Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo e servidão voluntária

Em seu mais recente livro, O jornalismo canalha, o jornalista José Arbex Jr. observa que a invasão do Iraque pelos Estados Unidos ‘introduziu algumas novidades no campo do jornalismo’. O jornalista embedded foi uma delas. ‘O jornalista embedded é aquele que aceitou se submeter a uma série de 50 normas estabelecidas pelo Exército dos Estados Unidos, como condição para acompanhar as tropas’, diz Arbex. ‘As normas previam, entre outras coisas, que ele não poderia reportar nada que não fosse aprovado pelos chefes do seu regimento, o mesmo valendo para as transmissões de imagens. Tampouco poderia se deslocar para áreas consideradas perigosas.’ Essa relação subserviente da mídia com as autoridades militares implica, antes de mais nada, rigorosa restrição à liberdade de informação. A censura e a deformação dos fatos passam a ser determinantes na atuação das grandes corporações de mídia na América pós-11 de setembro.

A análise de Arbex localiza idênticos sintomas de vassalagem na mídia brasileira: na cobertura dos atentados ao World Trade Center e na invasão do Iraque, assim como nos acontecimentos de conjuntura nacional, como as ações do MST. Nas duas situações, o que se vê é uma mídia que inocula preconceito e mistificação no noticiário, encampando acriticamente a versão vendida pela mídia americana – vale dizer, a visão do Pentágono, com conseqüências letais não somente para o jornalismo, mas para a democracia.

José Arbex Jr. é editor-especial da revista Caros Amigos e editor-chefe do jornal Brasil de Fato. Na grande imprensa, atuou como correspondente da Folha de S.Paulo, oportunidade em que presenciou alguns dos acontecimentos mais marcantes do século 20, como a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética. Entrevistou com exclusividade intelectuais, revolucionários e estadistas como Mikhail Gorbatchev, Yasser Arafat, Daniel Ortega, Noam Chomsky, Edward Said, Samir Amin, Milton Santos, Celso Furtado, entre outros. Doutor em História Social pela USP, escreveu, entre outros livros, Showrnalismo: a notícia como espetáculo, O século do crime (em co-autoria com Claudio Julio Tognolli) e Terror e esperança na Palestina. Nesta entrevista via e-mail, Arbex fala das relações perigosas do jornalismo, para ele, canalha, com o poder e da manipulação da informação pela grande imprensa.

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O título do seu último livro, O jornalismo canalha, é muito forte. Acredita que o rótulo se encaixa ao jornalismo praticado pelas grandes corporações jornalísticas nos Estados Unidos?

José Arbex Jr. – Sem dúvida. Basta notar, por exemplo, que durante a cobertura da invasão do Iraque, erroneamente qualificada como ‘guerra’, toda a mídia corporativa enfatizava o aspecto tecnológico e os cálculos estratégicos, deixando em plano muito secundário o aspecto humano. O maravilhamento tecnológico foi utilizado como força de sedução para desviar as atenções dos horrores da guerra. Basta isso.

A relação promíscua da mídia atual com o governo Bush não é característica somente dessa mídia. A relação sempre esteve presente na história da imprensa americana, desde os tempos do governo Roosevelt, nos anos 1930. De que forma o atual jornalismo americano se diferencia do jornalismo das décadas passadas?

J.A.J. – Boa questão. É tudo uma questão de graus de comprometimento e de contexto. No mundo globalizado, as corporações transnacionais passam a ter um grau muito maior de relações íntimas com os Estados de seus respectivos países, e isso engloba a mídia que, por sua vez, é dirigida por executivos que também fazem parte de outras empresas. Para não complicar: imagine o compromisso que tem a Microsoft com os estrategistas da Casa Branca. É inevitável. Bill Gates precisa das garantias militares oferecidas pelo Pentágono para impor as suas condições de venda dos softwares, tanto quanto o Pentágono usa o controle da rede mundial possibilitado pelos sistemas Windows e Internet Explorer. Esse grau de intimidade e aderência é inédito na história. Se quiser pensar no Brasil, é só lembrar o papel da Rede Globo na implantação da ditadura militar.

Essa ‘vassalagem’, como o senhor se refere em seu livro, também atinge a mídia no Brasil, que acabou encampando a versão do Pentágono para os conflitos do Kosovo, do Afeganistão e do Iraque, reproduzindo por tabela o ódio e o preconceito disseminados na grande imprensa americana. Por que a nossa mídia age dessa maneira?

J.A.J. – Por muitas razões, explicadas no livro. Por usar os serviços oferecidos pelas empresas estadunidenses (CNN, Reuters, UPI etc.), por tradição de alinhamento ideológico que vem de antes da Guerra Fria, por um certo provincianismo e timidez intelectual dos chefes da mídia, por ignorância pura e simples, por preconceitos e má fé… Longa é a lista, curta é a vida, diria Jobim.

