Numa usina elétrica desativada, cenário de máquinas, fiações e tubos da era do nazismo, uma boate vira a noite sem fechar. É a Berghain/Panorama Bar – vulgo Paranoia, para os brasileiros que habitam o circuito techno –, apontada por alguns como o melhor clube do mundo, ainda que seja para turista ver. Tales Ab’Sáber foi um que lá baixou, numa estada em Berlim. E de lá saiu com a certeza de que tinha material valioso para uma perícia sobre a grande noite da diversão industrial, traduzido em A Música do Tempo Infinito, livro lançado em outubro pela Cosac Naify.
“É uma festa intensa, que deseja não terminar jamais”, diz o psicanalista sobre a balada alemã, que pulsa quase diariamente a partir das 23h59 e que, de sábado para domingo, entorpece o público com música eletrônica até a noite seguinte. Nessa perspectiva, o único sentido do dia é acionar o GPS para a próxima noitada, algo instantâneo de se fazer em Berlim, considerando a fábrica de entretenimento que é.
Depois da tragédia em Santa Maria, as blitze que se espalharam pelo País atrás de boates-ratoeiras escancarou uma noite brasileira também alucinada, que por nada festeja tudo. Antes do incêndio, somente na cidade gaúcha eram pelo menos cinco baladas por dia, de quinta-feira a sábado. Em São Paulo capital, 500 casas noturnas foram licenciadas no ano passado e cerca de 600 esperam na fila por um alvará, enquanto outros milhares se espalharam feito gripe pelo País.
“Trata-se de um dispositivo de época para a gestão do prazer”, diz Tales. “A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica que a vida, e no entanto está totalmente articulada, econômica e socialmente, à vida como ela é.” Algo diferente dos shows de rock e dos inferninhos dos anos 1970? Em seu apartamento em Pinheiros, bairro que abriga mais de dez páginas de boates no Google, Tales tenta traduzir essa geração que, em suas palavras, vive uma experiência sensorial sem compartilhamento. Esse gaúcho, radicado desde o primeiro ano de vida em São Paulo, também faz uma crítica sobre a morte quase instantânea de mais de 230 guris num país que vendeu para si a imagem de moderno, mas que de modernidade só absorveu a excitação, o Facebook e a pirotecnia.
A operação pente-fino nas boates do País mostrou que nos municípios brasileiros as casas noturnas brotaram a rodo. Que tipo de lazer é esse, que atrai tantos jovens?
Tales Ab’Sáber– Ele tem raízes na oferta de experiências própria da grande metrópole moderna, como os cafés concertos da Paris de Haussmann, os cabarés berlinenses dos anos 1920 e as casas de dança e jazz da Nova York da mesma época. Muito cedo se observou nessa invenção para a noite uma espécie de nova ordem internacional da diversão, ligada à organização da vida das massas na sociedade liberal. No entanto, a partir dos anos 1950 e 1960, emergiu a ideia de que a noite dos jovens estaria ligada também a um vetor político, de crítica ao sistema, no qual aquilo que era ofertado pelo mercado era vivido como a negatividade da antiga bohème. Esse movimento sempre guardou a ambiguidade de ser regulador e ao mesmo tempo um espaço imaginário de desejos conflitantes com a vida social. A partir das décadas de 1980 e 1990, há um retorno à ordem da contracultura ocidental, que teve seu ápice público e político, em plena luz do dia, em 1968 e 1970. Ele foi retirado do cotidiano, reservado para a circulação de mercado, para ser guardado, e de certo modo privatizado, na emergência da boate de massa, o novo espaço da república pop. Essa passagem histórica foi marcada pela ultrapassagem do rock – e da canção – pela música eletrônica. No Brasil, ela se condensou na balada, que não existia na minha juventude nos anos 1980.
O que, em geral, caracteriza uma balada?
