Fernando de Castro, coordenador das pesquisas da PUC do Rio Grande do Sul sobre TV Digital, fala ao e-Fórum sobre a contribuição da universidade paras as pesquisas do sistema brasileiro e o desprezo do ministro Hélio Costa por uma das soluções inovadoras desenvolvidas por sua equipe: o sistema de modulação Sorcer. Ele é doutor em engenharia elétrica, professor universitário e coordenador das pesquisas do Laboratório Multidisciplinar para Tecnologias da Informação e Telecomunicações (LMTIT) do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas (IPCT) da PUCRS sobre TV Digital.
Em audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, em 31/1, o ministro das Comunicações Hélio Costa disse que a PUCRS sugeriu a adoção de ‘um padrão de TV Digital que não existe’. Ele se referia ao sistema de modulação Sorcer, genuinamente nacional, desenvolvido nos laboratórios da instituição gaúcha e recomendado para utilização no Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD).
Para Fernando de Castro, coordenador das pesquisas da universidade, a instituição obedeceu ao que foi encomendado pelo governo. ‘Sendo inovador, o sistema proposto não poderia contemplar qualquer padrão já existente’, argumenta. O descontentamento do ministro tem explicação: os dois outros consórcios que desenvolveram soluções para o padrão de modulação da TV Digital utilizaram como base o japonês.
Além de eliminar a necessidade de adoção de um dos três padrões internacionais de modulação, a adoção do Sorcer traria benefícios como a redução de custos ao consumidor, a livre divisão do canais para diversas aplicações e a recepção móvel em velocidades superiores a 120km/h. Trabalhos como esse demonstram o potencial do Brasil para figurar entre os países exportadores de tecnologia, garante Castro. A seguir, sua entrevista.
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Qual sua avaliação sobre a contribuição da universidade brasileira para o SBTVD? As pesquisas estão sendo valorizadas como deveriam?
Fernando de Castro – O SBTVD estabeleceu um marco divisório: pela primeira vez na história brasileira a academia se uniu em torno de um grande desafio tecnológico, apresentando soluções inovadoras, que nada deixam a desejar em termos do desempenho comparativo às soluções estrangeiras. Todo este rol de novas tecnologias desenvolvidas, estivéssemos nós no primeiro mundo, já estariam protegidas por patentes internacionais e trancadas a sete chaves em cofres de grandes conglomerados empresariais. Não que haja negligência do governo brasileiro quanto a este aspecto. Muito pelo contrário: providências estão sendo tomadas pelo Grupo Gestor do SBTVD no que tange à propriedade intelectual. A alusão à situação é apenas uma alegoria ao alto valor intrínseco das inovações que resultaram do SBTVD. E é justamente neste aspecto que o momento histórico parece transcender o SBTVD, na medida em que, se a atual conjuntura – desencadeada pelo SBTVD – for adequadamente explorada pelo nosso governo, poderemos em poucos anos colocar o Brasil na lista dos países exportadores de tecnologia. Isto não é uma utopia nacionalista, visto que em sua esmagadora maioria as grandes inovações tecnológicas recentes, nos mais variados ramos da atual atividade humana, são basicamente processos ou algoritmos implementados em software. O hardware está gradativamente ocupando a posição de um mero substrato de silício, com uma arquitetura lógica cada vez mais genérica e de custo cada vez mais reduzido, sobre o qual um determinado sistema é completamente caracterizado e definido pelo respectivo software. Um exemplo disto é a tecnologia empregada em telefonia celular. Justamente esta particular contingência atual é que nos coloca em igualdade de condições com centros de pesquisa tecnológica há séculos mais desenvolvidos: a criatividade da mente brasileira. Pergunte-se a qualquer centro de pesquisa e desenvolvimento de software a nível mundial qual a nacionalidade preferida para seus pesquisadores e desenvolvedores e notaremos que a nação tupiniquim ocupa uma posição preponderante. O fomento desta área no Brasil aliado a parcerias com a indústria certamente seria de efeito benéfico na balança comercial brasileira, seja pela redução com gastos em royalties, seja pela captação de royalties gerados por tecnologia nacional utilizada no contexto internacional.
