Em termos estritamente biológicos, o altruísmo pode ser entendido como um padrão de comportamento pelo qual a ação de um indivíduo resulta em benefícios para um segundo indivíduo, mesmo quando isso implica em prejuízo imediato ao praticante da ação. Há uma rica e variada literatura de divulgação sobre o assunto, inclusive em português – por exemplo, A formiga e o pavão (Cronin 1995),O animal moral (Wright 1996) e As origens da virtude (Ridley 2000).
Em meados de 2010, a editora nova-iorquina W. W. Norton lançou O preço do altruísmo [The price of altruism], o último livro de Oren Harman, historiador da ciência e professor universitário em Israel. A obra teve um impacto imediato bastante positivo, merecendo comentários e resenhas tanto em periódicos científicos como em revistas de divulgação e jornais – ver, por exemplo, os artigos “Belief, reason, and insight“ [acesso parcial], de Steven A. Frank (Science, 16/7/2010); “The price of altruism“, de Razib Kahn (Discover, 13/7/2010); “Is goodness in your genes?“ [acesso parcial], de H. Allen Orr (The New York Review of Books, 14/10/2010); “Killed by kindness“ [acesso restrito], de John Carey (The Sunday Times, 23/5/2010); “For goodness’ sake“, de Frans de Waal (The New York Times, 9/7/2010); e “The group: on George Price“, de Miriam Markowitz (The Nation, 11/10/2010). Esta última resenha é especialmente informativa e valiosa.
O livro é uma biografia do cientista estadunidense George Price, tendo como pano de fundo a história dos estudos sobre o altruísmo, desde meados do século 19 aos dias de hoje. O grande mérito da obra e, penso eu, a razão do seu sucesso, é o seu personagem central. No entanto, a despeito de alguns feitos científicos notáveis e de uma trajetória de vida das mais intrigantes, Price segue sendo um personagem virtualmente desconhecido; não só do público leigo em geral, mas dentro da própria comunidade científica. Afinal, quem foi George Price e que legado ele nos deixou?
Da química à teoria evolutiva
O químico estadunidense George Robert Price nasceu em Nova York (EUA), em 6/10/1922, e faleceu em Londres (Inglaterra), na primeira semana de janeiro de 1975. Estudante talentoso, aos 17 anos foi para a prestigiosa Universidade de Harvard. Mas não gostou de lá e, ao final do primeiro ano, decidiu sair. Foi estudar então na Universidade de Chicago, onde concluiu uma graduação em química (1943) e, logo em seguida, uma pós-graduação (1946). Durante a Segunda Guerra, trabalhou no chamado Projeto Manhattan, empreendimento científico-militar do governo dos Estados Unidos que estava desenvolvendo a primeira bomba atômica. Foi lá que conheceu Julia Madigan, com quem se casou em 1947. O casal teve duas filhas, mas se divorciou em 1955.
Em 1966, Price foi operado para remoção de um câncer na tireoide. A cirurgia deixou sequelas – um de seus ombros ficou parcialmente paralisado. Em novembro de 1967, com o dinheiro que recebeu do seguro-saúde, largou o confortável emprego que tinha na época e mudou-se sozinho para Londres. (Sua carreira de químico havia ficado para trás; seu emprego na época tinha a ver com computadores.)
Já em Londres, estudou por contra própria sobre vários assuntos ao mesmo tempo, atrás de inspiração. Terminou fixando sua atenção na teoria evolutiva. Ficou particularmente interessado em questões relacionadas ao altruísmo – afinal, se a seleção natural é o principal “motor” da evolução, não deveria o egoísmo biológico ser um fenômeno ainda mais evidente e universal? Como explicar o surgimento e a manutenção do cuidado parental em tantas espécies animais? Mais especificamente, como o cuidado parental poderia ter se estabelecido na espécie humana? Como explicar a origem de grupos familiares?
Um lugar para trabalhar
Deparou-se então com as ideias do biólogo inglês William D. Hamilton (1936-2000). Em 1964, Hamilton havia publicado um longo artigo sobre o altruísmo (Hamilton 1964) – o qual, nos anos seguintes, se converteria em um marco na história da biologia evolutiva. Price ficou intrigado com o que leu e, em março de 1968, enviou uma carta ao inglês. No ano seguinte, após Hamilton regressar de uma viagem ao Brasil, os dois enfim estabeleceram contato – algo que marcaria para sempre a vida de ambos. Ainda em 1968, estabeleceu contato com John Maynard Smith (1920-2004), outro biólogo inglês que estava inovando as bases da teoria evolutiva.
