Só com um sentido da ironia de George Orwell – ou a total inexistência dele – é que um censor poderia proibir a frase “liberdade de expressão”. No entanto, ela estava entre as frases bloqueadas no Sina Weibo, o equivalente chinês do Twitter, na polêmica sobre a censura que irrompeu esta semana em Guangzhou.
A liberdade de expressão e a de imprensa são oficialmente protegidas pelo artigo 35 da Constituição chinesa. De alguma forma, o Partido Comunista ajusta essa deliberação ao preceito de que, como disse um observador, “o controle da mídia pelo partido é um princípio firme”. O ato de censura que levou à breve greve dos jornalistas do Southern Weekend foi ainda mais absurdo do que de costume. Tuo Zhen, responsável pela censura na província de Guangdong, não só suprimiu um editorial de Ano Novo que reivindicava a prevalência da lei (e, indiretamente, impunha limites às normas do partido), como escreveu uma versão de apoio a Xi Jiping, o novo secretário-geral recentemente nomeado.
Karl Marx acreditava que a sociedade capitalista iria ruir sob o peso de suas contradições. Deve-se esperar que a censura na China vá ruir sob o peso de seu absurdo. Seus métodos e objetivos são antiquados num mundo em que 300 milhões de chineses usam microblogs e redes sociais, muitas vezes para enfatizar seu desprezo pelas autoridades do partido. Mas a tolerância do partido para com o absurdo é alta – principalmente quando a alternativa é o risco de seu fim. A liberdade de expressão é um imperativo moral que beneficiaria a China – e até traria vantagens para o governo de Pequim – mas tudo o que o partido vê é a sombra da Praça da Paz Celestial.
Uma “zona política especial”
O que motivou esse episódio foi o orgulho profissional ferido. Os jornalistas chineses sempre enfrentaram uma censura de picuinhas e invasiva por parte do Departamento Central de Propaganda. Qualquer controvérsia, como o acidente com o trem-bala em 2011, faz com que os censores produzam listas de coisas que não devem ser mencionadas e perguntas que não devem ser feitas. Enquanto a mídia existia isolada, a maioria dos jornalistas mais ou menos tolerava essa situação. Agora, no entanto, as notícias disseminam-se instantaneamente nas mídias sociais, muitas vezes antes de aparecerem na imprensa. Os veículos ocidentais lideraram o noticiário desde o escândalo com Bo Xilai, denunciando a existência de corrupção na elite do partido. “Quem quisesse ser um jornalista investigativo ficaria frustrado por um bom tempo”, diz Rebecca MacKinnon, professora da New America Foundation que trabalhou na China. Essa frustração tornou-se humilhação.
Inadvertidamente, Jiping incentivou a rebelião ao escolher Shenzhen, uma cidade operária próxima a Guangzhou, para sua primeira visita já como líder. Isso era um tributo à “viagem ao sul” que Deng Xiaoping fizera em 1992, durante a qual ele incentivara as autoridades a serem “ousadas” em sua busca por uma reforma econômica.
O discurso de Jiping sobre “abrir caminhos”, em continuidade às políticas de Deng Xiaoping, deixou aberta a possibilidade de maiores liberdades civis. Como escreveu um grupo de professores e escritores numa carta de protesto sobre o caso do jornal Southern Weekend, “a província de Guangdong é a passagem para as reformas e para a abertura… O poder dessa província cria ondas por todo o país”. Seus jornalistas decidiram ser ousados – e atacar os censores de Guangdong na esperança de que o governo de Beijing ficasse do seu lado. Rapidamente foram desenganados: o Global Times, um tabloide aliado ao Diário do Povo, porta-voz oficial do Partido Comunista chinês, trovejou que “a mídia, definitivamente, não se tornará uma ‘zona política especial’”, numa alusão às zonas econômicas especiais de Deng Xiaoping.
A censura é uma tradição
Houve algumas concessões – os censores teriam prometido que não escreveriam mais artigos e ninguém do jornal seria punido. Jiping ainda tem que apagar a rebelião. Jornalistas do Beijing News apoiaram o Southern Weekend e recusaram-se a imprimir o editorial do Global News. Mas falta ao partido um incentivo que possa conceder aos jornalistas. Afinal, um dos motivos para as reformas de Deng Xiaoping foi reduzir as tensões após a repressão da Praça da Paz Celestial, permitindo liberdade econômica, mas mantendo firme o pulso político do partido. O uso da mídia como propaganda não é recente. No livro China in Ten Words, o escritor Yu Hua lembra “o texto enigmático, com retórica revolucionária e slogans vazios, dizendo besteiras sem parar” e o espancamento dos “canetas pretas” – escritores burgueses – durante a revolução cultural.
O Partido Comunista tem mais alguns motivos para permitir um pouco mais de liberdade de expressão. Um é o de combater a corrupção, que enfraqueceu sua própria legitimidade. Jiping assinalou sua determinação no sentido de não permitir que autoridades recebam propinas em troca da cessão de terras e privilégios em contratos – como anteriormente fizeram líderes do partido. Os jornalistas poderiam expor esses trambiques, se estivessem livres da vigilância.
Uma censura completa e eficaz também está se tornando mais difícil. Os jornalistas, e outras pessoas, podem evitar a censura usando as redes sociais — e a repressão ao Southern Weekend provocou protestos na internet. Yao Chen, atriz que tem o maior número de seguidores no Sina Weibo, citou o dissidente soviético Alexandre Soljenítsin.
No entanto, em última instância, isso pesa mais que o medo da instabilidade. Um grupo de professores advertiu, no mês passado, que sem uma reforma política a China poderia “escorregar para a turbulência e o caos de uma revolução violenta”. São muitas as autoridades que consideram uma imprensa livre o equivalente a “turbulência e caos”. Receiam que a liberdade de expressão levaria a protestos populares e manifestações de estudantes, como a da Praça da Paz Celestial. A censura é uma tradição em que têm experiência e confiam, seja ou não absurda. A humilhação de alguns “canetas pretas” é um preço que vale a pena pagar. [Com informações de John Gapper. do Financial Times, 10/1/2013].
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