Tragédias de grande repercussão nacional costumam estar munidas de forte carga emotiva em seus relatos devido aos estragos psicológicos dos que sobrevivem para contar a história e contar seus mortos. Os sentimentos de solidariedade pública se ramificam por todo o país, pois os brasileiros passam a se identificar, na cobertura jornalística, como uma porção imaterial daqueles que estão a sofrer. Se formos investigar uma parcela da historiografia das catástrofes, sejam elas quais forem, uma regra é clara: não se brinca com elas. É inadmissível encontrar em qualquer publicação um mísero resquício que forneça conotações desviantes da sobriedade, da lucidez e do equilíbrio que se exigem em momento tão difícil. As charges (talvez excetuando-se as provenientes dos pasquins que não perdoavam nada e ninguém), que sempre foram o termômetro opinativo dos jornais, muitas com viés político, ridicularizavam o(s) inimigo(s) público(s) da vez, reverberavam somente condolência e pesar, como manda a etiqueta. Que algum chargista insolente ousasse tecer piadas sobre o massacre de Eldorado dos Carajás, sustentasse absoluta petulância ao gracejar sobre a chacina de Vigário Geral, manifestasse a empáfia de zombar do massacre da Candelária! Mas alguém ousou quebrar essa regra sagrada.
Na edição de terça-feira (29/1), 48 horas depois das versões online dos jornalões manchetarem o necrotério em que se transformou a pequena cidade gaúcha de Santa Maria, que testemunhou mais de 200 jovens morrerem queimados ou intoxicados, todos encurralados dentro de uma boate que não dispunha de um mínimo critério de segurança contra incêndios, o diário O Globo, no seu formato papel, publicou uma charge do cartunista Chico Caruso cuja leitura não deixa dúvidas. Uma aparvalhada e impotente presidenta Dilma Rousseff joga as mãos à cabeça, observando em pânico uma jaula em chamas. Dentro dela, pessoas agonizando numa grande fogueira. Na legenda que caracteriza a fala da retratada, brada-se um “Santa Maria!”
O que deveríamos ter entendido?
Vamos a uma rápida dissecação analítica sobre a peça.
1) O Globo relativizou a visita de Dilma à cidade, ela que construiu sua carreira política com passagens pela administração pública no Estado riograndense, como uma politização partidária oportunista, ao invés de registrar a chegada de uma chefe de Estado a uma cidade atingida por uma devastadora comoção popular, como deveria ser: uma visita obedecendo às eventuais padronizações protocolares do cargo. Se bem que nem protocolar Dilma foi. Somente um psicopata não verteria uma lágrima adentrando um ginásio esportivo onde se perfilavam mais de 200 caixões num velório coletivo improvisado com 200 famílias em desespero. Mas para O Globo eram lágrimas marqueteiras de uma pré-candidata às eleições de 2014. A munição difamatória seria redobrada com sua ausência, justificada como uma desonra aos votos de milhões que a elegeram.
2) Teriam as Organizações Globo tentado culpabilizar o governo federal por algum tipo de leniência em relação à uma suposta indústria de alvarás irregulares, beneficiado estabelecimentos comerciais como a boate Kiss, palco do quase-genocídio? Uma rápida leitura na Constituição da República, de fato, elenca em seu artigo 220, parágrafo terceiro, que “compete à lei federal regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada”. Entretanto, as normas constitucionais são para serem aplicadas no âmbito local, com a formatação de legislações específicas regidas por cada unidade federativa ou município. Ou seja, o Palácio do Planalto possui uma ingerência relativa sobre as normatizações legais que orbitam boates em que jovens deveriam se divertir despreocupadamente. Para isso, os governos estaduais e as prefeituras já detêm tais atribuições de fiscalização.
3) Simbolicamente, a leitura da charge se torna um pouco mais grave, ressaltando cada vez mais as suas mensagens subliminares. Dilma está ali, de pé, embasbacada pelo pânico, apenas testemunhando, incapaz de uma tomada de decisão que incorporasse ações que pudessem minimizar as perdas humanas que ali, naquele desenho, se configuram. Se as mortes fossem por afogamento, lá estaria ela, como a atriz coadjuvante de um filme ruim, inferida numa dicotomia que evoca inércia e medo. Se as mortes fossem por atropelamento, envenenamento e afins a mensagem se repetiria tal como está. Se não foi por nada disso, então por quê? Se não entendemos nada, nadinha, como afirmou o colunista Ricardo Noblat em seu blog, defendendo a charge, o que deveríamos ter entendido? Que tipo de perseguição política ao governo petista não ficou clara?
Tragédia sem gracinhas
Em meados de 2000, passageiros de um ônibus no Rio de Janeiro ficaram, por horas, na mira de um revólver, reféns do sequestrador Sandro do Nascimento num episódio que ficaria imortalizado como o “sequestro do ônibus 174”, crime que foi midiatizado à exaustão e ao vivo pela TV. O cartunista Chico Caruso, alegando estafa emocional por causa do fim trágico que resultou na morte de uma professora, escreveu um pedido de desculpas aos seus leitores, “pois após 24 anos na função, não havia como registrar com humor os acontecimentos do dia”. Como todos sabem, a matéria-prima de um bom chargista de jornal diário de grande circulação é a anedota, a ironia, o sarcasmo. Mesmo com o desfecho desastroso de uma corporação militar chefiada pelo então governador Anthony Garotinho, vitimando uma inocente, Caruso (ou a direção do Globo) optou pelo silêncio. O chefe do poder executivo estadual foi poupado enquanto Caruso refestelava-se no sofá de casa, recuperando-se para pincelar a primeira página do dia seguinte.
Mas a mesma compostura foi anulada dessa vez. Em lugar do silêncio, o deboche. Por mais que Ricardo Noblat jure que não seja.
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[Fabio Leon Moreira é jornalista e gestor social assistente, com especialização em políticas públicas]