Primeiro, a Justiça decidiu que a moça não poderia ter filhos e obrigou-a a usar um DIU (dispositivo intrauterino) por nove anos, para impedir uma eventual gravidez. A justificativa foi que ela sofria de “retardo mental moderado” – ou seja, tinha um QI inferior. Essa decisão, que obrigou a moça até a mudar de cidade, para que não fosse obrigada a fazer uma laqueadura, foi recentemente revogada. O Ministério Público agora promete investigar qualquer pessoa que se relacione sexualmente com ela, caracterizando o caso como “estupro de pessoa incapaz”. Enfim, essa moça (que não teve o nome divulgado), de 27 anos, não apenas está impedida de ter filhos como terá sua vida sexual – se é que algum dia vai ter alguma – sob permanente investigação.
Essa invasão de privacidade tem sido tratada pela mídia como apenas mais um caso de decisão judicial, dessas que merecem um simples registro:
“A justiça revogou uma decisão de 2004, baseada em uma ação protetiva do Ministério Público Estadual, de fazer laqueadura em uma mulher de 27 anos, sem filhos, moradora de Amparo, no interior de São Paulo, por ela sofrer de retardamento mental moderado e ter situação econômica precária. Mas a promotoria promete investigação criminal por estupro de vulnerável contra quem se relacionar sexualmente com a mulher. A revogação da laqueadura ocorreu após uma petição da coordenadora assistente do Núcleo de Direitos Humanos, Daniela Skromov, que considerou a decisão inconstitucional. Segundo o promotor responsável, Rafael Belucci, foi levado em consideração o novo cenário em que a mulher está inserida” (O Estado de S.Paulo, 15/1/2013).
“Medidas protetivas”
Ouvida pelo Estado de S.Paulo, Izabel de Loureiro Maior, representante do Brasil na ONU para a elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, não concorda com a decisão de investigar quem mantiver relações sexuais com a moça:
“Partir da premissa de que qualquer relação com uma pessoa com deficiência intelectual ou qualquer outra deficiência será um estupro de vulnerável é um desconhecimento dos direitos desses indivíduos. Pessoas como a mulher de Amparo devem receber apoio prévio para que não sejam vítimas de qualquer coisa que esteja um pouco além de sua capacidade de entendimento e defesa.”
O descaso ou preguiça da mídia acaba deixando os leitores com meia informação. Fomos informados que a moça sofre de “retardo mental moderado” e que, nas palavras da própria promotoria, sua situação melhorou nos últimos anos. Só que nenhum jornal ou revista explicou o que é essa doença, embora seja amplamente discutida na web. E nenhum veículo usou o velho recurso de telefonar para um especialista e perguntar o que essa doença faz com a pessoa e que chances ela tem de ter uma vida normal. A única entrevistada que deu uma visão menos judicial da história foi Izabel de Loureiro Maior.
Essa história, por enquanto mal explorada pela imprensa, poderia render várias e boas matérias, discutindo a situação das pessoas com “retardo mental moderado” que, segundo o Censo de 2010, são mais de 1% da população. Seria interessante mostrar que tipo de auxílio educacional os deficientes recebem – ou poderiam receber – e contar histórias de casais em que um dos dois (ou os dois) são doentes e ainda assim criam famílias.
Seria mais interessante ainda discutir até que ponto a Justiça pode efetivamente proteger o cidadão ou interferir em sua vida pessoal. E perguntar se, em vez de apenas se limitar a “tomar medidas protetivas”, que anos depois foram consideradas desnecessárias, não seria o caso de o Ministério Público e a imprensa investigarem as instituições públicas responsáveis pelo amparo às pessoas com deficiências leves, moderadas e graves.
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[Ligia Martins de Almeida é jornalista]