Quem acompanha a história da imprensa brasileira sabe de suas conexões com interesses dominantes na sociedade fracionada. Conhece, e bem, como são editados fatos e discursos. Tem noção aguda de que a autonomia relativa de uma redação encontra seus limites nos interesses do patronato. Franklin Martins e Helena Chagas estão aí como “ respaldo de provas robustas”, “evidências empíricas que valem seu sal” como solicitou o articulista Luiz Weis, neste Observatório, questionando o teor de um texto de Emir Sader [ver “A crítica desonesta da mídia”]
É de autoria do jornalista Paulo Francis a máxima segundo a qual “a história é monótona, a cada minuto nasce um leitor idiota”. Parece que, pelo que temos visto nos últimos meses, a suposta idiotia do leitor é algo datado, sem sinalização concreta nos dias atuais. Ainda assim, convém evitar supostas espertezas que podem custar caro ao campo democrático-popular. Quando isso ocorre, a direita comemora com blocos editorializados no Jornal Nacional. E, claro, a nau dos insensatos ainda chama de bom jornalismo o que não passa de desabrida propaganda ideológica.
Faltou pouco para que as últimas edições do JN tivessem fundo musical. Afinal eram comemorativas e o regozijo com um gol contra do adversário é conhecido do torcedor brasileiro. Se servir para ocultar novos estudos que comprovam os avanços do atual governo, melhor ainda. Saímos do campo futebolístico e adentramos a arena da luta de classes. Com a elegância da boa diagramação e o capricho nos títulos fortes. O recente dossiê envolvendo Serra com os sanguessugas foi um presente inesperado para aqueles que não se conformavam com um fenômeno inédito: uma derrota política, já consolidada no imaginário do eleitorado urbano, não se desdobrar em derrota eleitoral.
Sem escrúpulos
Sejamos francos, só mesmo sendo muito ingênuo para cair no “conto do dossiê”. Qualquer pessoa, com um mínimo de bom senso, farejaria de longe a óbvia “trampa”. Um mínimo de pragmatismo saberia que vídeos e papéis, ainda que bombásticos, não teriam qualquer efeito prático àquela altura do campeonato em que, para o PT, uma eleição para o governo de São Paulo estava praticamente perdida e outra, para a presidência da República, dada como certa.
Um pouco de tática de luta sindical misturada ao desespero da facção paulista do partido, ávida por assegurar uma hegemonia em risco, pode explicar o tiro eleitoral que quase acertou o pé. Ainda mais quando se farejavam as intenções de tucanos lacerdistas e os seguidos pronunciamentos do presidente do TSE a lhes prometer sustentação legal em sua aventura.
Ainda mais, e isso é o mais relevante, se havia um outro “dossiê” a ser escondido no noticiário global. E ele veio do Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio). Para desespero dos expoentes da Teoria da Dependência, que agora elegeram a UDN como modelo: o nível de pobreza caiu 19,18% nos três primeiros anos do governo Lula, o maior recuo em dez anos. Somemos a isso a retomada do emprego, estagnada há uma década, segundo Marcelo Néri, coordenador da pesquisa.
Mas o que mais impressiona no “dossiê” a ser ocultado vem a seguir: “‘Os pobres e ricos tiveram ganhos expressivos de renda’”, diz Néri, coordenador da pesquisa. 50% dos mais pobres aumentaram sua renda em 8,5%, enquanto os 10% mais ricos, depois de cinco anos de perdas, tiveram ganhos de cerca 6%. A classe média teve um crescimento um pouco menor, de 5,5% da renda.”
É esse o governo que privilegiou banqueiros? Com a palavra os editores de economia. Aqueles que deveriam sempre se pautar por evidências empíricas que valem o sal de todo mês.
Isso, óbvio, não elimina o erro primário do grupo paulista. Mas tampouco torna desnecessário reiterar que, se existem indícios, por mais tênues que sejam, de possível envolvimento do então ministro da Saúde José Serra com a “máfia das ambulâncias”, por ação ou omissão, tal possibilidade deva ser investigada. E nada justifica que uma fonte de denúncias, antes considerada fidedigna por membros do PSDB, mesmo tratando-se de alguém com graves antecedentes criminais, seja liminarmente desqualificada por envolver ex-ministros de FHC em falcatruas.
Interessante notar a esquizofrenia da imprensa quando lida com Vedoin. Para comprometer o governo petista o empresário é alguém a ser ouvido. Quando envolve a oposição, suas palavras só têm valor se absolvem o tucanato. Eis no que se transformou a delação premiada na trama golpista.