T. A’S. – Certa vez um jovem paciente me falou: “A balada é um lugar em que tudo muda. Quando você entra numa balada tudo vira outra coisa, você, as pessoas, o mundo. Nada do que vale fora de lá continua valendo, é um mundo à parte e outro do próprio mundo”. A balada é o espaço que sustenta esse desejo. Ela dá uma amostra, um sampler, do mundo do luxo e da luxúria para os que não o possuem, ou da experiência estética antiburguesa para os adaptados. Trata-se de um dispositivo de época para a gestão do prazer. A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica do que a vida, e no entanto está totalmente articulada, econômica e socialmente, à vida como ela é. Ela mantém vivo esse potencial utópico, e ao mesmo tempo o reduz a um espaço socialmente aceito. É a sua forma de solução de compromisso, o seu sonho social.
A balada agrega todas as classes sociais. De que juventude estamos tratando?
T. A’S. – Uma juventude desencantada, que teve os impulsos críticos de radicalização humanista, estética e democrática, próprios do movimento da juventude ocidental do século 20, reduzidos a práticas de consumo a partir da aceleração da cultura do dinheiro dos anos 1990 e 2000. Essa juventude tenta manter valores de vanguarda de eros e civilização, como dizia o filósofo Herbert Marcuse, comprometidos com seu destino de venda de um trabalho sem garantias, muitas vezes sem direitos efetivos, no mundo das corporações. Uma juventude atomizada, que caminha entre a baixa vida de mercado e o hedonismo de consumo do teatro excitado de sua noite.
O que costumam festejar?
T. A’S. – É um paradoxo. Eles festejam suas vidas difíceis de mercado, e sua inserção por um fio na coisa toda. Mais ou menos do mesmo modo que a mercadoria, por meio da cultura da propaganda, festeja a si própria sem parar. A ordem do poder atual exige celebração contínua, ligada à afirmação do indivíduo de realização do próprio prazer, desde que ele seja de mercado, apolítico. E esses jovens, que por vezes fingem um cuidadoso punkismo construído em lojas caras da moda, celebram a mesma celebração geral de seu mundo. Ou, como escrevi em meu livro, eles festejam o fato de não haver nada a festejar. É a compulsão a ser feliz, que diz muito respeito à propaganda.
Por que há tantos megaeventos para uma geração tão voltada para si mesma?
T. A’S. – Exatamente por isso. Nesse ponto foi o filósofo Theodor Adorno quem nos deu contribuições importantes. Quanto mais individualizado e rarefeito na vida social para defender o próprio prazer, menos exigente culturalmente é esse consumidor, e mais sua ilusão de individualidade deságua em uma administração cultural geral. Podemos dizer que o hiperindivíduo, que busca a singularidade do seu prazer nas ofertas de mercado, acaba pensando como todos os demais, em uma grande uniformidade cultural, e ele vai de fato alimentar o megafestival que legitima o presente. Estamos diante de um mundo que, na mesma medida em que afirma o indivíduo, o empobrece e o torna apenas idêntico a todos.
Vivemos uma segunda ‘idade da festa’, expressão cunhada pelo jornalista Gay Talese que você recupera no seu livro?
T. A’S. – É realmente muito interessante a formulação de Talese, que percebeu de modo intuitivo e profundo a transformação iminente do grande movimento político da contracultura jovem em uma cultura erótica da festa administrada. Em uma imensa festa contracultural de Andy Warhol, embalada pelo Velvet Underground num ginásio de Nova York, no auge dos protestos públicos contra a Guerra do Vietnã, Talese percebeu o destino da coisa toda: a política seria em breve substituída pela imagem. Seu texto é o primeiro a falar da celebração de tudo e de nada, que passou a ser a cultura jovem no nosso tempo, em que há muita produção de imagem, excitação e gozo, mas, para lembramos os termos do escritor, “nada está acontecendo”. Um lance de espírito de gênio. Por que a festa precisa sugar tudo para ela? Tudo tem que se expressar como excitação. É a mesma lógica da mercadoria quando ela aparece: excitar para circular. Todos precisam estar nesse estado porque, caso contrário, não correspondem ao mundo. Esse momento está ligado ao desligamento do vetor político da contracultura. Ele passa a ser encenado, não é mais o embate político real.