O ministro Hélio Costa sugeriu recentemente que a PUCRS desenvolveu ‘um padrão que não existe’. Qual sua opinião sobre este posicionamento público contra seu trabalho?
F.C. – Em 1933, Edwin Armstrong solucionou o problema do ruído atmosférico que dificultava a recepção de rádio AM mediante o uso de uma técnica inovadora denominada FM. Somente em 1937, a indústria admitiu a validade da nova forma de modulação – o FM –, apesar da queixa generalizada dos ouvintes quanto ao ruído atmosférico. Qual seria a razão deste estranho comportamento? Ocorre que as grandes indústrias, como a RCA e a Westinghouse, ainda não haviam tido retorno sobre o capital investido no desenvolvimento do AM. É o ferrenho conflito entre inovação e padronização que se manifestava já naquela época. A PUCRS recebeu a incumbência do governo brasileiro de desenvolver um sistema de modulação de caráter inovador. Sendo inovador, o sistema proposto não poderia contemplar qualquer padrão já existente.
Quais foram os trabalhos de pesquisa realizados na PUCRS para o desenvolvimento do SBTVD e qual foi o grau de inovação alcançado por sua equipe?
F.C. – A PUCRS foi responsável por duas linhas de pesquisa, desenvolvimento e inovação no contexto do SBTVD: uma é o projeto Saint (Sistema de Antenas Inteligentes) e a outra é o projeto Sorcer (Sistema OFDM com Redução de Complexidade por Equalização Robusta). O Saint foi concebido de forma a prover robustez adicional ao receptor de televisão digital. Em termos simples, a ação dele consiste em efetuar ajustes na antena receptora da mesma maneira que um usuário faria manualmente objetivando a melhor qualidade de imagem. A diferença é que o Saint faz eletronicamente esses ajustes, de forma automática, sem o movimento de partes mecânicas e sem qualquer intervenção do usuário. Isto permite redução de custo no receptor, e, portanto, ao usuário final.
O Sorcer é um sistema de transmissão e recepção (modulação) inovador, genuinamente nacional, concebido de forma a permitir recepção de televisão digital em alta definição fixa e móvel, a mais de 120 Km/h. Diferentemente dos demais sistemas OFDM (sigla em inglês de Multiplicação Ortogonal por Divisão de Frequência, tecnologia de transporte de dados por ondas de rádio) para transmissão de televisão que utilizam um grande número de portadoras (normalmente mais de 8000), o Sorcer utiliza apenas 2048 portadoras, permitindo uma considerável redução de custo no receptor, e, portanto, ao usuário final.
Quais foram os resultados obtidos? O que foi encaminhado ao Comitê de Desenvolvimento do SBTVD?
