Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Maomé, a bomba e o estereótipo

No fim das contas, foi a imagem do profeta Maomé usando um turbante em formato de bomba com um pavio aceso que, segundo a Liga Árabe Européia, provocou a revolta dos muçulmanos. A talvez mais ofensiva das 12 charges publicadas inicialmente pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten, afirma o grupo de apoio às comunidades árabe e muçulmana na Europa, incomodou por estereotipar os muçulmanos como terroristas.

‘A questão para nós não é sobre a representação do profeta ou sobre qualquer outra consideração teológica. É sobre estigmatizar toda uma população de mais de um bilhão de muçulmanos ao retratá-los como terroristas, megalomaníacos e psicopatas. Isto é racismo, xenofobia e incita o ódio contra os muçulmanos’, diz o texto no sítio da Liga.

É um ponto válido, ressalta Charles Hawley em artigo no alemão Der Spigel [10/2/06]. Mas teria mais valor, continua ele, se este mesmo sítio não tivesse publicado, dias antes desta mensagem ir ao ar, uma charge que mostrava Hitler na cama com a menina Anne Frank, símbolo da luta dos judeus contra o nazismo. Segundo Hawley, enquanto o mundo muçulmano protesta violentamente contra as caricaturas de Maomé, diversos jornais árabes publicam ofensivos desenhos anti-semitas. ‘Mas ninguém presta muita atenção’, diz ele. ‘Afinal, importunar os judeus virou regra no mundo árabe.’



Controvérsia aumenta vendas de jornais

O aumento nas vendas dos jornais é proporcional ao aumento dos protestos dos muçulmanos. Para o Jyllands-Posten, responsável pelo início da polêmica, as coisas não mudaram muito. Sua circulação, de 154 mil exemplares diários, continua a mesma. Mas jornais europeus que republicaram os desenhos nas últimas semanas testemunharam um aumento de vendas de suas edições impressas e de tráfego em seus sítios na internet.

Publicações francesas e norueguesas afirmam ter estampado as charges em suas páginas por uma causa nobre: a defesa do direito à liberdade de expressão. O resultado – pelo menos para elas, foi agradável. ‘Se há uma lição, é uma lição antiga: controvérsia vende’, constata Jamey Keaten [Associated Press, 9/2/06].

Enquanto manifestantes na Síria, Líbano e Irã atacavam embaixadas ocidentais, produtos dinamarqueses eram boicotados e violentos protestos no Afeganistão deixavam mortos, jornais franceses vendiam como água.

A edição de 1/2 do France Soir, que trazia os desenhos, vendeu 40% a mais do que uma edição comum. Já o semanário satírico Charlie Hebdo, que reproduziu as charges na semana passada e colocou em sua capa Maomé com as mãos na cabeça lamentando que ‘é difícil ser amado por idiotas’, vendeu 160 mil exemplares em poucas horas – 60 mil a mais do que é vendido normalmente. Diante da enorme procura, a editora anunciou que colocaria à venda mais 160 cópias.

A publicação norueguesa Magazinet não apresentou aumento de vendas desde que publicou os desenhos, em janeiro. As visitas a seu sítio na internet, entretanto, triplicaram, chegando a 800 mil diariamente.

Para Mohamed Bechari, vice-presidente do Conselho Francês da Fé Muçulmana, maior organização islâmica no país, leitores europeus estão comprando os jornais por ‘curiosidade’, e não por algum tipo de sentimento anti-árabe ou antimuçulmano. ‘Aqui está um conselho para os jornais falidos ou em crise: tudo o que vocês precisam fazer é insultar muçulmanos ou o Islã, e as vendas irão crescer’, disse ele durante uma conferência em Paris, na semana passada, para a promoção do diálogo entre o Ocidente e o mundo muçulmano.



Editores são presos e ameaçados de morte

No total, mais de 60 jornais republicaram as charges de Maomé. Aplaudidos pela defesa da liberdade de imprensa e criticados pela ofensa ao Islã, é possível afirmar – sem exageros – que editores destas publicações tiveram suas vidas modificadas pela decisão de estampar os desenhos do profeta em suas páginas.

Na Dinamarca, o editor de Cultura do Jyllands-Posten foi afastado sem previsão de volta após sugerir que o jornal publicasse cartuns iranianos sobre o Holocausto. O editor do jornal Peta, na Indonésia, foi acusado de blasfêmia. Na Jordânia, editores de dois jornais semanais foram presos. No início do mês, o editor-executivo do francês France Soir foi demitido pelo dono egípcio do jornal, após publicar todas as caricaturas. Já o editor do norueguês Magazinet está sob proteção policial após receber ameaças de morte. Na África do Sul, a editora do Mail and Guardian contou ter recebido cartas e mensagens com ameaças e ofensas. Informações da BBC News [10/2/06].