Seu livro diz que após o 11/9 veículos como a Veja mostraram preconceito contra a cultura islâmica, repercutindo ideologia disseminada nos EUA. Esse preconceito pode ser associado ao calor da hora, à velocidade dos fatos ou sempre esteve presente na nossa imprensa?

J.A.J. – Sempre esteve presente, e não só na imprensa. Vários professores e pesquisadores já demonstraram o grau de subordinação intelectual dos brasileiros aos europeus e estadunidenses. O grande e saudoso professor Milton Santos, por exemplo, reclamava a construção de um olhar crítico especificamente brasileiro, e não um olhar sobre o Brasil emprestado da Europa. A velocidade, o calor da hora, a dependência tecnológica apenas contribuem para a vassalagem intelectual.

A idéia de que a imprensa reflete o conjunto de valores da própria sociedade poderia transferir para a opinião pública, no Brasil, a responsabilidade pela manutenção dos preconceitos contra a cultura islâmica e exacerbados após o 11/9?

J.A.J. – Não creio que a imprensa reflita tal conjunto. A imprensa não é um espelho neutro do mundo. Antes de mais nada, ela é propriedade privada, e portanto submetida aos interesses dos donos. É claro que os donos não são livres para publicar o que quiserem, pois dependem da credibilidade. Por exemplo, Roberto Marinho não poderia afirmar no Jornal Nacional que um marciano foi visto descendo no Vaticano. Mas eles, dentro de certos limites, podem manipular os dados, criar consensos, gerar percepções (como no já mencionado caso da cobertura da invasão do Iraque).

A existência de um jornalismo canalha pressupõe que ao menos uma banda desse jornalismo atuaria mais corretamente, mantendo uma visão crítica à versão incutida pelo Pentágono e pela Casa Branca. Onde, na imprensa americana, poderíamos localizar esse foco anti-establishment?

J.A.J. – Nas emissoras públicas, nos veículos de media criticism (como a Fair Review), na produção de intelectuais independentes (como o Z Magazine) etc.

Qual sua visão da imprensa européia na cobertura das invasões do Afeganistão e do Iraque?

J.A.J. – Tende a ser um pouco mais crítica, por relações históricas, pela disputa dos imperialismos europeus com o estadunidense, pela formação crítica de uma certa parcela da intelectualidade européia, forçosamente mergulhada na diversidade cultural. Mas tampouco é a quinta maravilha do mundo.

O senhor acredita que a atuação da rede al-Jazira de fato funcionou como contraponto às mentiras divulgadas pela CNN e parceiros?

J.A.J. – Sem dúvida. Até ter sido destruída sob as bombas democráticas de Bush.

No livro, o senhor afirma que as elites americanas gostam da guerra. E a guerra, como afirmava Lênin, não passa de uma divisão sangrenta de mercados. Esse seria unicamente o grande objetivo da política externa americana, o fortalecimento de sua própria economia?

J.A.J. – O fortalecimento do império, que é mais abrangente do que a economia. Pressupõe o controle político e cultural.

O fundamentalismo religioso tem servido de base doutrinária para justificar a ação americana contra o terror. Segundo os ideólogos de Washington, trata-se da luta do Bem contra o Mal. Como o senhor destaca em seu livro, essa mesma orientação já havia sido utilizada por Ronald Reagan, ao atribuir à ex-União Soviética a imagem de ‘Império do Mal’. O terror, neste caso, não seria o substituto do comunismo como velho bode expiatório da paranóia americana?

J.A.J. Muito bem dito.

O senhor observa que o 11/9 foi benéfico para Bush, de tal forma que seria possível aventar a hipótese de que os próprios americanos estariam por trás do atentado. Essa não é uma teoria por demais conspiratória?

J.A.J. Não. A menos que você prove que eu estou errado, e que o 11/9 não ajudou baby Bush.

O escândalo Watergate, que levou ao impeachment de Nixon, foi revelado no Washington Post, que hoje compra a versão da Casa Branca. Esse fato seria emblemático da volubilidade dos interesses que rondam a grande imprensa?

J.A.J. Sim. Aqui você retoma o que eu dizia antes: o grau de promiscuidade entre o capital privado e o poder de Estado atingiu níveis sem precedentes. E isso é muito perigoso, pois ameaça liquidar com o pouco que ainda há, ou havia, de democracia nos Estados Unidos.

A mídia moldou a opinião pública americana no caso da Guerra do Vietnã, e voltou a influenciá-la no caso dos ataques terroristas – o ‘consenso fabricado’ em ação, ou a visão da sociedade construída pelos meios de comunicação. Até que ponto podemos considerar democrática uma sociedade assim manipulável?

