram às redações e participaram à chefia a inutilidade de darem expediente na sede do governo? Por que os jornais não publicaram editoriais contra a medida discricionária? Onde foram parar os dois minutos de indignação? Valeram apenas sob a ditadura militar?
Procura-se a dignidade
No ano passado escrevi para a Câmara dos Deputados um livro sobre a atividade parlamentar do advogado, jornalista e deputado Doutel de Andrade. Foi um trabalhista inaugural do PTB getulista, e o que quero relatar aqui é um fato marcante da sua carreira de repórter na cobertura da Câmara, no começo dos anos 50. Escrevia em O Jornal uma resenha política diária e nela criticou com acidez resolução da mesa diretora facilitando aos deputados a importação de carros americanos para uso próprio, através do Banco do Brasil.
Nos dias atuais seria uma gota no oceano de mordomias, mamatas e irregularidades impunes no parlamento. Naquele fim de 1951, entretanto, escandalizou e contrariou profundamente o secretário-geral da mesa, deputado e coronel do Exército Rui de Almeida, um dos artífices da manobra que ficou conhecida como “Lei Cadillac”. No dia da publicação da denúncia, Doutel encontrou o deputado à entrada da Câmara, braços estendidos impedindo-lhe a passagem: “Aqui você não entra mais”, esbravejou. O repórter abriu passagem com um empurrão e a frase: “Entro, porque o senhor não é dono da Câmara”. Esta firmeza, este destemor estava baseado na responsabilidade de sua tarefa diária, responsabilidade além do patrão, Assis Chateaubriand, do deputado secretário da mesa ou do coronel de pijama que vivia dentro dele. Responsabilidade com o leitor, com a atividade de repórter, com sua própria consciência cívica e profissional.
A pergunta que me ocorre é: será possível atitude semelhante nos dias de hoje? E outra: mais do que a indignação momentânea de que falava Henfil nos anos de chumbo, onde foi parar a dignidade da profissão?
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Jornalista e escritor, diretor do programa semanal Diálogo Brasil, às quartas-feiras na TV Pública (blog: Visão Crítica)