Publicações fechadas por pressão governamental

A pressão de governos árabes pela punição daqueles que ousaram divulgar os desenhos de Maomé impulsionou os protestos populares. Manifestações cada vez mais violentas fizeram com que as embaixadas da Dinamarca fossem temporariamente fechadas na Indonésia, Síria e Irã. No Afeganistão, quatro pessoas morreram, e as embaixadas da Dinamarca e da Noruega no Teerã, Beirute e Damasco foram atacadas.

O Iêmen deteve o editor-chefe do jornal em inglês Yemen Observer e dois jornalistas do semanário al-Hurriya, e emitiu um mandado de busca para o editor-chefe do al-Rai al-Aam, após ter fechado os jornais nos quais estes profissionais trabalhavam por terem republicado as charges de Maomé. A Associação dos Jornalistas do Iêmen pediu a libertação dos jornalistas e a anulação do decreto do fechamento das publicações ‘porque as medidas não foram emitidas por um tribunal’. ‘Republicar os desenhos é uma resposta à publicação do jornal dinamarquês e uma maneira de informar o público sobre a ofensa ao profeta’, afirmou a associação.

Na Argélia, os jornais Errisala e Iqraa foram fechados e seus editores presos na semana passada por também terem publicado as charges. ‘Os cartuns publicados em nosso semanário foram deliberadamente desfocados e acompanhados por um artigo condenando-os’, disse um funcionário do Iqraa. Na semana passada, milhares de argelinos islâmicos fizeram um protesto para pedir o boicote a produtos dinamarqueses. O governo da Argélia condenou as caricaturas e pediu ao governo dinamarquês para punir os responsáveis por sua publicação.

Na Síria, também houve protestos violentos na semana passada. Em Damasco, o jornalista Adel Mahfouz, que pediu um diálogo pacífico sobre a polêmica e afirmou que os protestos serviam para confirmar a associação errônea entre violência e Islã, foi acusado de insultar o sentimento público religioso, o que é considerado uma ofensa sob a lei criminal síria. Se for declarado culpado, ele pode ser condenado a até três anos de prisão. Mahfouz publica artigos regularmente no sítio Rezgar, administrado pelo Partido Comunista Iraquiano.

Há duas semanas, dois estudantes foram detidos em Damasco após terem iniciado um grupo de discussão. O intérprete Abdul Mughith Habab, preso depois de falar com jornalistas sobre as cortes de justiça do país, deverá se apresentar no tribunal esta semana para responder à acusação de insulto ao presidente, Bashar al-Assad. Críticos alegam que os tribunais, que operam sob as Leis de Emergência criadas há 43 anos, vêm sendo freqüentemente usados para detenções arbitrárias e condenações de pessoas com opiniões contrárias ao governo.

O governo da Malásia também suspendeu a publicação de um jornal regional que reproduziu as polêmicas charges do profeta. O Sarawak Tribune, publicado em uma das poucas áreas onde os muçulmanos são minoria, é o primeiro jornal a ser fechado no país em 20 anos. Logo após publicar os desenhos, na semana passada, o jornal demitiu o editor responsável pela edição e divulgou dois pedidos de desculpas. O governo, no entanto, não ficou satisfeito com a resposta e suspendeu sua licença de funcionamento. A polícia local passou a colher depoimentos de membros da equipe editorial para decidir se serão abertas queixas criminais contra a publicação. Com informações da BBC News [9/2/06], Reuters [12/2/06] e Integrated Regional Information Networks [12/2/06].



Sítios adotam autocensura por medo de represália

Primeiro foi a vez da revista política britânica Spectator retirar de seu sítio na internet um dos polêmicos cartuns de Maomé, por ordem do publisher Andrew Neil. Na semana passada, a também britânica The Liberal seguiu a tendência ao publicar e em seguida retirar de seu sítio uma das charges do profeta. A imagem havia sido colocada junto a um editorial em defesa da liberdade de expressão. ‘[The Liberal] não será coagida à auto-censura pela ameaça de violência daqueles que usam o púlpito da livre expressão para pedir pela destruição do mesmo sistema que os acolhe’, dizia o texto.

Agentes da Scotland Yard alertaram a revista de que, após a exposição da imagem no sítio, não poderiam garantir segurança para a equipe diante de possíveis protestos. Pouco depois, a charge foi retirada. Em seu lugar, apareceu um amplo espaço em branco sob a palavra ‘censurado’. O editor Ben Ramm anunciou online que, ‘apesar de nossos desejos e convicções, por questões de segurança a revista não divulgará mais o cartum’. Informações de Stephen Brook [The Guardian, 9/2/06].