Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Com saudade e com afeto

Conheci Rubem Braga na revista Manchete, em 1955, quando lá trabalhei como redator. Aliás, ali conheci muita gente, a começar por Otto Lara Resende, seu diretor, que me chamou para lá, onde trabalhavam Armando Nogueira, Darwin Brandão, Borjalo e, depois, Janio de Freitas e Amilcar de Castro. Não por acaso, logo se tornou a melhor revista do Brasil. Rubem, como Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, era colaborador, escrevia uma crônica por semana. Fui para lá por indicação de Millôr Fernandes, meu companheiro de praia em Ipanema, ao saber que tinha sido demitido de O Cruzeiro.

Como não havia vaga de redator, Otto me pôs provisoriamente como revisor, mas, para Adolpho Bloch, dono da revista, eu não era mais do que isso. Tanto assim que, quando Otto me passou a redator, criou-se um problema: “Ele não é redator, Otto, é revisor!” E Otto: “Não fala besteira, Adolpho, Gullar é um poeta, escreve muito bem.”

Ele se calou, mas não se convenceu. Acontece, porém, que Rubem Braga, por alguma razão, não mandou a crônica da semana e Otto me pediu que a escrevesse em lugar dele. Aí entra Adolpho na Redação: “Otto, esse Rubem é um gênio. Viu que bela crônica escreveu nesta semana?” Armando e Borjalo logo se aproximaram para ouvir os elogios.

Encontro com Neruda

E Otto: “Quer dizer que a crônica do Rubem desta semana é uma maravilha?” “Pode dizer a ele que adorei!” “Acontece, Adolpho”, disse Otto “que o autor dessa crônica não é Rubem Braga, é o Gullar.” Adolpho amarelou: “Você está de gozação comigo!” “Então pergunta ao pessoal aí.” “É verdade, Adolpho, quem escreveu a crônica foi o Gullar”, garantiu Armando. “Vocês estão querendo me sacanear!”, alegou Adolpho, saindo da Redação com um gesto obsceno. “Aqui pra vocês, oh!”

Mas não me tornei logo amigo de Rubem Braga, que pertencia à turma do uísque e eu à do chope. Naquela época, eu morava num quarto de pensão, no Catete, com Oliveira Bastos e Carlinhos Oliveira, que era espírito-santense como Rubem, e seu fã. Embora nunca tivesse grana para completar o aluguel do quarto, passava as noites tomando uísque com ele, Tom Jobim e Fernando Sabino. Viria a ser também um ótimo cronista.

Estive algumas vezes na cobertura de Rubem, ali na Barão da Torre. Numa dessas vezes, foi para encontrar com o poeta Pablo Neruda, que passava pelo Rio. Ao final do encontro, convidei-o a assistir à peça Dr. Getúlio, Sua Vida, Sua Glória, do Dias Gomes e minha, no Teatro Opinião. Ele foi em companhia de Rubem, que o ajudou no esclarecimento de certos detalhes da peça. No final, ele aplaudiu de pé e foi me agradecer o convite: “Agora, conheço melhor o Brasil”, exagerou ele. Pouco tempo depois, embora não mexesse com teatro, escreveu uma peça, não sei se levado pelo entusiasmo daquela noite.

O mestre da crônica

Outro convite do Rubem foi para encontrar com Gabriel García Márquez. A conversa estava animada, quando chegou um convidado que só me conhecia de nome. “Você é o poeta Ferreira Gullar?” “Às vezes”, respondi eu, para a risadaria geral. García Márquez quis saber o motivo dos risos e eu então lhe expliquei: “Respondi ‘às vezes’ porque meu nome mesmo não é Ferreira Gullar, mas José de Ribamar Ferreira, e também porque não sou poeta 24 horas por dia. Só às vezes.”

Ele gostou da minha tirada, tanto que, pouco depois, ao falar a um jornal mexicano, a contou, mas atribuindo-a a Jorge Luis Borges. Quem me informou disso foi Leon Hirszman, que também esteve na casa de Rubem naquela noite. Estava desapontado. Entendi: a tirada era boa demais para ser atribuída a um desconhecido.

Adolpho, ao elogiar a crônica que escrevi com o nome do Rubem Braga, estava mais uma vez equivocado. Era apenas interessante, não alcançava o nível das crônicas que o Rubem escrevia e fizeram dele um mestre do gênero na imprensa brasileira.

Agora, ao falar dele aqui, quando se comemora seu centenário de nascimento, lembro-me de uma linda crônica sua que começa assim: “Vieram alguns amigos. Um trouxe bebida, outros trouxeram bocas. Um trouxe cigarros, outro apenas um pulmão. Um deitou-se na rede e outro telefonava. E Joaquina, de mão no queixo, olhando o céu, era quem mais fazia: fazia olhos azuis.”

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[Ferreira Gullar é escritor e colunista da Folha de S.Paulo]