Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O senhor das arqueias

Professor e cientista renomado, conhecido dentro e fora do mundo acadêmico principalmente em função de seu trabalho envolvendo a “árvore da vida”, Carl Woese faleceu em 30/12/2012, aos 84 anos. Soube da notícia no dia seguinte, por meio de postagens em blogues – ver, por exemplo, “RIP Carl Woese: collecting posts/notes/other information about my main science hero here“. Foi uma surpresa desagradável, além de uma coincidência bastante infeliz: eu estava pesquisando na rede e a razão para isso tinha a ver com uma questão tratada em um artigo dele (WOESE 2002) que eu estava justamente relendo.

Percebi logo depois que a Universidade de Illinois (EUA), onde Woese trabalhou durante quase 50 anos, já havia divulgado uma nota de falecimento – ver “Carl R. Woese, who discovered a new domain of life, dies at 84“. O jornal The New York Times publicou um obituário na noite do dia 31/12 – ver “Carl Woese dies at 84; discovered life’s ‘third domain’“. A revista Scientific American colocou no ar um artigo de sua autoria – “Archaebacteria: the third domain of life missed by biologists for decades“ (acesso livre durante os primeiros 15 dias; agora apenas para assinantes) –, publicado originalmente na edição de junho de 1981. Na quarta feira (2/1), o jornal português Público também deu a notícia – ver “Morreu Carl Woese, o cientista que descobriu o terceiro ramo da árvore da vida“. A edição da semana passada da revista científica Nature trouxe um breve obituário – ver “Carl Woese (1928-2012)“ (acesso apenas para assinantes).

Até a noite de domingo (3/2), porém, eu ainda não havia conseguido localizar um único registro na grande imprensa brasileira. É uma omissão grave e grosseira – Carl Woese foi várias vezes notícia por aqui –, mas devo confessar que não foi exatamente uma surpresa.

Os anos iniciais

O microbiologista estadunidense Carl Richard Woese nasceu em Syracuse (New York), em 15/7/1928, filho de Frederick e Joana Woese. Estudou na Faculdade Amherst, em Amherst (Massachusetts), onde obteve um diploma de graduação (Física) em 1950. Seguindo a sugestão de um professor, o químico William M. Fairbank (1917-1989), foi em seguida para a Universidade de Yale, em New Haven (Connecticut), onde fez um curso de pós-graduação na área de biofísica. Trabalhando no laboratório do renomado físico Ernest C. Pollard (1906-1997), um dos pioneiros na área, pesquisou os efeitos da temperatura e da radiação na inativação de vírus.

Concluiu o doutorado em 1953 – coincidentemente, o mesmo ano em que o biólogo estadunidense James Watson (nascido em 1928) e o físico inglês Francis Crick (1916-2004) propuseram o famoso modelo em dupla hélice para a estrutura do ácido desoxirribonucleico (ADN ou DNA, na sigla em inglês), a matéria-prima de que é feito o genoma. Teve em seguida uma experiência de dois anos em uma escola médica, mas não levou adiante. Continuou no laboratório de Pollard, onde fez um pós-doutorado. Pesquisou a germinação de esporos de bactérias e terminou se fixando no estudo dos ribossomos, uma organela celular formada de ácido ribonucleico (ARN ou RNA, na sigla em inglês) e proteínas.

Alguns de seus primeiros artigos apareceram quando ele ainda estava em Yale. Em 1960, Woese e colegas (WOESE et al. 1960) descobriram que a concentração de ribossomos aumenta muito durante a germinação dos esporos. Essas organelas haviam sido descritas em 1955, pelo citologista de origem romena George Emil Palade (1912-2008), laureado com um Prêmio Nobel (1974) e um dos pioneiros no uso da microscopia eletrônica. Outrora chamados de “microssomos”, os ribossomos estão entre as menores estruturas celulares conhecidas (20-30 nm de diâmetro; 1 nm, lê-se “nanômetro”, corresponde à milionésima parte de um milímetro) e, por isso mesmo, não podem ser vistas ao microscópio óptico.

