Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O grande mestre na arte de “enrolar” o leitor

“A felicidade é uma suave falta de assunto”, defendeu Rubem Braga na crônica “A boa manhã”. O cronista era o rei da falta de assunto, e a coroa de papelão lhe fora dada pelo poeta Manuel Bandeira, quando declarou que Braga escrevia ainda melhor quando não sabia sobre o que escrever. Clarice Lispector fez coro: para ela, não havia ninguém melhor no subgênero de enrolar o leitor.

Não é que Braga tenha sido o inventor da “crônica sobre a falta de assunto”, hoje um cacoete mal piscado nas páginas de todo jornal. Carlos Drummond de Andrade já tinha feito uma, em 1919, no jornalzinho escolar de Nova Friburgo, onde publicou seus primeiros textos, admitindo-se “constrangido a exercer a tristíssima profissão d'encher linguiça”. Muito antes, Artur Azevedo e o próprio Machado de Assis já haviam arrastado o bico de pena sobre a mal-amada página em branco: “Acho-me sinceramente vexado quando apareço de alforge vazio, e mais vazia a alma, de com que entreter os ócios do leitor”, escreveria Machado, no Diário do Rio de Janeiro, em janeiro de 1862.

Todo cronista já apelou para o recurso. Em 1962, Vinicius de Moraes reconheceu, no texto “Exercício de crônica”, que havia dias em que o texto simplesmente não baixava: “Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e que divirta os leitores!” Três anos depois, sem saber o que fazer com sua coluna diária na Folha de S.Paulo, Carlos Heitor Cony descreveu o próprio bigode: “Olhei minha cara no espelho e impliquei com meu bigode. Pois aí está o assunto, embora seja um péssimo assunto, reconheço.” Padecendo do mesmo drama, Fernando Sabino certa vez foi buscar inspiração num bar da Gávea: “Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar para fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.”

Em 2003, aqui no Globo, Luis Fernando Verissimo teve de fechar a própria braguilha em busca de um tema (“Felizmente, meu passarinho já se resignou ao seu lugar. E eu fatalmente usaria aquilo, em dia de ideias distantes”). Também nestas páginas, João Ubaldo Ribeiro relutou por quatro crônicas (“Onde é que já se viu cronista não ter assunto?”, argumentava), até que, em novembro de 2004, não resistiu e fez sua primeira. E encerrou o texto-sacrifício com uma piada. Ruim. “Tinha duas notícias para dar, uma boa e uma ruim. Qual queriam primeiro?” “A ruim, a ruim!” “A ruim é que, este ano, só vamos ter estrume de búfalo para comer” “Que coisa horrível, e a boa?” “A boa é que temos um enorme superávit de estrume. Ho-ho”.

Exemplos não faltam. Mas foi Rubem Braga quem mais – e melhor – defendeu a falta de assunto. Bandeira e Clarice não exageravam nas loas. Suas crônicas carregam um precioso valor formal. Ao abordar a dificuldade da escrita, iluminam o exercício literário sob uma perspectiva original.

É o que se vê, por exemplo, na crônica “Ao respeitável público”, publicada em 1934 no Diário de São Paulo, quando Braga contava apenas 21 anos. O título já preparava a plateia para o espetáculo que iria presenciar a seguir: depois de abrir o texto justificando a falta de assunto naquele dia (“Chegou o meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, não tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Que bela tarde para não se escrever!”), ele surpreende e passa uma descompostura nos leitores, mandando-os às favas: “Acaso me conhecem, sabem alguma coisa dos meus problemas, de minha vida? Então, pelo amor de Deus, desapareçam desta coluna. (…) Eu faço votos para que vocês amanheçam atacados de febre amarela ou de tifo exantemático.”

Em “A boa manhã”, publicada no livro As boas coisas da vida, de 1988, ao passar os olhos pelos jornais e não se sentir impelido a comentar nenhum assunto, Braga faz uma exaltação, ou uma hábil ironia, ao dia que começa: “Chupo uma laranja, e isto me dá prazer. Estou contente. Estou contente da maneira mais simples – porque tomei banho e me sinto limpo, porque meus braços e pernas e pulmões funcionam bem; porque estou começando a ficar com fome e tenho comida quente para comer, água fresca para beber. Nenhuma tristeza do mundo nem de meu passado me pega neste momento.”

Quando “está com a cachorra”

Na crônica “Faço questão do córrego”, publicada no mesmo tomo, a estratégia é emendar um assunto no outro. Abre o texto contando de uma moça que lhe telefonara com dúvidas sobre crônicas para um trabalho escolar. Como está “fraco de ideias” para estruturar qualquer argumentação e admite, inclusive, que naquele dia “está com a cachorra”, Braga desfia comentários aleatórios. Reclama a falta de um patrocinador, cita um poema de Prudente de Morais Neto e a escolha de nomes de ruas. O mote acaba por reforçar seu acento lírico: “Às vezes a gente parece que finge que trabalha; o leitor lê a crônica e no fim chega à conclusão de que não temos assunto. Erro dele. Quando não tenho nenhum frete a fazer, sempre carrego alguma coisa, que é o peso de minha alma, e olhem lá que não é pouco.”

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[Mariana Filgueiras é repórter de O Globo]