Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Intrigas e jogos de poder nas entrelinhas

Sabe-se, pelos dados oficiais publicados pela Sé romana, que o caixa do Instituto de Obras Religiosas mais o óbolo de São Pedro (doadores e colaboradores generosos) contavam em 2011 com uma renda de 516,7 milhões de euros. O mundo das finanças no pequeno Estado católico sempre foi agitado e a reportagem da revista brasileira Aventuras na História de maio de 2011, intitulada “O Dinheiro do Vaticano”, tratou de mostrar isso muito bem. Enquanto o receoso papa Leão 13, no começo do século passado, guardava uma arca de ferro com joias, ouro e dinheiro debaixo de sua cama, nos fins do século o Vaticano estava imerso em escândalos de lavagem de dinheiro e falência de bancos. A publicação da revista ocorreu em 2011, mas o assunto permanece estranhamente atual.

Próximos do novo milênio, o centro da mais antiga e influente instituição político-religiosa do mundo havia se tornado um paraíso fiscal para mafiosos, cardeais e políticos italianos, como o famoso primeiro-ministro Giulio Andreotti. Quando questionado sobre tais trâmites, célebre tornou-se a frase do bispo e secretário do banco, Paul Casimir Marcinkus, proferida na tensa década de 1970: “Pode-se viver neste mundo sem se preocupar com o dinheiro? Não se pode dirigir a igreja com ave-marias”, disse sarcasticamente aos repórteres. Seriam os sucessores de Marcinkus ainda devotos a tal máxima?

No artigo “Vaticano e Imprensa: Um infindável conflito” (29/11), neste Observatório, no qual abarquei as mais pontiagudas pedras nos calçados da igreja, alguns “nós” não foram totalmente desatados. Alguns leitores questionaram: afinal de contas, o que acontece hoje no Estado do Vaticano? Qual o papel da imprensa nisso tudo? Há complôs e conspirações como antigamente? A imprensa nos fornece subsídios para que possamos, primeiramente, compreendê-las, mas para respondê-las necessitamos olhar para trás, para a lenta e gradual estruturação do Patrimonium Sancti Petri,do Estado Pontifício e suas especificidades institucionais.

Belas intrigas político-religiosas

Precisamos analisar profundamente cada detalhe que, na maioria das vezes, passa despercebido a olhos desatentos. Como entender o Banco Vaticano? Como conhecer os complôs noticiados pela imprensa internacional, e principalmente pelos jornais italianos? A monarquia de Bento 16 estaria debilitada a tal ponto que facções de cardeais e arcebispos travam árduas batalhas para a sucessão do trono? Para entender o que sucede nos corredores sagrados dos palácios renascentistas faz-se necessário retornar ao passado. Um conceito que a grande maioria dos homens de batina, por diversas razões, almeja esquecer.

Dois momentos de grande importância macro-histórica, dentre tantos outros, podem explicar sinteticamente a construção, o auge e o declínio do poderio temporal dos pontífices sobre a Europa e o mundo ocidental. Tem-se em mente que desde a igreja pós-constantiniana, passando pelas mãos de Carlos Magno e Pepino, o Breve, a igreja acumulou riquezas, feudos e territórios – lutando com unhas e dentes para mantê-los e defende-los – como qualquer outra monarquia europeia. Não obstante, através de sua visão universalista proveniente do cristianismo primitivo, desejava abarcar para Cristo (e para o papa) todos os povos e nações.

Ambições à parte, os Estados pontifícios reinavam e estabeleciam o seu poder. Para Gregório 7, “o papa não pode ser julgado por ninguém; a Igreja Romana nunca errou e nunca errará até o final dos tempos”, já com Inocêncio 3, o papado sobressaiu-se da sociedade e das monarquias terrenas. A igreja, no entanto, nada tinha de universal. Seus planos logo foram retidos e simbolicamente reelaborados, pois o Sacro Império possuía as mesmas ambições. Ironicamente, o conflito entre ambos os poderes – celeste e terreno – gerou as mais belas intrigas político-religiosas do Ocidente medieval.

Responsável pela “limpeza”

Os séculos se passaram. Ocorreu então, a unificação das regiões da Península itálica na segunda metade do século 19. De acordo com a historiadora brasileira Anna Carletti, era evidente que desde a metade do século 18 “os papas (…) tinham consciência da inevitável perda dos Estados pontifícios”. Com os ímpetos revolucionários vindos da França jacobina, levantes como os Três Dias Gloriosos de 1830 e a Primavera dos Povos de 1848 – além do “espectro” do comunismo – alteraram bruscamente as estruturas político-econômicas de toda a Europa.

Outro momento bastante ambíguo revela-se no Tratado de Latrão, concordata assinada por Pio 11 e pelo ditador fascista Benito Mussolini, em 1929. Após diversos conflitos entre a Itália e o papado, decidiu-se que a igreja católica se concentraria no coração de Roma, em 44 quilômetros quadrados englobando a Praça de S. Pedro, a Basílica, a mansão papal, os jardins, o banco, o arquivo e os museus. Alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, em 1950, o “papa de Hitler”, Pio 12, inaugura o famoso Banco Vaticano, formalmente conhecido como Instituto de Obras Religiosas. Mussolini, “o homem que a Providência nos enviou”, de acordo com Pio, tinha salvado o papado. O tratado estava assinado, o Estado formado e o banco ativado. A igreja reerguia-se.