Em junho de 1968, ele foi recebido no famoso Laboratório Galton, do Colégio Universitário de Londres. O matemático e geneticista inglês C. [Cedric] A. [Austen] B. [Bardell] Smith (1917-2002), com quem Hamilton havia trabalhado durante a pós-graduação, apresentou Price ao chefe do departamento e este prontamente o contratou. A partir de então, para sua grande surpresa e satisfação, ele passou a dispor de uma sala própria, remuneração, amparo institucional e convivência com colegas. (Trabalhando no mesmo laboratório durante a pós-graduação, o jovem Hamilton não teve acesso sequer a uma mesa!)
Entre 1968 e 1972, Price escreveria – sozinho ou em coautoria – três artigos fundamentais. Cada um desses artigos representa um feito intelectual notável e juntos eles constituem um expressivo e importante legado científico – um legado que não só marcaria a biologia evolutiva, mas que verdadeiramente ajudaria a moldar a história da disciplina. Poucas vezes alguém, tendo escrito tão pouco, influenciou tanto uma área da ciência.
Legado de um desconhecido
A primeira de suas três contribuições foi a elaboração de uma expressão matemática para a seleção natural (Price 1970). Tal expressão, conhecida hoje como equação de Price, mostra como um caráter hereditário pode evoluir de uma geração a outra, dependendo apenas da contribuição que dá para a aptidão dos seus portadores. (Em termos biológicos, a aptidão nada tem a ver com força ou subjugação física. Trata-se de uma grandeza que mede a contribuição relativa de diferentes indivíduos na composição genética da próxima geração de descendentes.) Com base nessa nova formulação, Hamilton publicaria um ajuste ao seu famoso artigo de 1964 (Hamilton 1970). Vale ainda ressaltar que embora a equação de Price tenha sido originalmente formulada visando a uma aplicação biológica, ela é uma ferramenta de amplo espectro, suficientemente geral a ponto de ser aplicável a qualquer tipo de processo seletivo.
A segunda grande contribuição foi mostrar que a chamada teoria dos jogos, cuja formulação original visava equacionar fenômenos de economia e comportamento humano, poderia ajudar a resolver vários problemas biológicos. Embora seja costume creditar esse pioneirismo apenas a Maynard Smith, ele próprio fez questão de frisar que sua formulação do conceito de estratégia evolutivamente estável (EEE) foi inspirada na leitura de um manuscrito de Price sobre combates ritualizados entre animais. (Uma EEE pode ser descrita como uma combinação de fenótipos capazes de coexistir de modo indefinido em uma mesma população. Tal convivência é possível graças à estabilidade gerada pelas frequências relativas dos próprios fenótipos.)
A história desse artigo é por si só inspiradora, mostrando que para ser um grande cientista não é necessário esfaquear ninguém pelas costas. Em 1968, Price havia submetido um manuscrito para avaliação e eventual publicação na revista científica Nature. Atendendo uma solicitação da revista, Maynard Smith teve acesso privilegiado a esse material na condição de revisor. Assim como havia acontecido com Hamilton um pouco antes, quando tomou conhecimento da equação de Price para a seleção natural, Maynard Smith de pronto percebeu os possíveis desdobramentos do que tinha diante de si. Fez contato com o autor, oferecendo ideias e material adicional. O manuscrito original de Price, porém, jamais foi publicado. Após uma série de contratempos, uma versão modificada foi publicada cinco anos depois, tendo agora os dois como coautores (Maynard Smith & Price 1973).
A terceira grande contribuição tem a ver com a elaboração de uma versão mais detalhada e inteligível de um modelo matemático proposto em 1930 pelo matemático e naturalista inglês Ronald A. Fisher (1890-1962). Até então, o chamado teorema fundamental da seleção natural era mais um objeto de veneração do que propriamente de compreensão. A formulação original era um tanto obscura, levando a uma interpretação que contradizia os argumentos e o raciocínio adotados pelo próprio Fisher. A derivação proposta por Price mostra como a formulação original poderia ser traduzida em termos biológicos mais compreensíveis (Price 1972).
Um sem-teto
Em novembro de 1973, quando o artigo em coautoria com Maynard Smith finalmente apareceu, George Price já estava com a cabeça em outro lugar. Desde meados de 1970, após uma longa trajetória de ateísta militante – talvez o principal fator a contribuir para a ruína do seu casamento, pois Julia Madigan era católica praticante –, ele havia se convertido ao cristianismo e estava agora levando sua opção às últimas consequências. Decidiu doar os seus bens, além de transformar o seu confortável apartamento em abrigo para alguns despossuídos. Às vezes, havia tanta gente que ele próprio tinha de dormir fora de casa – uma atitude que me faz pensar em alguém com traços de Dorothy Day [Moira Kelly] e Peter Maurin [Martin Sheen], retratados no filme Celebração dos anjos: a história de Dorothy Day [Entertaining angels: the Dorothy Day story, de 1996].