Onde estaria esse vetor político hoje?
T. A’S. – É uma grande angústia ver esse hipermundo pacificado porque as pessoas foram convencidas de que a política se resolve nos partidos. Se a gente não acredita nas respostas que estão sendo dadas, a gente não acredita nessa política e ela não cumpre seu mandato, embora diga que cumpra. Adorno dizia isso: a ideologia não é mentirosa no seu conteúdo. O conteúdo da política é uma verdade racional humana. A ideologia é mentirosa porque ela disse que já deu o que prometeu, cortando o processo de demanda social. A política está congelada nessa estrutura do capital. Manter isso, que é extremamente instável e estável, implica uma energia incrível, inclusive de repressão. Em 2008, vimos como é difícil manter o equilíbrio de um negócio que tem que gerar cada vez mais lucro. A política está naquilo que essa própria estrutura aparentemente fechada não consegue sustentar mais. Essas são as crises reais, que a ideologia não consegue barrar. No plano simbólico da expressão cultural, é tudo política de imagem, de alimentar o todo.
Nesse texto, Talese também dizia que, para existir, a pessoa precisava ser vista. Hoje, para existir, ela necessita ser fotografada e postar-se no Facebook.
T. A’S. – Era o tempo dos famosos 15 minutos de fama de Andy Warhol, o vínculo subjetivo com a sociedade do espetáculo do escritor francês Guy Debord. Nos anos 1960, começa a surgir essa percepção de que as pessoas estão encenando alguma coisa. Tão importante quanto ser alguém é produzir sua imagem. Essa foi a grande mensagem social da televisão. A internet é uma grande universalização dessa tendência, acompanhada de fragmentação e algum grau virtual de participação. Eles estão o tempo todo se comunicando, em grande parte querendo saber onde está a melhor festa. Essa prática cria, a cada noite, um mapa da vida e da cidade, um GPS das baladas. E esse mapa é mundial.
Isso também vigora com força no Oriente?
T. A’S. – Repare: todo filme que trata de contradições políticas no Oriente traz uma baladinha. É uma espécie de enclave da cultura ocidental, que significa a inversão de todos os valores ao redor. Essa balada está sintonizada com a balada ocidental, a mesma música, a mesma moda, o folgazão do consumo de diversão internacional.
Ironicamente, todas as câmaras do circuito interno da boate Kiss desapareceram. Ninguém quer ficar com a imagem de responsável pela tragédia…
T. A’S. – Esse episódio catastrófico revela uma situação de descompasso do Brasil. O País produziu para si mesmo o discurso edificante de que se modernizou rapidamente, o que não é verdade em muitos aspectos da vida. A Kiss é uma pequena boate, mas com características dessa cultura global da casa noturna cuja relação entre empresário, prefeitura e agentes públicos de segurança é toda degradada. Ninguém é culpado, e todo mundo é. São os déficits de técnica brasileiros, técnica pública, inclusive.
Durante manifestações pedindo justiça, familiares mostraram cartazes revelando sua indignação com ‘a ganância de gente corrupta’. Que elementos dessa tragédia mostram essa ganância? Os seguranças impedindo a saída dos jovens porque eles não haviam pago a consumação, por exemplo?
T. A’S. – Esse incêndio é uma espécie de fato infinito. Ele congrega uma série de fatos do mundo – legais, políticos, simbólicos. Vamos pensar nos seguranças, por exemplo. Eles têm a mentalidade da polícia, se é que não são policiais. É a mentalidade autoritária em que a relação com o outro é sempre de predomínio pela força, de inabilidade para lidar com o público, com alguém que não seja “ordem e progresso”. É esse autoritarismo que o patrão espera dele, aliás. Mas onde está a brigada de incêndio, que seria a outra consciência? Não tem! Morreu gente por causa disso, desse entrave à saída.
