Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Justiça garante direito à comunicação

Engenho Maranguape é um dos bairros mais pobres do município de Paulista, Região Metropolitana do Recife. A história desse bairro não é muito diferente da que os meios de comunicação relatam diariamente sobre outras periferias das cidades brasileiras – precária infra-estrutura habitacional e de transporte, altos índices de desemprego, de analfabetismo e de violência, urbana e doméstica, ausência de saneamento básico, posto de saúde e proteção policial. No entanto, o que grande parte do público não sabe é que em Engenho Maranguape há uma intensa vida comunitária pela qual seus moradores lutam diariamente para amenizar a extrema pobreza e o descaso do poder público em atender suas necessidades básicas. De fato, é a ação coletiva e a organização de seus moradores que lhes garantem a sobrevivência nesse cotidiano de violência e de privações.

Essa organização e a força do coletivo não começaram do dia para a noite. Ao contrário, são o resultado de um lento processo de mobilização e de envolvimento de homens, mulheres, jovens e crianças do bairro. De início, apenas algumas reuniões esporádicas, estimuladas pelo “boca a boca” e pela distribuição de panfletos, depois a construção de uma sede para conselho dos moradores, no qual eram aficionados avisos e informes dos projetos e propostas, mais tarde a colocação de “rádios de caixinha” nos postes, e, finalmente, a divulgação das notícias por carros de som. Tudo feito com a contribuição dos moradores e dos pequenos comerciantes da região e de acordo com seus interesses específicos.

Em outubro de 2004, já havia organização e amadurecimento suficientes para dar um passo a mais e constituir formalmente uma associação comunitária, sem fins lucrativos, que pudesse pleitear uma licença radiofônica. Assim, conforme determina a Lei 9612/98, os moradores de Engenho Maranguape constituíram a Associação Rádio Comunitária Alternativa FM, registraram seu Estatuto e solicitaram ao Ministério das Comunicações a referida licença, que foi protocolada junto ao Departamento de Outorga de Serviços em 25 de novembro de 2004.

A partir de então, passaram a acompanhar regularmente o processo. Mas, diante do silêncio do Poder Executivo Federal em se manifestar sobre o pleito formulado, iniciaram as atividades radiofônicas em estrito cumprimento a todas as determinações da Lei 9.612/98. As necessidades urgentes dos moradores de Engenho Maranguape não podiam esperar mais, e, com o funcionamento da emissora, os anos de omissão do poder público estão, a cada dia, sendo contornados por uma ação coletiva que, ao se fortalecer, também potencializa a força de cada um dos moradores na luta pela sobrevivência e por uma vida com dignidade.

De acordo com os últimos dados do sistema penitenciário de Pernambuco, sintetizados para o Plano Metropolitano de Política de Defesa Social e Prevenção à Violência da Região Metropolitana de Recife, Engenho Maranguape é o bairro da periferia de Paulista que tem maior número de presos por domicílio. Os crimes são praticados, em sua maioria, por jovens com armas de fogo e são também os jovens as principais vítimas – 1% delas têm entre 1 e 12 anos, 11% entre 13 a 17 anos, 60% entre 18 a 30 anos e 26% entre 31 a 65 anos.

Presença de peso

Assim, com o intuito de afastar os jovens do crime e das drogas, a emissora elaborou o projeto Jovem na Mídia para a capacitação em locução e jornalismo de rádio comunitária. Além de preparar os jovens para o exercício de uma profissão, o projeto também lhes devolve a auto-estima e uma perspectiva para lutar por aquilo que cada um deles projeta para si mesmo. As crianças também estão contempladas nos projetos da Autora. Com a Escolinha Comunitária Methódio Esporte Clube, a emissora, com a ajuda do preparador técnico, mantém um curso de futebol para crianças e adolescentes entre 5 a 16 anos. A violência contra a mulher, na forma de agressões físicas e discriminação, faz parte do cotidiano de Engenho Maranguape e a emissora também tem uma atuação destacada nesse campo.

Há programas especialmente para mulheres, nos quais são divulgadas informações sobre doenças e discutidas formas de inclusão no mercado de trabalho, reestruturação familiar, conscientização dos agressores ou potenciais agressores, entre outros problemas que são enfrentados todos os dias. O empenho na proteção e no resgate da dignidade feminina já deu seus primeiros frutos com o projeto Aprendendo a discutir Cidadania, com a temática específica sobre a violência doméstica.