J.A.J. Não diria que a mídia ‘moldou’ a opinião, no caso do Vietnã. Ela tentou ao máximo ocultar os fatos, mas a pressão dos movimentos contra a guerra e o racismo estourou o esquema. Mais ou menos como no Brasil, em 1984, no caso da campanha pelas diretas. Isso prova que a mídia pode muito, mas não pode tudo. Agora, você tem razão ao colocar em questão a natureza da democracia numa sociedade tão vulnerável à fabricação do consenso.

4É curioso notar que, mesmo sob a censura do Pentágono, há um dissenso na mídia americana, como o de Michael Moore (cineasta) e de Greg Palast (repórter investigativo), entre outros. Como o senhor analisa o trabalho desses críticos?

J.A.J. Fazem parte da melhor tradição da democracia estadunidense, essa que Bush quer liquidar, com a ajuda das corporações midiáticas.

Seu livro crítica Folha e Veja pela visão parcial do MST, embora sejam veículos que tiveram papel importante por exemplo nas Diretas-Já e no impeachment de Collor. Como o senhor analisa essas guinadas?

J.A.J. Não creio que sejam guinadas. Como observei antes, a mídia depende da credibilidade junto à opinião pública para sobreviver. Quando os veículos observam que a opinião pública inclina-se fortemente em determinada direção, como no caso das Diretas-Já, os veículos tendem a acompanhar a opinião geral, para não perder o que eles chamam de ‘market share’. É tudo uma questão de marketing.

Que balanço o senhor faz da experiência do Brasil de Fato até agora?

J.A.J. Boa. E dura. Dura mas boa.

Em seu livro Showrnalismo o senhor relata a queda do Muro de Berlim, que cobriu pela Folha. O jornal preteriu sua primeira matéria sobre o assunto, à época, em favor de manchete sobre a candidatura de Sílvio Santos à presidência. Como o senhor se sentiu?

J.A.J. – Extremamente frustrado. Já imaginou, os seus chefes acharem que o Sílvio Santos é mais importante do que o Muro de Berlim? Quá quá quá…

O senhor recebeu convite para retornar à Folha?

J.A.J. – Mantenho ótimas relações com o proprietário da Folha, Otavio Frias Filho, por uma razão muito simples: sempre fui e continuo sendo muito franco e leal, mesmo quando faço as críticas que faço. Nunca ocultei o que penso. E o Otavio tem uma boa formação intelectual, tem os seus argumentos para defender os interesses da classe a que pertence. Mas nunca pensei em voltar para o esquema da grande imprensa.

Ao lado de alguns poucos jornalistas brasileiros, o seu nome é rapidamente associado a uma postura crítica e ética no nosso jornalismo. Como se sente carregando essa bandeira?

J.A.J. – Não me sinto carregando uma bandeira. Sinto que vale a pena ser honesto, até por uma questão de saúde física e mental.

Quais são os cuidados que o repórter precisa ter em mente ao fazer uma matéria?

J.A.J. – O mais importante: olhar as coisas sem preconceito. Para isso, é preciso cultivar a formação intelectual e artística. Muitas vezes, nem sabemos o quanto somos preconceituosos. Quanto mais você estudar, conhecer, ler, debater e discutir, mais instrumentos você terá para questionar as próprias limitações. É preciso aprender a olhar e a ouvir. Isso é muito difícil, quase impossível.

Num estágio em que o jornalismo se confunde cada vez mais com entretenimento, como restituir a sua responsabilidade social? Esse é um papel que pode ser atribuído somente aos jornalistas?

J.A.J. – De forma alguma. Jornalistas são cidadãos que exercem o jornalismo, assim como dentistas são cidadãos que exercem a odontologia etc. A responsabilidade é do cidadão. No caso do jornalismo, ele só deixará de ser entretenimento quando oferecer informação útil para a militância social e política.

Como o senhor analisa o recurso do grampo, dos disfarces, da câmera oculta etc. para atingir determinados fins no processo de investigação jornalística? Qual o limite do repórter?

J.A.J. – Acho que cada caso é um caso.

O senhor tem o privilégio de ver o jornalismo a partir de uma perspectiva mais ampla, já que detém também a experiência acadêmica. Até que ponto essas duas visões se reforçam mutuamente?

J.A.J. – Todo jornalista deveria cultivar a formação acadêmica, assim como todo acadêmico deveria sair dos muros da academia e experimentar as lições da sarjeta. É um processo muito rico. Doloroso, mas rico.

Há uma discussão infindável em torno da revelação da identidade das fontes. Qual sua opinião?

J.A.J. – Cada caso é um caso.

Se o senhor não fosse jornalista, que profissão teria seguido?

J.A.J. – A de jornalista.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (http://www.sergipe.com/balaiodenoticias)