Entretanto, há a necessidade de esmiuçarmos o tratado assinado no palácio católico de Latrão para melhor compreender as atuais práticas e estratégias institucionais da Santa Sé. De acordo com o tratado, os dirigentes e órgãos – como o Banco Vaticano – não podem ser investigados nem processados na Itália (ou em qualquer outro lugar). Não há, pela lei, intervenção internacional de nenhuma natureza. O artigo 11 reza que: “Os órgãos centrais da Igreja Católica estão isentos de qualquer interferência por parte do Estado italiano […] bem como da conversão no tocante aos bens imóveis”. De acordo com o jornalista investigativo italiano Gianluigi Nuzzi, “(…) quem trabalha em estruturas centrais da Santa Sé não pode, portanto, ser submetido a julgamento ou ser detido na Itália. Na prática, goza de uma imunidade não contemplada em nenhum outro código e que, ao contrário, relembra aquela prevista apenas para o presidente da República (…)”.

Foi assim, por exemplo, que depois de participar de complôs financeiros com o Banco Ambrosiano, o bispo Marcinkus não foi nem detido nem sentenciado. Foi apenas afastado por João Paulo II algum tempo depois. Mas o tempo de Marcinkus já passou. O passado é o passado. Deixemos ele para trás. Será? O bispo Carlo Maria Viganò, monsenhor responsável pela “limpeza” do Banco Vaticano, discordaria veemente. E pensávamos nós que a era perniciosa da Igreja tinha chegado ao fim. “Corrupção”, diz o bispo Viganò. Corrupção!

Afastado e silenciado

Noticiado com virulência nos jornais italianos, como Il Giornale ou o Corriere della Sera, ou europeus como The Guardian ou o Times,mas deixado de lado pela imprensa brasileira e latino-americana, o caso do monsenhor Carlo Viganò foi revelado com destreza através da mais recente obra de Gianluigi Nuzzi, Sua Santidade, na qual escândalos recentes do pontificado de Joseph Ratzinger vieram à tona, levando o mordomo de Bento 16, Paolo Gabriele, no princípio “responsável” pelo vazamento de informações e correspondências sigilosas, a pegar 18 meses de cárcere no próprio Estado papal – julgado e “defendido” pela própria jurisprudência da igreja.

Algumas questões foram por mim levantadas no artigo “Um infindável conflito”, neste Observatório. Afinal de contas, estaria a Cúria romana envolvida no vazamento de informações sigilosas? Mas, por quê? Teria o papa Bento 16 inimigos internos? Gianluigi Nuzzi, com riqueza de detalhes, e com base em documentos institucionais, tem as respostas.

Alguns meses antes da publicação do livro, a revista brasileira de economia e finanças Exame, no dia 25 de janeiro de 2012, noticiou aquilo que ocorria com intensidade no outro lado do Atlântico: “Arcebispo denuncia ao papa corrupção no Vaticano”. Na notícia, lemos que “o atual núncio da Santa Sé nos Estados Unidos e ex-secretário-geral do Governatorato da Cidade do Vaticano – o governo que administra o Estado –, o arcebispo Carlo Maria Viganò, denunciou em carta a Bento 16 a ‘corrupção e a má gestão’ na administração vaticana, informou a imprensa italiana nesta quarta-feira”. A revista Exame foi um dos únicos veículos informativos em que a história apareceu. Poucos foram aqueles que reportaram tais afirmações. A Folha de S.Paulo publicou uma fotografia de Bento 16 com uma pequena legenda sobre a temática, já o Estado de S.Paulo nada falou sobre o assunto. Em contraposição e com o passar dos meses, cobriam assiduamente o julgamento de Paolo Gabriele, o “responsável”, o réu, o culpado. Mal pensavam eles que ambas as histórias estavam intrinsicamente conectadas. O bispo Viganò foi afastado para os Estados Unidos. E, silenciado, nada pôde fazer. O banco e aqueles que o administravam eram muito mais fortes que apenas um clérigo, um bispo, um homem..

Debaixo de tapete

Enfim, chegou o Natal. E, tradicionalmente, na noite do dia 24, vozes e cantos gregorianos ecoavam nas estátuas de gesso e mármore de Maria Madalena e Saulo de Tarso, proferidas do reluzente púlpito na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Transmitido pela Rede Globo de Televisão, canais católicos e a TV Cultura, ocorria um momento ritualístico da dogmática católica romana celebrada desde o século 4, mais precisamente na primeira metade dos anos 300. Entretanto, a Missa do Galo que presenciamos arrastou-se de uma maneira penosa através da rouca e cansada voz de Joseph Ratzinger, papa Bento 16, evidenciando uma fadiga anormal para um monarca tão prestigioso. Lembremo-nos que Ratzinger está a menos de um decênio como sucessor de São Pedro. Balbuciando orações, estavam ao seu lado Ângelo Sodano, cardeal ligado a esquemas de corrupção e envolvimento com o pinochetismo no Chile, dos anos 1970; e o secretário de Estado Tarcísio Bertone, o verdadeiro marionetista da Santa Sé, recentemente envolvido em intrigas internas, acusado de almejar a sucessão pontifícia.

As câmeras de televisão mostravam as cores da hierarquia que se sobressaía dos magnatas com seus chapéus de pena e casacos de pele, dando ênfase, uma vez ou outra, aos anéis forjados a ouro e adornados com rubis e ametistas. O vermelho cor-de-sangue dos cardeais e o roxo, logo atrás, dos bispos, ostentavam fortalecimento e compostura, mas também uma pitada de desconforto. As crises no menor Estado do mundo se tornaram evidentes para seus espectadores, fiéis e observadores.

Em junho-julho de 2013, Bento 16 estará no Brasil graças à Jornada Mundial da Juventude. Se até lá a hierarquia permanecer calada e nenhum outro escândalo vier à tona, o evento religioso nas terras brasileiras será um grande sucesso. Os problemas, jogados novamente para debaixo de tapete, serão mais uma vez esquecidos. A incógnita permanece: até quando?

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[Luis Felipe Machado de Genaro é estudante de História, Ponta Grossa, PR]