Eram tempos de guerra. E, armada com sua câmera fotográfica, veio ao Brasil Genevieve Naylor(1915-1989). Uma missão política, uma viagem nada inocente. Naylor estava a serviço do governo estadunidense, como recruta de uma ofensiva diplomático-artística que visava azeitar as relações dos Estados Unidos com os países do continente.
Afinal, estávamos em meio às tensões da Segunda Guerra. E, temeroso de um possível alinhamento das nações latino-americanas aos ideais nazifascistas, o presidente ianque Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) levou a sério o que entraria para os livros de história como Política da Boa Vizinhança.
Estratégia eficaz. Uma exitosa persuasão ideológica continental, arquitetada em minúcias, seria o bastante para garantir a adesão dos latinos ao American way of life, afastando o fantasma de Adolf Hitler (1889-1945) e aproximando, cultural e politicamente, as nações tupiniquins dos interesses geopolíticos e comerciais dos Estados Unidos.
Funcionou. “Os brasileiros aprenderam a substituir os sucos de frutas tropicais por uma bebida de gosto estranho e artificial chamada Coca-cola. Começaram também a trocar os sorvetes feitos em pequenas sorveterias pelo sorvete industrializado chamado Kibon. Aprenderam a mascar uma goma elástica chamada chiclete e começaram a usar palavras novas que foram se incorporando à língua falada e escrita. Passaram a ouvir o foxtrot, o jazz, o boggie-woogie, entre outros ritmos […] e começaram a ver muito mais filmes produzidos em Hollywood”, escreveu o historiador Gerson Moura, no livro Tio Sam chega ao Brasil (Brasiliense, 1984), contextualizando o que, para alguns, foi o início da chamada invasão culturalnorte-americana.
No cerne de tamanha maquinação política, havia metas prioritárias para otimizar os mecanismos de convencimento ideológico. E, no espírito da boa vizinhança, eram três as principais frentes de atuação do governo norte-americano: “investimento em meios de comunicação; investimento intensivo em publicidade; e fomento de uma estrutura assistencialista de saúde e alimentação”, elenca a historiadora Ana Mauad, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
E aqui entra em cena nossa personagem, a fotógrafa Genevieve Naylor. “Ela viera comissionada para atuar no setor de informação, que, entre outras coisas, visava à produção de imagens sobre o Brasil”, explica Mauad. “Nesse contexto, a visualidade – fotografia, cinema, publicidade – sedimentou a ponte pela qual a aproximação cultural entre as Américas se realizou.”
Fotógrafa da boa vizinhança
O trabalho de Naylor era fotografar o Brasil. Mas algo saiu errado. Em vez de cumprir seu desígnio e fotografar somente os protocolos oficiais – aspectos turísticos, símbolos do poder ou cenas estereotipadas de um Brasil fabricado –, a fotógrafa registrou em seus cliques um país que transcende a imagem oficialesca requisitada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o famoso DIP, que, de perto, monitorava seus passos.
Naylor se envolveu com o país e com seus habitantes. E, mais que capturar imagens, ela própria fora capturada pelos encantos da terra que visitava. Levou daqui “um olhar 'não-turístico' de um país que muitos [norte-]americanos ainda associavam somente à dama do chapéu tutti-frutti”, escreveu o historiador Robert Levine, em referência ao sucesso que Carmem Miranda fazia nos Estados Unidos à época.
Naylor levou daqui um olhar 'não-turístico' de um país que muitos norte-americanos ainda associavam somente à dama do chapéu tutti-frutti
Na capital carioca, Naylor registrou em clima intimista o cotidiano praieiro. Também viajou a São Paulo, Belo Horizonte, Maceió, Aracaju, Salvador e diversos locais do interior do país. Percorreu o rio São Francisco; fotografou cidades anônimas do sertão. Nas palavras do escritor Aníbal Machado (1884-1964), a obra de Naylor é um resumo etnográfico” do Brasil da década de 1940.
