Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Propaganda trata espectador como milionário idiota

De que forma a publicidade veiculada na mídia poderia contribuir para o desenvolvimento da sociedade? Essa é uma das principais questões que deveriam frequentar com prioridade as mesas dos dirigentes da mídia brasileira. E a reação a ela certamente contribuiria para a diminuição das tensões sociais causadas pela diferença entre o grau de aspirações populares e as demandas efetivamente atendidas pelas políticas públicas, por exemplo.

Ainda não foi possível a aplicação de mecanismos capazes de medir o grau de frustrações e consequências físicas e psicológicas provocadas pelo péssimo atendimento médico-hospitalar à população de baixa e média renda, apesar da propaganda de que a política pública de saúde oferece acesso a todos – nem das enfermidades causadas à população pela existência de lixões à céu aberto em 61% dos 5 568 municípios brasileiros (dados de 2010).

O primeiro sociólogo do planeta a examinar causas e efeitos da excessiva individualização com o suicídio foi Emile Durkheim (1858-1917). Ele examina dois tipos de individualismo: o excessivo, que resulta num egoísmo ilimitado; e o menos excessivo, que também não deixa de ser tão perigoso como o primeiro. No segundo quartel do século 19 não havia uma mídia tão profunda quanto perversa, programando a cabeça dos indivíduos como hoje. A presença da mídia na vida das pessoas hoje é tão profunda e delicada a ponto de as pessoas não programarem suas saídas de casa, cotidianamente, sem observarem as suas recomendações. Valores, princípios, melhores produtos, remédios, alimentação, roupas, taxas de juros, passeios – enfim, tudo passa pelo crivo da mídia.

A dor de cabeça do comprador

A suposição de que as pessoas tem livre arbítrio de ouvir e assistir o que quiserem, já que possuem o poder de desligar o aparelho, acabou convertida em utopia: a sedução da propaganda é penetrante a ponto de torná-las vulneráveis: o fio condutor da ligação pessoal do ouvinte ou telespectador é tão tênue, psicológico e de implicações profundas com suas tensões neurológicas cotidianas que já integra seu imaginário.

É sobre esse aspecto que qualquer marqueteiro profissional poderá regozijar-se e comemorar: então a qualidade da propaganda está ótima! Respondo: estaria melhor se não acelerasse o individualismo na sociedade e não aumentasse o fosso entre as aspirações sociais e a oferta de serviços efetivos.

O setor imobiliário é onde mais e melhor se expressam os exageros, mentiras, megalomanias, estímulos a psicopatias, neuropatias e outras enfermidades psicológicas, dosagens de estresses emocionais, deixando grande fração da população de aspirantes à moradia própria com os nervos à flor da pele. A chamada indústria imobiliária participa com a maior fração do mercado publicitário brasileiro tanto na mídia impressa como televisiva. Um exército de corretoras e organizadores de lançamentos de imóveis oferece um verdadeiro paraíso ao comprador na planta. Mas nesses paraísos, a dor de cabeça do comprador começa quando ele vai ver o imóvel concluído: são rachaduras nas paredes, falta de grades de proteção para crianças nas varandas e até tomadas nas paredes à altura do acesso de crianças, que ficam vulneráveis dentro de casa com a ameaça de morrerem eletrocutadas ao colocar o dedo no buraco de uma tomada.

Todos iguais

As primeiras reuniões do condomínio são decisivas. Delas sairá por eleição a primeira diretoria dos condôminos. É nesse ambiente que os moradores vão se permitir a realização de escolhas democráticas para o bem ou para o mal do prédio e – se forem vários prédios – de toda a comunidade. As vítimas da mídia selvagem concebida num ambiente da falta total de controle como parece infelizmente no Brasil são o chamado público-alvo, as pessoas a quem a propaganda se destina.

Quando o “paraíso” é a fonte das angústias, desentendimentos, brigas judiciais intermináveis, internamentos em hospícios e até de assassinatos, quem paga a conta das vítimas? A empresa patrocinadora ou a agência da propaganda? Se minha resposta estiver errada, denuncie: quem paga a conta é a própria vítima. Que é culpada de ter acreditado piamente na propaganda e comprado a proposta para morar num “paraíso” na hora mais vulnerável do seu dia: após o jantar em que namorava no quarto com sua esposa antes de dormir.

Qualquer marqueteiro do setor vai dizer que a propaganda trata todos como iguais na sociedade; que o problema não é da propaganda, mas da sociedade; que a falta de saúde e educação para todos é problema do governo, e não da indústria imobiliária; que seus impostos são regiamente pagos. Mas aí é assunto para outro artigo.

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[Reinaldo Cabral é jornalista e escritor]