F.C. – Quanto o Saint, sua concepção é tal que o sistema é capaz de perceber o cenário de ondas eletromagnéticas interferentes que incidem na antena receptora, cancelando ondas interferentes provenientes de até duas direções distintas da direção em que o sinal desejado é recebido. Isto significa que o Saint aumenta a imunidade do receptor às inúmeras reflexões do sinal (‘fantasmas’) que inevitavelmente ocorrem em regiões urbanas. Ele permite a recepção do sinal desejado com menos da metade da potência em relação ao nível de ruído sem que seja afetada a qualidade da imagem. Além disso, quando implementado em plástico metalizado (em escala industrial), o custo é similar a qualquer antena interna passível de ser adquirida no varejo. Quanto ao Sorcer, ele é altamente imune às inúmeras reflexões do sinal (‘fantasmas’) que inevitavelmente ocorrem em regiões urbanas. Ele é capaz de prover recepção móvel em alta definição (HDTV, taxa de transmissão= 20 Mb/s) com o receptor movendo-se a mais de 120Km/h. Também permite subdividir livremente o espectro de 6MHz (um canal de televisão) em quantos segmentos se deseje, cada um deles com uma ocupação espectral, taxa de transmissão e robustez configuráveis. Isto permite a transmissão de inúmeras programações e conteúdos diversos simultaneamente dentro do mesmo canal de 6MHz, como por exemplo, dados, rádio, televisão em definição padrão (SDTV), etc… Além disso, o sistema de equalização robusta do Sorcer determina o canal em todas as freqüências possíveis, de modo que qualquer degradação em freqüência é precisamente compensada, seja a degradação imposta pelo canal seja a degradação imposta por filtros/amplificadores de etapas analógicas do transmissor e/ou receptor. Isto permite, por exemplo, que o Sorcer utilize filtros com corte abrupto (fase não-linear) no transmissor, obtendo-se máxima eficiência espectral com isto. A equalização robusta desenvolvida para o Sorcer é passível de ser aplicada aos demais sistemas OFDM nos quais o receptor estima o canal com base na medição e interpolação de portadoras piloto em apenas algumas freqüências do canal. O resultado obtido será um aumento significativo da robustez do sistema OFDM ao multipercurso dinâmico. Note que apenas o receptor necessita ser alterado, o transmissor e parâmetros de transmissão permanecem os mesmos. O processo de desconvolução de canal adotado no Sorcer também é passível de ser aplicado a sistemas single carrier como o ATSC (padrão americano), também sem a necessidade de se alterar qualquer parâmetro ou característica do transmissor. Da mesma forma que para sistemas OFDM, o resultado obtido será um aumento significativo da robustez ao multipercurso dinâmico (recepção móvel). O Sorcer foi testado e validado em um ambiente de simulação especialmente desenvolvido e que simula fielmente as condições de operação encontradas em território brasileiro. Todos os processos implementados foram avaliados quanto à sua complexidade computacional de modo a não onerar a complexidade da implementação em hardware. Inúmeros testes foram realizados, onde estressou-se o sistema quanto ao multipercurso estático e dinâmico, sempre buscando a taxa de transmissão alvo de 20 Mb/s, a qual viabiliza a recepção de HDTV. Uma avaliação qualitativa preliminar do Sorcer indica um custo de implantação intermediário entre um sistema single carrier e um sistema OFDM usual. Todos os resultados obtidos foram encaminhados ao CPqD, que deverá fazer o relatório ao Comitê de Desenvolvimento do SBTVD.
Quais foram as principais dificuldades encontradas durante as pesquisas?
F.C. – O atraso no repasse dos recursos originado pela tardia assinatura dos convênios. O projeto Saint recebeu o repasse de recursos em julho de 2005 e o projeto Sorcer em outubro de 2005. Isto dificultou sobremaneira a importação de equipamentos e a contratação de recursos humanos.
Quais são as principais dificuldades de uma possível implementação das soluções sugeridas por sua equipe?
F.C. – Sob o ponto de vista técnico, nenhuma. Tanto o Sorcer quanto o Saint são tecnologias wireless (sem-fio) com plenas condições de serem implementadas em qualquer plataforma de hardware compatível com o conceito de Software Defined Radio (SDR, ou Rádio Definido por Software, em português). O SDR está se tornando uma quebra de paradigma e uma forte tendência na indústria de telecomunicações a nível mundial.
Até que ponto o padrão de modulação escolhido, considerando inclusive o Sorcer, pode determinar a configuração do restante do modelo, principalmente dos modelos de negócios e de serviços da TV Digital?
F.C. – Com certeza, em maior ou menor grau, o padrão de modulação influenciará nestes aspectos. O Sorcer, devido à sua flexibilidade, principalmente por permitir a transmissão de inúmeras programações e conteúdos diversos simultaneamente dentro do mesmo canal de 6MHz, impõe um baixo grau de condicionamento na configuração dos modelos de negócios e serviços.
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Jornalista, da Redação FNDC