A emissora está muito presente na vida dos mais carentes do bairro. Arregimentando o apoio de moradores, comerciantes e artistas da região, mantém o projeto Sopão, que atende a 200 pessoas semanalmente, além de freqüentemente distribuir cestas básicas. Outro projeto especial é o Espaço Nascer, no qual, a cada três meses, são ministradas palestras sobre direitos humanos, são distribuídas roupas, fotos para documentos são tiradas, além de cortes de cabelo e aferição de pressão e medida de peso, feitas por enfermeiras voluntárias. Demais disso, os serviços de utilidade pública são amplamente desenvolvidos.

O centro da comunidade

A emissora mantém um serviço de “achados e perdidos” de documentos, seu microfone é aberto à divulgação de campanhas do Ministério da Saúde, da prefeitura do Paulista e a todos os debates de interesse da comunidade, já conseguiu trazer ônibus do Instituto Tavares Buril para tirar o RG de moradores, esteve presente nas reivindicações contra a redução de 50% da frota de ônibus da linha 991 Engenho Maranguape/Via Janga e, atualmente, está tentando fazer parte do Programa Leite de Pernambuco, da Secretaria de Produção Rural e Reforma Agrária.

O zelo com a programação constitui outra característica da emissora. Conforme o estatuto que a define, é proibido: palavra de baixo calão, ataque a pessoas, políticos e times de futebol, discriminação de cor, raça, credo religioso, além de não se falar de política partidária para promover candidato. Dessa forma, não são tocadas músicas que denigram as mulheres, crianças e idosos e se dá preferência aos artistas e agremiações locais, como o apoio que a emissora dá ao bloco “Os linguarudos do Engenho Maranguape”.

Há muito por fazer nesse Engenho onde todos estão envolvidos, por isso a emissora tem muitos projetos em pauta, esperando o apoio de organizações não governamentais e do poder público. Alguns deles são: a criação de uma escola de informática, de um conservatório de música e, como muitos moradores do bairro são pescadores, a preservação e divulgação turística do mangue da região. Sem dúvida, a Rádio Comunitária Alternativa é mais que uma emissora, é o centro para onde converge toda a vida da comunidade, é o lugar de onde brota a força e a auto-estima do bairro.

Outra visão

No dia 4 de maio de 2006, agentes da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) compareceram à sede da Associação Rádio Comunitária FM. No percurso dessa diligência, os agentes constataram que a única irregularidade estava na ausência da licença conferida pelo Ministério das Comunicações e, ainda assim, a emissora foi penalizada com a interrupção imediata de suas atividades.

Diante do fechamento da rádio, os moradores ingressaram com ação na Justiça federal de Pernambuco, pedindo que lhes fosse garantido o direito de emitir provisoriamente até o pronunciamento do Poder Executivo Federal. O argumento principal da ação baseou-se na ilegalidade do silêncio administrativo, já que a liberdade de expressão, ou o direito à comunicação, não é respeitado somente quando o Estado se abstém de intervir nos conteúdos dos meios de comunicação, mas, ao contrário, o é também, e talvez principalmente, quando garante os meios necessários para que esse direito seja exercido.

Assim, para o direito à comunicação exercido pelas rádios comunitárias, e mais especificamente pela Rádio Alternativa Comunitária FM, não caberia a dicotomia tradicional entre, de um lado, direitos civis e políticos e, de outro, direitos econômicos, sociais e culturais. Segundo essa visão tradicional, os direitos civis e políticos implicariam apenas obrigações de caráter negativo por parte do Estado, enquanto os demais exigiriam posturas positivas do poder público, isto é, obrigações de fazer, de prover e de assegurar um determinado direito, como o direito à educação e à saúde. Dessa divisão conclui-se, quase “naturalmente”, que, se para os direitos civis e políticos bastaria limitar a atividade do Estado, como obstar a violação da correspondência, a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais dependeria da existência e disponibilidade de recursos públicos.

Exercício do direito

É o suficiente para ir-se um pouco mais além e dizer que os direitos civis e políticos são os únicos exigíveis judicialmente, já os econômicos, sociais e culturais seriam “apenas” compromissos políticos, baseados em normas programáticas, portanto excluídos da esfera de apreciação do Poder Judiciário. Direitos de segunda categoria, os econômicos, sociais e culturais figurariam na esfera de discricionariedade do Poder Executivo.