Mas o que incomoda é a desenvoltura de Valdebran, Gedimar e Lorenzetti. O que lhes propiciou autonomia para agir à revelia de um presidente tão próximo da vitória? A hipótese que se impõe deve ser examinada com atenção. O jornalismo protofascista da grande imprensa não teve escrúpulos para dar uma nova versão impressa e televisiva a Geraldo Alckmin.
Pecado capital
Há vários anos o PT vem perdendo, por um motivo ou outro, muitos quadros de trajetória política irretocável: Francisco de Oliveira, Plínio de Arruda Sampaio e Frei Betto são bons exemplos, embora este último jamais tenha sido filiado ao partido. Com isso, e com o afastamento forçado de José Dirceu, José Genoíno, entre outros, Lula viu seu círculo de “confiáveis” mais e mais restrito aos velhos companheiros de ABC e outros egressos do sindicalismo. Mas que, aqui entre nós, não estavam e não estão qualificados para ser os “homens do presidente”, pelo menos não com a autonomia de ação que lhes foi dada ou de que julgavam desfrutar. Têm, e sempre terão, importância ímpar pelo que representaram no confronto com o capital. Mas é preciso, no campo político, fazer a mediação das demandas dos mundos do trabalho e da cultura. Só assim construiremos uma política emancipatória.
E cabe ao líder corrigir a distorção. Sabe-se que, por sua vez, Lula valoriza a lealdade pessoal e tem grande apreço pelos “velhos companheiros”. E que sempre se sentiu mais confortável entre seus pares do que junto aos “estranhos no ninho”, contra os quais jamais deixou de ter um pé atrás, desde antes da formação do PT. Quem não se lembra de seu brado, ao tempo das – motivadas essencialmente por demandas salariais – greves do ABC: “Estudante não se mete que isso aqui é coisa séria!”?
Aquela, sim, era uma liderança que se encaixa no gosto de nove entre dez articulistas políticos. Restrito ao campo sindical e lutando pela manutenção do status quo de beneficiário do regime econômico da ditadura. Ai que saudade….do líder sindical, que fique bem claro.
Que se valorizem os amigos. Mas o que valeu emocionalmente para Lula naquele momento não vale politicamente, quase 30 anos depois, para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à reeleição, tendo como contraponto o golpismo e a possibilidade da volta ao poder do tucano-pefelato. Agora não tem jeito. Por mais que lhe doa, a maior liderança popular surgida no Brasil vai ter que repensar lealdades e prioridades para reanimar a identidade política de sua militância. E ampliar o núcleo decisório para além daqueles que, com ele, um dia formaram a classe operária que foi ao paraíso. Ou faz isso ou estará condenado a ser, de novo e de novo, prejudicado pelas trapalhadas de antigos companheiros.
Para gáudio dos golpistas, seu colosso midiático produzirá edições inesquecíveis de “Vejas” e “Épocas” na próxima semana. Muito embora a população já tenha sinalizado que a direita pode estar gastando tinta e papel em vão, a dobradinha TSE-TV Globo está no ar “orientando” os eleitores a não votar em candidatos envolvidos em “escândalos”. Claro que não relembra que a maioria deles é peça de ficção produzida nas melhores redações. Nunca, desde 1964, o empenho em derrotar uma liderança foi tão evidente a ponto de pôr no chão o marketing editorial de várias publicações.
Com tudo isso, creio que é bom lembrar que sobressaltos no período eleitoral eram esperados. Mas alguns, convenhamos, são evitáveis. A direita não se deu sequer ao trabalho de atualizar métodos. A “venezuelização” do monopólio global já lançou sua palavra de ordem: a reeleição não será televisionada. Este é o mote que assusta. E, que me desculpem os observadores mais apaixonados pelo ofício, as generalizações não incorrem em risco de erro.
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Em tempo – Nunca as evidências estiveram tão à mostra e custaram tão barato. O pesquisador deve ir à banca e procurar pelos seguintes títulos: O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense. Uma olhada nas manchetes e títulos das dobras superiores já será de grande valia. Se quiser uma amostragem repleta de cores e luzes deve procurar por publicações semanais. São um pouco mais caras, mas são muito piores.
Para os que não querem sair do conforto do lar (a preguiça é um pecado capital para o bom pesquisador) vale uma conferida nos sites abaixo.
www.oglobo.com.br; www.jb.com.br; www.estado.com.br; http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
Mãos à obra: nunca foi tão fácil refutar um texto de um prestigioso sociólogo.
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Professor-titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro