Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem matou Paulo Francis?

O tom dominante nos registros sobre os 17 anos da morte de Paulo Francis, no próximo mês, deverá ser o dos anos anteriores: sua morte foi causada ou precipitada por uma ação judicial proposta contra ele pelos diretores da Petrobras. De tanto ser repetida, a história já é de domínio público. Angustiado pelo questionamento judicial, Francis estava sob tal pressão que acabou sofrendo um enfarte. Morreu em fevereiro de 1996, em Nova York.

Muito se escreveu a respeito desde então, mas há mais especulação e confusão em torno desse episódio do que fatos concretos. Hoje já é possível dizer que a saúde do jornalista pode ter sido mais prejudicada pela desatenção (ou negligência) do seu médico. Num atendimento superficial, ele diagnosticou como bursite as dores que Francis vinha sentindo. E se mandou para o carnaval carioca, onde ficou sabendo da morte do seu paciente.

Para a opinião pública, e em particular para os jornalistas, a questão que sobreviveu à morte de Paulo Francis é a sua relação com o processo. Os sete diretores da Petrobras, liderados pelo [então] presidente, Joel Rennó, decidiram cobrar reparação judicial pelo dano moral que alegaram ter sofrido. Durante o programa Manhattan Connection, no ar até hoje, Francis disse que “os diretores da Petrobras põem dinheiro na Suíça”; que “roubam em subfaturamento e superfaturamento”; e que constituem “a maior quadrilha que já atuou no Brasil”.

Ao ouvir essas acusações, Lucas Mendes, o mais antigo participante do programa, se virou surpreso e de certa forma chocado pela gravidade das denúncias do companheiro. Como qualquer jornalista profissional faria, questionou Francis: ele tinha as provas do que acabara de dizer, de improviso, sem qualquer acerto?

Ficou logo evidente que ele não tinha provas das afirmativas. Dissera aquilo por impulso, em função do papel que criou e desempenhava na televisão, sua contribuição para a originalidade do programa. Os telespectadores deviam entender que precisava agir assim para manter o interesse e a admiração dos que o assistiam. Era o preço por desfrutarem de qualidades que não costumam abundar no meio jornalístico: ampla e densa cultura, rapidez de raciocínio, boa memória e atributos teatrais.

Faltou apuração

Acusados sem provas, os diretores da Petrobras, em conjunto, foram à forra. Perceberam que o antagonista era fraco. Além do valor descabido atribuído à causa (para os padrões brasileiros), de 100 milhões de dólares, capricharam no maquiavelismo ao propor a ação em Nova York. A justiça americana é receptiva a cobranças desse porte em função de alegado dano moral, ao contrário da justiça nacional.

Paulo Francis parece ter entrado realmente em pânico. Sabendo-se desprovido de meios para provar o que afirmou com tanta ênfase, sabia também que perderia no final da demanda. Esse final, contudo, jamais aconteceria nos Estados Unidos. Qualquer iniciado nas regras processuais sabia que o foro competente para examinar a causa seria o do Rio de Janeiro, sede da TV Globo, responsável pelo Manhattan Connection, exibido pelo canal pago Globo News.

Embora o programa seja gravado em NY, ele é apresentado no Brasil e só no Brasil. Claro que alguém pode sintonizá-lo em qualquer parte do mundo, mas o domicílio da empresa responsável, para todos os efeitos legais, é o Rio. Não é onde ele é gravado nem onde moram seus apresentadores. Desaforado para o Brasil, o processo teria outro tratamento.

Até hoje não se sabe qual a orientação dada pelos dois advogados que Francis contratou. Sabe-se apenas que ele reclamava publicamente do serviço da sua defensora americana, por considerá-lo caro (nos últimos tempos de vida ele parecia sovina nessas despesas). Será que nenhum deles lhe assegurou o que acabou acontecendo, o arquivamento do processo, semanas depois da morte do jornalista, por inadequação do foro?

Em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, em agosto de 1998, um ano e meio depois da morte de Francis, Joel Rennó tentou justificar a escolha de Nova York dizendo que o programa da Globo News era “produzido, transmitido e divulgado nos Estados Unidos”. É a típica falácia geralmente adotada pelos detentores de poder, no Brasil e no mundo. Não é crível que os advogados do grupo de executivos não lhes tivesse feito a ressalva sobre o foro competente. A insistência tinha o objetivo de retaliar o acusador.

Talvez com esse detalhe na cabeça, Rennó procurou se apresentar como magnânimo: ele e seus companheiros de diretoria desistiram de prosseguir na demanda, o que podiam fazer, transferindo a cobrança para a herdeira (a mulher de Francis, a também jornalista Sonia Nolasco) e sucessores do oponente.

Agindo assim, também agradavam o presidente da República. Amigo de longa data de Paulo Francis, Fernando Henrique Cardoso disse que tentou demover os seus subordinados do intento, em vão. Não ficou esclarecido se o fracasso se deveu à inflexibilidade dos demandantes ou porque FHC não aprovou as acusações de Francis.

