Edward Bernays, em seu livro Propaganda (1928), defende a manipulação das notícias para organizar o caos da sociedade democrática, assim como também defende a propaganda como “mecanismo pelo qual a democracia conseguiu organizar sua mente de grupo e simplificar o pensamento das massas” (p. 26). Para ele, o jornal sempre será o melhor veículo de formação e manipulação da opinião pública, logo de propaganda. De 1928 para cá as coisas mudaram bastante, mas os diários continuam sendo, sim, ao menos um dos maiores formadores de opinião e, também de manipulação.
No dia 24 de janeiro, a Espanha acordou com a suposta foto de Hugo Chávez entubado em uma sala de cirurgia na capa do maior diário espanhol, El País. A foto era falsa e, na verdade, era uma captura de um vídeo que estar no YouTube desde agosto de 2008. Foram impressos 22.635 exemplares com a foto falsa. Apesar de conseguirem paralisar 93% da tiragem, cerca de 4.100 exemplares chegaram aos leitores da Espanha. Na Argentina foram 8.050 e na República Dominicana 5.670. A imagem que estava na página online do diário foi retirada do ar e a direção do jornal comunicou o erro pedindo desculpas e que uma investigação fora aberta.
A foto foi oferecida pela Gtres Online, que segundo Tomàs Delclós, el defensor del lector do El País, em artigo intitulado de “Un tremendo error”, declara que o jornal já havia trabalhado com tal agência sem maiores problemas. O que seria um dos maiores furos de reportagem do diário espanhol se transformou em um dos maiores erros ao longo de sua história que começou em 1976.
Verificação, a velha questão
Bill Kovach e Tom Rosenstiel, no livro Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público deve exigir (2003), definem elementos fundamentais para a atuação dos jornalistas. Dos nove elementos desenvolvidos por eles no Comitê dos Jornalistas Preocupados, o de número 3 talvez seja o mais importante para um jornalista e, logo, para o veículo de comunicação: “sua essência é a disciplina da verificação”.
Muito se falou nas redes sociais de manipulação, falta de moral e ética por parte de El País. Para mim, analisando os fatos, faltou a “disciplina da verificação”. O diretor do jornal, Javier Moreno, declarou isso ao esclarecer o fato em artigo publicado na seção Internacional,em 26 de janeiro, que enquanto negociavam com a agência Gtres Online esperavam que eles estivessem verificando a autenticidade da fotografia. Apesar disso, Moreno reconhece que o erro do jornal foi não ter verificado por meios próprios a originalidade de tal foto, como sempre o faz. Diz ele:
“Ese fue um yerro propio, que no podemos ni debemos atribuir a nadie más. Y puesto que no pudimos verificar de forma independiente las circunstancias, el lugar o el momento en el que se tomó la fotografía, como se explicaba en el texto que acompañaba a la imagen, esta no debió publicarse nunca.”
Apesar dessa ressalva, a foto foi publicada e por 30 minutos esteve no site do jornal e nas redes sociais, gerando protestos e ofensas aos profissionais de tal jornal. O que questiono, além da falta de certeza da autenticidade da “foto” de Chávez é, se mesmo real e verdadeira, ou com a confirmação do governo venezuelano, deveria um cidadão (sem juízo de valor) ser exposto de tal maneira em sua enfermidade que pode ser mortal? Além disso, sendo esse cidadão presidente de uma nação que é considerado inimigo pessoal dos Estados Unidos e tudo que acarreta sua doença para seu país e sua população, aliados e oposição, deveria estampar sua fragilidade na capa de um dos maiores jornais da Europa?
Respeito pela transparência
O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, da Fenaj, em seu Artigo 6º, Inciso VIII declara que é dever do jornalista: “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”. No Código Deontológico para a profissão de Jornalista, adotado pela Espanha em 1993, nos “Princípios gerais”, parte 4 declara algo semelhante:
“As restrições relativas à privacidade devem ser levadas em consideração especial quando se lida com pessoas em hospitais ou em instituições similares.”
Ignoraram tal artigo com a justificativa que o Tribunal Constitucional espanhol, segundo Tomàs Delclós, estabelece que o critério de decisão diante de uma colisão entre liberdade de informação e direito à intimidade de um cidadão, deve-se dar preferência, em geral, a liberdade. Ainda de acordo com Delclós, o livro de estilo do El País, estabelece que as fotografias com imagens desagradáveis “solo se publicarán cuando añadan información”.Ou seja, quando acrescente informação de interesse público. Seguindo na justificativa, chegaram à conclusão que “a imagem era pertinente devido à ausência de Chávez no ato de posse do novo mandando e diante da falta de transparência informativa das autoridades venezuelanas sobre a situação do doente”.
Em 2000, o jornal Correio Braziliense, então dirigido por Ricardo Noblat, publicou um editorial intitulado de “O Correio errou” pedindo desculpas aos leitores a respeito de uma reportagem que denunciava um esquema de corrupção entre um ex-secretário do Palácio do Planalto junto ao Banco do Brasil. No espaço “Carta ao leitor”, Noblat enumerou os três códigos infligidos pelo jornal em tal reportagem e se desculpou. Tal ação valeu ao jornal um Prêmio Esso e o respeito do leitor pela transparência.
Reforçar a blindagem do erro
Caso semelhante, em proporções maiores, aconteceu agora com El País. Por isso, quando se falar de manipulação da foto de Chávez ou que o jornal está a favor dos “inimigos da revolução” e contra o povo venezuelano, creio que não devemos ir nem tanto ao céu e nem tanto ao inferno. O que sucedeu foi um erro. Manipulação teria sido montar uma imagem falsa e não atribuir uma imagem de uma pessoa a outra. É óbvio que El País tinha seus interesses em publicar tal foto mesmo sem certeza de sua autenticidade. Porém, reconhecer tal erro se não exime de culpa, que para mim a resposta é não, ao menos deixar evidenciado que um equívoco foi cometido, confiando-se em uma agência e suas fontes e etc. O maior erro de El País, para mim, foi ter exposto um cidadão em uma foto comovente em sua capa, caso a foto fosse real. Depois e, principalmente, de ter pecado na essência fundamental do Jornalismo: não verificar a autenticidade da foto e, em caso de dúvida, não publicá-la.
Agora, as universidades e os cursos de Jornalismo têm mais um exemplo para ensinar aos futuros profissionais e, nós também temos que aprendê-lo. “A disciplina da verificação” corresponde, ao menos para mim, em 90% do trabalho jornalístico e esse foi o maior erro de El País. O reconhecimento do erro, o pedido de desculpas e a retirada do material é a lição que podemos aprender.
Por fim, Javier Moreno conclui que:
“El diario cometió un grave error que procuró subsanar sin reservas. Pero el episodio pone en evidencia la necesidad urgente de establecer nuevos protocolos de verificación que refuercen el blindaje ante el error e impidan que se reiteren estas lamentables equivocaciones.”
Leia também
El País caiu no conto do vigário – Alberto Dines
O Chávez que não era Chávez – Luiz Egypto
Relato de um erro – José María Irujo e Joseba Elola Madrid (em espanhol)
A foto que o jornal nunca deveria ter publicado (em espanhol)
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[Bruno Rebouças é jornalista e mestrando em Comunicação e Jornalismo pela Universitat Autònoma de Barcelona]