Não é muito difícil extrair dessa corrente dos direitos humanos a concepção de liberdade que a sustenta: se o Poder Judiciário garante a liberdade de expressão apenas quando impede a censura estatal, ela se confunde com autonomia no sentido de que independeria de condições sociais, econômicas, culturais e tecnológicas para ser praticada. No entanto, as atividades das rádios comunitárias contraditam a separação estanque de tais direitos. Em Engenho Maranguape, por exemplo, é impossível separar o uso da palavra da busca por condições materiais de uma existência digna e é nesse contexto que o uso da tecnologia radiofônica se insere.

Ali não se instrumentaliza o veículo de comunicação, como se a comunidade desejasse simplesmente uma freqüência radioelétrica. Em outros termos, não se atrela o uso de uma freqüência radioelétrica apenas ao exercício da liberdade de expressão, como é tradicionalmente tratada. Ali o que se busca é o exercício do direito à comunicação, que abrange o exercício da liberdade de expressão (art. 5º, IX, da CF), mas também está estreitamente relacionado com o direito à associação (art. 5º, XVII, da CF), que hoje em dia depende, em grande medida, dos meios de comunicação, e com o direito à cultura, à produção cultural própria (art. 215, caput, da CF).

Direitos e restrições

Assim, ao lutar pelo simples direito de existir, as rádios comunitárias recolocam a questão da construção de uma nova forma de produzir informação porque é uma emissora feita por e para a comunidade, na qual é possível a participação direta da população em todo o processo comunicacional, o que permite o intercâmbio dos papéis de emissor e receptor e uma programação dirigida para seus interesses específicos. Essa emissora é, além disso, um estímulo à convivência social, à preservação da cultura local, assim como a construção de um espaço público em que a pluralidade da palavra não é apenas tolerada, mas uma forma de vida.

Os objetivos e fundamentos do princípio da separação dos Poderes da República estão ancorados, historicamente, na tentativa de fazer prevalecer a soberania popular, a opinião pública institucionalizada no Parlamento. Ao Poder Judiciário a função de resguardar essa soberania na interpretação da lei no julgamento de casos e conflitos concretos, especialmente quando a administração pública está presente.

No entanto, se no período do Estado liberal cabia ao Poder Executivo apenas uma atividade policial e arrecadadora, o que de certa forma também limitava o Poder Judiciário a observar a legalidade dessas ações, contemporaneamente o poder público assumiu outras atividades e funções. Paralelamente às novas atribuições da administração pública, operou-se uma transformação no caráter dos direitos fundamentais – de direitos absolutos, limitados exclusivamente pela fruição livre por todos, passaram a ser restringidos pela criação e pelo respeito aos direitos sociais, culturais e econômicos.

Polêmica e inconsistência

Será a administração pública, e não mais o mercado, quem deverá propiciar condições materiais que retirariam dos direitos fundamentais o rótulo de liberdades formais. O Poder Judiciário, ao seu turno, está às voltas com os litígios que questionam o individualismo do direito e do processo. Terá que lidar com conflitos transindividuais e, além disso, será também uma importante instância para fazer valer os novos direitos sociais, econômicos e culturais. Nesse sentido, inicia-se a discussão sobre os limites da discricionariedade do Poder Executivo na concretização desses direitos, isto é, em saber até que ponto o princípio da legalidade vincula a administração pública na formação de políticas públicas e na prestação e controle de serviços públicos, tal como a radiodifusão. No entanto, a responsabilidade do Poder Judiciário está em impedir que o exercício do poder discricionário se transforme em arbítrio.

Nos processos judiciais, o Ministério das Comunicações, por intermédio da Advocacia da União, tem resistido terminantemente a reconhecer a ilegalidade da mora administrativa nas concessões das licenças das rádios comunitárias. Valendo-se da premissa de que as atividades das rádios comunitárias causam interferência em outras emissoras radiofônicas e mesmo nos sistemas de transmissão de aeroportos, afirma haver conflito entre o direito à comunicação e o direito à vida e à integridade física. Além desse argumento, outra questão que tem persuadido juízes e tribunais consiste em dizer que as decisões judiciais em processo individuais acabariam ferindo o princípio da isonomia na escolha dos emissores, já que não há um processo licitatório abrangente.

O tema da interferência das rádios comunitárias em sistemas de transmissão de aeroportos é polêmico [ver a respeito entrevista do ex-juiz Paulo Fernando Silveira] e se deve reconhecer o seu efeito dramático, mas não sua inconsistência (as emissoras comunitárias utilizam equipamentos autorizados pela Anatel) e novidade (na Itália, na década de 1970, tentou-se em vão inibir a ação das rádios livres com o mesmo expediente).

