“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”, ironizava Fernando Pessoa há um século, criticando o mundo de aparências dos ambientes sociais em que todos têm de ser belos, inteligentes e saudáveis o tempo todo.
O personagem de seu poema é tristemente familiar. Seja porque se sente porco, vil, parasita e sujo por não ter tido paciência para se arrumar. Seja porque se considera ridículo, absurdo, grotesco, mesquinho, submisso e arrogante por não saber se comportar de acordo com as novas etiquetas. Seja porque, covarde, ele se cala quando ofendido, para não ser ridicularizado ao reagir. Seja porque, endividado e motivo de piadas entre os que cruzam seu caminho, ele se angustia por não encontrar com quem se identifique.
Analisando suas redes sociais, ele reclama estar cercado de semideuses. Ninguém confessa infâmias, covardias ou fraquezas, nada que esteja abaixo do ideal. Só lhe resta desabafar que todo mundo com quem convive “nunca foi senão príncipe -todos eles príncipes- na vida…”
Naquela época os locais públicos eram determinados e tinham horário de funcionamento definido. Identificar a farsa de uma vida excepcional não era difícil. Ninguém imaginaria passar o dia todo exposto na vitrine das redes sociais, arrumado feito criança em casamento, se contorcendo em roupas que não cabem direito, torcendo para que a frase tenha sido bem decorada e que a foto seja tirada antes de o suor brotar.
Combate à mesmice
O mundo das redes sociais, ao mostrar os melhores momentos de cada um de seus bilhões de integrantes, bombardeia-os com um ambiente superlativo, em que a cada instante surgem vídeos em que pessoas e bichos aparentemente comuns realizam feitos inacreditáveis. O extraordinário se banalizou.
Quando se vive cercado por extremos, é cada vez mais difícil determinar os limites do que é possível, desejável ou conveniente. O cotidiano, banalizado pela onipresença do extraordinário, fica ainda mais monótono.
Quem cresce rodeado pelo que há de melhor perde a paciência para se surpreender e pode ficar mimado, impotente ou deprimido. Na tentativa de gerar estímulos, vários multiplicam suas atividades e pulverizam sua atenção, sem levar em conta que a hiperatividade é inimiga da concentração. Nesse processo, gasta-se muita energia e realiza-se pouco, em um círculo vicioso que só aumenta a frustração.
Mais do que nunca, é preciso tomar consciência dos limites do que é “normal”. A exposição cotidiana dos feitos extraordinários é apenas um subproduto de uma tecnologia de expressão, democratização e inclusão, que só tende a crescer nos próximos anos. Como todas as outras mudanças propiciadas pela internet, ela demanda uma nova forma de socialização que não se baseia no que cada um tem a mostrar, mas no que deve ouvir e até que ponto considerar.
Afinal, não há nada de errado em mostrar grandes feitos. Se bem apresentados, esses vídeos podem ser inspiradores, desafiando gente comum a se preparar para o incomum e mostrando o potencial que existe em qualquer um que, insatisfeito com o estado das coisas, resolva combater a mesmice e realizar feitos verdadeiramente sobre-humanos.
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[Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e colunista da Folha de S.Paulo; mantém o blog www.luli.com.br]