Adotou o costume de vagar pelas ruas, perguntando aos sem-teto que encontrava o que poderia fazer para ajudá-los. Em dezembro de 1972, foi hospitalizado com sinais de uma possível tentativa de suicídio; recuperou-se e voltou a trabalhar – foi após essa crise que ele concluiu sua contribuição para a última versão do artigo com Maynard Smith. Interpretou a própria recuperação como um sinal de que ele era o portador de alguma mensagem divina. A partir de então, teria altos e baixos, mas sua instabilidade mental não iria mais regredir.
Hamilton e Maynard Smith insistiam para que ele colocasse suas ideias científicas no papel. Price, no entanto, parecia cada vez menos interessado em publicar artigos científicos. Em junho de 1973, livrou-se dos seus últimos pertences, incluindo o próprio apartamento onde morava. Nessa época, ocupava a maior parte dos seus dias com trabalhos de assistência social. Seu crescente envolvimento com essas atividades terminou gerando um clima ruim para ele no Laboratório Galton.
Decidiu se afastar ainda mais do mundo acadêmico, passando a esconder o que fazia. Por fim, a bolsa que recebia terminou e ele não se importou em renová-la. Em março de 1974, vivendo como um sem-teto, Price foi morar na casa de uma senhora que ele próprio havia ajudado anteriormente. Arranjou um emprego noturno, mas logo o abandonou. Em agosto, foi morar no segundo andar de um prédio abandonado, situado a poucos quarteirões do seu antigo apartamento. Apaixonou-se por uma artista estadunidense, bem mais nova do que ele, cujo estúdio ficava no primeiro andar do prédio. Em cartas aos familiares e amigos, dizia que tinha planos de se casar de novo e voltar a morar nos Estados Unidos.
Em dezembro, passou alguns dias na casa da família Hamilton. Quando partiu, no dia 19, parecia bem de saúde. Combinaram um reencontro para o Ano Novo. Os problemas, porém, se precipitaram e os fatos tomaram outro rumo. Na primeira semana de 1975, George Price foi tragado pela última crise de sua vida: em 6 de janeiro, seu corpo foi encontrado no apartamento onde morava. As evidências levaram à conclusão de que ele havia se suicidado, cortando a artéria carótida na altura do pescoço.
Pingos nos is
A despeito do notável legado científico que deixou, George Price segue sendo uma figura virtualmente desconhecida. A própria comunidade científica demorou a reconhecer a relevância do seu trabalho. Foram necessárias mais de duas décadas após a sua morte até que aparecesse um primeiro artigo com alguma visibilidade chamando a atenção para o seu nome e a extensão de seu legado.
Coube ao biólogo estadunidense Steven A. Frank quebrar o gelo (Frank 1995). A partir de então, apareceram outros artigos, com destaque para uma pequena e valiosa biografia escrita por James Schwartz (Schwartz 2000). Nesse meio tempo, também começaram a surgir artigos fora da esfera estritamente biológica, principalmente por causa do alcance e da pertinência da equação de Price para o entendimento de processos seletivos em economia, linguística, psicologia etc. A publicação do livro de Oren Harman é, até certo ponto, fruto desse processo.
Os leitores brasileiros dispõem de poucas informações a respeito dele. A rigor, o único comentário significativo em português que consegui encontrar está no livro As origens da virtude (Ridley 2000). Não ocupa, porém, mais do que um único parágrafo de 11 linhas, ao longo do qual o autor chama mais atenção para os distúrbios psicológicos de Price do que para a sua sagacidade intelectual. E o pior: não ressalta a importância de seu legado.
George Price, com todos os distúrbios que possa ter tido, ombreou com dois gigantes da biologia evolutiva, John Maynard Smith e William D. Hamilton. Nessa história, ele não foi apenas um coadjuvante, mas um verdadeiro protagonista. Uma história que terminou trágica e precocemente no inverno londrino de 1975 e cujos detalhes, até alguns anos atrás, eram de conhecimento apenas de familiares e um ou outro amigo.
Referências
CRONIN, Helena. 1995. A formiga e o pavão. Campinas, Papirus.
FRANK, Steven A. 1995. George Price’s contributions to evolutionary genetics. Journal of Theoretical Biology 175: 373-88.
HAMILTON, William D. 1964. The genetical evolution of social behavior, I & II. Journal of Theoretical Biology 7: 1-52.
_____. 1970. Selfish and spiteful behaviour in an evolutionary model. Nature 228: 1218-20.
MAYNARD SMITH, John & PRICE, George R. 1973. The logic of animal conflict. Nature 246: 15-18.
PRICE, George R. 1970. Selection and covariance. Nature 227: 520-1.
_____. 1972. Fisher’s ‘fundamental theorem’ made clear. Annals of Human Genetics 36: 129-40.
RIDLEY, Matt. 2000. As origens da virtude. Rio de Janeiro, Record.
SCHWARTZ, James. 2000. Death of an altruist. Lingua Franca 10: 51-61.
WRIGHT, Richard. 1996. O animal moral. Rio de Janeiro, Campus.
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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)]