Desde o abalo causado pela morte súbita e controversa de Paulo Francis, amigos e detratores, admiradores e críticos do jornalista se dividem em juízos a favor e contra ele sobre uma base factual frágil. Ninguém reproduziu a ação dos diretores da Petrobrás nem esclareceu se eles constituíram advogados particulares ou se valeram do serviço jurídico da poderosa empresa estatal. Rennó já estava havia cinco anos em seu comando e ainda ficaria no cargo por igual tempo depois da morte de Francis, tornando-se recordista no posto.

Esses e outros fatos permanecem ao largo dos necrológios, livros e até de um bonito mas superficial documentário sobre o jornalista (Caro Francis). Houve muita análise, testemunho e opinião sobre Paulo Francis, mas não um trabalho de apuração jornalística competente, o que resulta em prejuízo para o ofício e seus praticantes.

Prazer e proveito

Todos nós, jornalistas e o público, podíamos tirar proveito do drama seguido de tragédia. A ação que Cecílio do Rego Almeida propôs contra mim foi protocolada em São Paulo. O empresário alegou na petição inicial que este jornal podia ser visto nas bancas de revista da capital paulista, onde era muito lido. A mentira criaria seguidores.

Quando me condenou a indenizar os Maioranas, o juiz Raimundo das Chagas avaliou o valor do dano moral que eu lhes teria causado em 30 mil reais. Afirmou que o Jornal Pessoal tem uma grande circulação e é muito lido pelos estudantes. Não forneceu nenhuma fonte para essas alegações. Nem podia, é claro. Mas seguiu o antecedente de C. R. Almeida, O mesmo adotado pelos dirigentes da Petrobrás. Os poderosos se parecem.

É algo que devem ter sempre em mente os jornalistas que os desagradam ou os enfrentam. A reação virá e raramente ela é caracterizada pelo espírito democrático, o interesse público ou a tolerância. Paulo Francis foi leviano e irresponsável no seu ataque aos diretores da Petrobrás. É um comportamento execrável no jornalismo. Temos que ser capazes de demonstrar tudo que transmitimos à opinião pública. Mas os sete dirigentes da Petrobrás realmente se propuseram ao bom combate?

Rennó garante que sim. Na sua entrevista, ele lembrou ter interpelado o jornalista a provar o que dissera. Paulo Francis ignorou a provocação em juízo. Talvez acreditasse num jeitinho “por fora” (mais um “por fora” dos – maus – costumes nacionais) que impedisse a instauração do litígio e o poupasse do constrangimento de admitir que mentiu. Ou, se não mentiu deliberadamente, de caso pensado, disse o que não sabia, não tinha condições de provar. Foi apenas boquirroto. Mais uma vez. A derradeira vez.

A moral da história acabou sendo ruim para Francis e o jornalismo brasileiro. Apanhados no flagrante, alguns dos praticantes desses hábitos tentaram atirar o peso de alguma responsabilidade sobre Lucas Mendes. Ele podia ter ignorado mais essa fanfarronice de Paulo Francis e desviado do assunto melindroso. Se agisse assim, Mendes também teria errado. Jornalismo não é exercício de livre arbítrio absoluto nem se reduz a idiossincrasias ou iconoclastias, por mais divertidas, curiosas e brilhantes que sejam.

O triste episódio serviu de prova dos noves derradeira sobre a diferença entre o repórter e o jornalista. Paulo Francis nunca foi repórter, aquele profissional que produz textos em cima dos fatos observados, testemunhados, anotados, ditados, pesquisados, lidos. Ele foi um grande jornalista, provocador de debates, autor de algumas das melhores crônicas dos nossos tempos.

Um cronista, pois. Nenhum o substituiu na posição única que acabou ocupando. Suas qualidades foram levadas ao exagero por quem lhe pagava o maior salário da imprensa brasileira, por motivos mais mercadológicos do que propriamente culturais. E se altearam ainda mais quando projetadas sobre uma incultura cada vez maior dos leitores e da sociedade em geral.

Muitos dos que achavam Paulo Francis genial eram incapazes de determinar o conteúdo dessa genialidade. Liam-no com genuíno prazer e proveito. Mas hoje, passados 17 anos, o que ficou de tantos fogos de artifícios produzidos por Franz Paul Trannin Heilborn?

Talvez o que garanta a extensão da sua memória seja menos a hagiografia dos seus fãs e amigos do que a obtusidade dos seus críticos, como Fernando Jorge. Quem conseguir encarar o catatau que ele produziu em livro para pinçar todos os muitos erros cometidos por Francis em seu vaudeville do “Diário da Corte”, chegará ao fim da façanha convencido pelas erratas do exumador de ossos e saudoso da picardia de Paulo Francis, da sua pantomima de alta qualidade.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]