Para Mauad, tão relevante quanto a excelência técnica de seu trabalho é o sentido sociológico com que usou sua objetiva. “Foi sua maneira de fixar uma realidade que nada tinha de monumental.”
Equipada com sua rolleiflexe com sua speedgraphic, Naylor fotografava quase sempre com luz natural. Retratos do cidadão comum, paisagens cotidianas, aspetos pitorescos de culturas ribeirinhas, dramas sociais vividos por comunidades interioranas. Nada escapou ao olhar da fotógrafa.
Seus enquadramentos, angulados por baixo, definiram parte de sua predileção estética e deixaram transparecer a postura intimista com que abordava os assuntos.
Mas em seu fazer fotográfico Naylor contava, sobretudo, com o que chamou de “boa vontade dos brasileiros”. “São tão naturais, tão espontâneos e afetivos, que a câmera simplesmente os adora”, relatou certa vez. De fato, Naylor jamais precisou apelar ao recurso do flagra. Afinal, os fotografados consentiam sua carismática e discreta presença.
Era habilidosa em transitar, com naturalidade, do popular ao sofisticado. Não por acaso, seguiu carreira em fotografia de moda – tendo posteriormente atuado nas revistas Vogue e Harper’s Bazaar.
Por aqui, Naylor ainda é um tanto desconhecida. O primeiro livro sobre seu legado, em português, deve ser lançado somente este ano, pelo editor e colecionador George Ermakoff.
Enquanto isso, curiosos podem apreciar, neste recente artigopublicado por Mauad, algumas das fotografias produzidas por Naylor em sua passagem pelo Brasil; e, neste vídeo, alguns de seus principais registros ao som de Carmem Miranda; também este bloguetraz belas imagens feitas pela fotógrafa.
Missão cumprida
As mais de 1.300 fotografias de Naylor sobre o Brasil fizeram bastante sucesso nos Estados Unidos, com exposições que circularam por todo o país a partir de 1943. Naylor foi uma das primeiras mulheres a expor no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, como contextualiza Mauad em artigo na Revista Brasileira de História. Aliás, ela foi também uma das primeiras fotojornalistas, abrindo alas para as mulheres num campo profissional classicamente ocupado por homens.
Trabalhou na Associated Press e fotografou para as revistas Time e Fortune. E também para a Life, em cujas páginas o poeta e então cronista Vinícius de Moraes tomou conhecimento de seu trabalho. Encantado, não tardou a classificá-la como “americanazinha adorável“.
Importação cultural
No âmbito da Política da Boa Vizinhança, Genevieve Naylor não foi a única artista norte-americana a embarcar para o Brasil na década de 1940. Veio Walt Disney (1901-1966), que, inspirado em suas impressões sobre o país, desenhou o personagem Zé Carioca.
Além dele, esteve por aqui o cineasta Orson Welles (1915-1985), imbuído da tarefa de produzir o documentário It’s all true, (‘É tudo verdade’, em tradução livre). O escultor Jo Davidson (1883-1952) também cá aportou. Sua tarefa era esculpir bustos de presidentes em vários países do continente.
No pacote cultural norte-americanizante, também veio ao Brasil um novo jeito de se fazer radiojornalismo, que era o programa Repórter Esso.
E, na música, algo aconteceu: o governo estadunidense encarregou o maestro Leopold Stokowski (1982-1977) de gravar um álbum intitulado Native Brazilian Music, com representações autênticas da música brasileira – tarefa para a qual contou com o auxílio de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). O registro, que jamais foi lançado em nosso país, foi descrito como uma “preciosidade sonora esquecida e que até hoje permanece extraviada de nossa cultura”, em recente reportagem da revista Rolling Stone.
Mas a via contrária, ainda que em ínfima proporção, também se deu. Do Brasil para os Estados Unidos foi o escritor Érico Veríssimo, convidado a ministrar um curso de literatura brasileira na Universidade de Berkeley, na Califórnia, além de outras pequenas iniciativas que contemplavam estudantes e profissionais com bolsas de estudo em território ianque.
***
[Henrique Kugler, do Ciência Hoje/ Rio]