“Somos uma nación, radiofónicamente hablando, muy desafortunada. (…) Hemos tenido que soportar a la EIAR, voz de la propaganda fascista, y hemos tenido que soportar tambíen treinta años de la RAI, que además de las intalaciones heredó de la radio negra uma metodologia de trabajo arrogante y despótica. Tuvo que llegar la radio alternativa. (…) Alitalia (à época empresa estatal) introdujo una ridícula polémica em función de las interferencias provocadas por las radios libres que se recebían em las radios de a bordo de los aviones durante la fase de aterrizaje. Aparte de la puerilidad técnica (los aviones reciben y transmiten em bandas muy distantes de las radios libres, aparte de que las fases de aterrizaje y de despegue son dirigidas además de por la radio y las torres de control, por emissiones de impulsos hertzianos que deben ser descodificados a bordo del avión), lo que llevaba todo el camino de convertirse em um gran escândalo fue acallado rapidamente”. [GAIDO, Marcos. “Los orígenes: la FM, los disk-jockeys y las radios piratas” in De las ondas rojas a las radios libres. Textos para la historia de la radio, Lluís Bassets (ed.), Gustavo Gilli, Barcelona, 1981, p. 174/175.].

Qual a regra?

Por outro lado, não deixa de suscitar graves problemas a questão das decisões em processos individuais (e mesmo em coletivos), porque de fato não é o meio mais adequado para se por em prática medidas de alcance mais geral. Porém, se não caberia ao Poder Judiciário substituir a Administração Pública nesses casos, sucumbir a esse tipo de raciocínio invalidaria a efetividade não só do direito à comunicação exercido pelas rádios comunitárias, mas de todos os direitos econômicos, sociais e culturais, como os direitos à saúde, à educação, à moradia e à assistência social.

Do contrário, em nome do princípio da igualdade, o Ministério das Comunicações poderia ficar absolutamente omisso no seu dever de dar prosseguimento ao processo administrativo de outorga da licença radiofônica. Que tipo de argumentação é essa? A que ponto chegamos? Então um direito duramente conquistado pode ser subvertido no sentido de que “todos” tenham o direito a igualmente não serem contemplados com licenças radiofônicas? Em nome do princípio da igualdade o Poder Judiciário não poderia afastar a ação repressiva da Anatel até que seja decidido o pleito administrativo?

É conhecida a demora do Ministério das Comunicações em averiguar os pedidos de autorização para rádios comunitárias. Então, a regra seria: se não pode para os outros que solicitaram em outras localidades (ou não solicitaram) também não poderia para a emissora que ingressa com uma ação individual? Quando poderá? Pode para quem? Quem é que utiliza esse bem coletivo no Brasil?

Exemplo a ser seguido

Não se pede ao Poder Judiciário que “sente na cadeira do administrador”. O que se requer é que tenha força suficiente para fazer com que a administração pública cumpra a lei e que não se esconda atrás de um dos princípios fundamentais da democracia para embasar seu arbítrio. Cabe ao Poder Executivo, nos termos da Constituição, a outorga dos serviços de radiodifusão e a maioria das rádios comunitárias não se furta a se submeter ao processo administrativo de distribuição das freqüências. Por isso não se espera que juízes e tribunais concedam qualquer tipo de tratamento diferenciado em face de outros possíveis licitantes, mas que lhes garantam o exercício de um direito constitucionalmente reconhecido.

Felizmente, a Justiça federal de Pernambuco garantiu aos moradores de Engenho Maranguape seu exercício ao direito à comunicação com base em recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Esse tribunal vem decidindo que mora administrativa na concessão das licenças radiofônicas para rádios comunitárias constitui um ato arbitrário que pode, e deve, ser controlado pelo Poder Judiciário.

Espera-se que tal exemplo seja seguido por outros juízes e tribunais nesse momento em que as instituições políticas do país estão sendo seriamente questionadas. Com efeito, se o Poder Judiciário não puder garantir o direito de falar, de exigir dos poderes públicos ações efetivas e políticas públicas de educação, saúde, segurança e emprego, especialmente para os jovens, em resumo, o direito da população de se organizar, devemos todos então nos resignar a esperar por uma ação do crime organizado nas dimensões da que vem ocorrendo em São Paulo?

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Doutora em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilla, Espanha, integrante do grupo do Núcleo de Documentação dos Movimentos Sociais de Pernambuco, da UFPE, e professora de Direito Constitucional da Faculdade Maurício de Nassau