Também havia uma quantidade de pessoas muito além da capacidade do lugar…
T. A’S. – Nos anos 1980, quando começaram a surgir as boates, elas não eram assim. O Madame Satã não era assim. E antes, nos anos 1950, 60, muito menos. O público era de adultos, os inferninhos eram micro, um tipo de boemia completamente outra, era o mundo do João Antônio, de Copacabana. Mudou a escala. Isso é próprio da geração, mas tem o elemento universal da catástrofe. Ela representa a humanidade, estamos todos diante dela e ela fala a todos. Em parte porque ocupam todas as revistas, todos os jornais. É a tautologia da indústria da comunicação. Em parte porque, de fato, algo diz que poderia ter sido com meu filho ou comigo. As pessoas se sentem comprometidas. Se elas fossem comprometidas assim com a política, seria fascinante. Mas não são.
Você reserva um longo capítulo para as drogas no seu livro. Que papel elas têm nessa grande noite da diversão industrial?
T. A’S. – As drogas, no movimento contracultural da juventude ocidental modernista, eram uma experimentação erótica, faziam parte de um projeto no qual se poderia estabelecer outra ordem de existência na vida moderna. Elas também foram capturadas para dentro das casas noturnas, numa fusão com a música techno, especialmente com a explosão do ecstasy no final dos anos 1980 e começo dos 90. A droga é estrutural da própria experiência, não é mais uma possibilidade. Ela é necessária para que a coisa exista.
Estamos falando de drogas e álcool?
T. A’S. – Sim, dos dois. Isso disparou uma realidade de excessos. A partir do surgimento da música da noite, aparece um novo tipo de cultura da droga, que é uma drogadição exibida, conspícua. O lugar por excelência disso é a boate. Mas a partir daí existe uma universalização das drogas como diversão, portanto como objeto de consumo de massa.
E a música? De onde veio a necessidade da pirotecnia para acompanhá-la?
T. A’S. – Quando os Beatles tocavam nos estádios nos anos 1960, quando inauguraram essa era de espetáculo de massa e expressão pop, grandiosa e sedutora, eram quatro músicos em cima de um palco e só. E havia 60 mil pessoas vendo! Jimi Hendrix, quando botou fogo na guitarra, foi um xamanismo, uma espécie de autossacrifício, uma coisa dionisíaca de incendiar uma parte de si mesmo, ao mesmo tempo amando e atacando o que o representava. Mas foi um evento individual. Depois começa a surgir essa espetacularização visual do mundo da canção. Em 1968, 69, Pink Floyd começa a fazer projeções de imagens, uma produção mais barata. Então, num certo momento dos anos 1980, isso vira um espetáculo pirotécnico gigantesco, com explosões, bolas de fogo. Agora, as pequenas bandas do interior do mundo querem soltar seus rojões e fogos de artifício. Está aumentando a espetacularização, o que significa que a música perdeu importância.
Você chama o DJ da música techno de um ‘Sísifo de nosso tempo, pulsando imensamente ao mesmo tempo que anuncia o vazio’. Mas músicos de outros ritmos que alimentam as baladas também não param. É o tal corpo-coração, enquanto a alma alucina?
T. A’S. – Sim, é o corpo-suor, em que tudo tem que ser traduzido em pulsação. No Brasil, isso nos chegou muito pelo axé, com as cantoras dançando o tempo todo. As coisas têm que ser levadas no limite da expressividade, do desgaste físico. A banda de Santa Maria se chama Gurizada Fandangueira. Fandango é o velho baile gauchesco de dar o pão, que era feito com sanfona, uma música popular, de fazenda. E o fandango da Gurizada virou isso, uma exibição com sinalizadores que deseja agradar a 1.500 pessoas. Grandes artistas, como Madonna e Lady Gaga, fazem espetáculos assim também. A arte vai sendo deslocada para essa coisa mais infantil. Às vezes a música é playback, mas não é ela que está em jogo. É este show. Um show de pura excitação.
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[Mônica Manir, do Estado de S.Paulo]