Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A víbora

Mulheres requintadas “como as orquídeas que nascem de dezenas de enxertos”, desfilando nos “salões carcamanos” da avenida Paulista, em “noites lanteloujantes” em plena época de guerra.

Foi com a descrição ácida dos costumes do “high society” paulistano no começo da década de 1940 que o sergipano Joel Silveira (1918-2007) ganharia um apelido para toda vida, dado por Assis Chateaubriand: “a víbora”.

A reportagem, “Grã-finos em São Paulo”, publicada na revista Diretrizes (em 1943), de Samuel Wainer, serviria como arranque para uma das carreiras mais bem sucedidas da história do jornalismo brasileiro.

Joel Silveira, que teve mais de 20 livros publicados, é o personagem do primeiro documentário produzido pela Globo News, que vai ao ar no sábado (2/1), às 20h30, com reprise no domingo, às 10h30.

Segundo Eugenia Moreyra, diretora da emissora, o objetivo é estrear mais um documentário ainda neste ano.

Garrafas ao Mar – A Víbora Manda Lembrançasfoi escrito e dirigido por Geneton Moraes Neto, ex-editor executivo do Jornal Nacional e geral do Fantástico, que atualmente realiza entrevistas para o programa Dossiê, da Globo News.

Joel, que acompanhou os pracinhas brasileiros cobrindo a Segunda Guerra, é expoente do gênero “jornalismo literário”, dentro de uma linhagem de grandes reportagens inaugurada por Euclides da Cunha, com o seu magnífico Os Sertões, publicado em 1902.

“Tomara que o documentário funcione como espécie de manifesto pela volta de um 'jornalismo autoral', que infelizmente perdeu espaço na imprensa de hoje. Lutar por ele é lutar por um Brasil menos medíocre”, diz Geneton.

“Figuras como Darcy Ribeiro e Paulo Francis -capazes de incendiar a mesmice com ambições originais para o Brasil-, fazem uma falta imensa. A mediocridade e despolitização me assustam. Há uma certa síndrome de frigidez editorial”, acrescenta.

Obra mescla documentário e reportagem

A principal matéria-prima de Garrafas ao Mar são as 15 fitas cassete e três horas de entrevista feitas pelo próprio Geneton ao longo de duas décadas de amizade e convivência com Joel Silveira.

O tom que prevalece na conversa é o de mestre e aprendiz, como ressalta o texto em primeira pessoa de Geneton, narrado por Raimundo Fagner.

A escolha do cantor cearense de sotaque acentuado se deu por afinidade entre conterrâneos.

Geneton, pernambucano, se identifica com Joel como forasteiro nordestino acolhido no Rio. Ambos, afinal, chegaram à cidade com um bloco de anotações na mão e muitas ideias na cabeça.

Coube aos atores Carlos Vereza e Othon Bastos fazer a leitura de trechos dos textos de Joel. Muitos dos protagonistas da história no século passado foram objeto de suas entrevistas e reportagens.

Joel conheceu pessoalmente Getulio Vargas 15 dias antes do suicídio (tinha “uma mão delicada, quase feminina, de unhas bem tratadas”). Trabalhou ao lado de Carlos Lacerda e Nelson Rodrigues.

Entrevistou Monteiro Lobato, e teve contato com Gilberto Freyre, Graciliano Ramos e Jorge Amado.

Sobram anedotas e observações ferinas de todos esses momentos.

Instado a falar sobre os parâmetros para o bom exercício da profissão, Joel cita Herbert Matthews, gigante do jornalismo americano, a quem conheceu pessoalmente: “É preciso paciência, persistência e sorte”. E mais, “o repórter não existe – o que existe é a notícia”. Já Chateaubriand teria dito certa vez: “Saiba 'Vossência' que jornalista que não enriquece é burro”.

Garrafas ao Marparece estar em um limbo entre dois gêneros, o documentário e a longa reportagem televisiva.

O tom pessoal e talvez exageradamente emotivo pressupõe um formato diferenciado. O ritmo também é outro, sem cortes rápidos. Há o recurso de chamar dois grandes atores para participarem de um filme que, afinal, é sobre imprensa escrita. E ainda dois belos planos-sequência.

O resultado final ecoa o que há de melhor no padrão de qualidade jornalística da emissora, o que não é pouco. Mas não escapa de certa pasteurização, a que o telespectador está habituado.

O recurso de ancorar o filme na longa sequência de entrevistas é um risco assumido. O contexto para se compreender melhor a trajetória de Joel e mesmo as histórias contadas por ele faz falta.

Ainda assim, Garrafas ao Mar vale muito pelo relato da “víbora” e pelo talento em perguntar de Geneton, que já produziu memoráveis entrevistas com Darcy Ribeiro, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, além do general Newton Cruz.

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Joel Silveira foi melhor que o repórter americano Gay Talese (e 20 anos antes)

Ruy Castro (*)

Em 1965, o repórter americano Gay Talese queria entrevistar Frank Sinatra. Como Sinatra o enrolasse e não lhe desse a entrevista, Talese ouviu gente ao redor do cantor, observou-o sem ser observado e produziu seu texto, “Frank Sinatra Está Resfriado”, publicado em 1966 na revista Esquire e, depois, no livro Fama & Anonimato. Texto esse até hoje adotado e reverenciado pelas escolas de comunicação como exemplo de sagacidade do repórter e de jornalismo criativo.

Em 1945, o repórter sergipano Joel Silveira, radicado no Rio, foi destacado por Assis Chateaubriand para cobrir o “casamento do século”, de Filly, filha do conde Francisco Matarazzo, com o jovem da sociedade João Lage, em São Paulo. Sem convite, Joel não pôde assistir ao casamento -na verdade, uma maratona de recepções, bailes, almoços, chás, cerimônias e beija-mãos. Então, ouviu pessoas que presenciaram tudo e escreveu a reportagem “A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista”, publicada em O Jornal e, em 2003, num livro com esse título.

Ou seja, Joel fez a mesma coisa que Talese, só que 20 anos antes, sendo que a diferença entre seu texto e o de Talese é que o de Joel é melhor. Mas não se credite a ele o macete da “entrevista sem sujeito”. Com más ou boas intenções, esta era praticada desde que o jornalismo deixou de ser apenas artigo opinativo e incorporou a prática da reportagem -o que, nos Estados Unidos, já era comum em meados do século 19 e, no Brasil, levamos quase um século para adotar. No que começamos, porém, já tínhamos Joel Silveira.

Ainda melhor era a sua hilariante “Grã-finos em São Paulo”, publicada na revista Diretrizes, em 1943, e até hoje impressionante pela escrita fina, sem conversa fiada e com os adjetivos cirúrgicos, de grande precisão. Fico imaginando as matérias em volta, como deviam parecer redundantes e rebarbativas. E, a provar que Joel não precisava do conforto de uma redação para escrever, é só ver seus despachos do front na Segunda Guerra -pessoais, diretos, elaborados.

Nem tudo que ele escreveu durante 60 anos aconteceu exatamente daquela maneira. Pois devia ter acontecido. [(*) Colunista da Folha de S.Paulo]

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[Morris Kachani é repórter da Folha de S.Paulo]