Germinação de esporos e ribossomos

“Germinação” e “esporos” são termos de uso habitual. No âmbito deste artigo, porém, vamos usá-los apenas e tão-somente em alusão a um fenômeno bem-definido que ocorre em algumas bactérias formadoras de esporos (e.g., Bacillus e Clostridium). Quando as circunstâncias externas se deterioram (e.g., escassez de nutrientes ou acúmulo de toxinas), esses micro-organismos são capazes de entrar em um estado de “vida latente”. Por meio desse processo, chamado de esporulação (para detalhes em português, ver VERMELHO et al. 2007), uma célula vegetativa dá origem a um corpo compacto e resistente, o endósporo. A estrutura se forma dentro da célula bacteriana – daí o uso do prefixo endo- (do grego éndon = movimento para dentro ou posição interior). Quando o endósporo está maduro, a parede celular se rompe e a estrutura é liberada – a partir de então, costuma ser chamada apenas de esporo. (O esporo bacteriano não é homólogo ao esporo de fungos ou plantas. Outra coisa: a esporulação bacteriana, ao contrário do que muitos livros didáticos dão a entender, não é um tipo de reprodução.)

Sendo uma estrutura cujo metabolismo foi “desligado”, o esporo pode permanecer dormente durante períodos de tempo incrivelmente longos – em certos casos, não apenas durante anos ou décadas, mas talvez durante milhares ou até mesmo milhões de anos (para comentários em português, ver MADIGAN et al. 2010). Quando as circunstâncias mudam, a esporulação pode ser desfeita. O processo de reversão abrange três etapas: ativação, germinação e extrusão. A ativação é em geral desencadeada por substâncias químicas específicas (“germinantes”) e, uma vez iniciada, leva a uma série de mudanças – degradação do invólucro, reidratação e progressiva restauração do metabolismo. Essas mudanças não dependem da síntese de novas macromoléculas, pois a infraestrutura necessária está armazenada no interior do esporo. A germinação prossegue até a extrusão, quando então a bactéria volta ao seu estado vegetativo.

Em 1960, quando Woese e colegas (WOESE et al. 1960) publicaram o trabalho sobre esporos de Bacillus, pouco se sabia sobre o papel dos ribossomos na síntese de proteínas – o processo por meio do qual o genoma controla a estrutura e o funcionamento da célula. Pouco se sabia também a respeito da relação entre os diferentes ácidos nucléicos (ADN, ARN) ou sobre o papel de cada um deles na síntese de proteínas. Em um artigo que apareceu no final daquele ano, Woese e um colega escreveram o seguinte (WOESE & FORRO 1960, p. 815; tradução livre):

Muito pouco se sabe atualmente a respeito da relação entre a síntese de ADN e outros processos celulares. Os dados acima sugerem que a síntese prévia de ARN ou proteína é essencial para o início da síntese de ADN. Deve-se notar que o ARN da cultura em germinação quase duplicou no momento em que a síntese de ADN teve início; isso indica ao menos uma duplicação do ARN nas células mais adiantadas, que são as únicas a contribuir para o aumento inicial do ADN.

Poucos anos depois, Woese escreveria o seguinte (WOESE 1967, p. 112; tradução livre):

O ribossomo é, em sentido real, o palco no qual o drama da tradução se desenrola – os principais atores são os ARNts e os códons, o drama da interação entre eles é a produção de polipeptídeos [proteínas].

Não custa lembrar: a síntese de proteínas abrange duas etapas, a transcrição e a tradução. Na transcrição, um trecho de uma das fitas da molécula de ADN serve de molde para a síntese de uma molécula complementar de ARN mensageiro (ARNm). Na tradução, a sequência de nucleotídeos do ARNm é “lida”, sendo então convertida em uma sequência de aminoácidos, cada um dos quais é carreado até o local de síntese (ribossomo) por um ARN transportador (ARNt).

O código genético

Em 1964, a convite do microbiologista Sol Spiegelman (1914-1983), Woese foi trabalhar na Universidade de Illinois, em Urbana e Champaign (Illinois), onde construiria toda a sua carreira acadêmica. Na época, ele também já havia se envolvido com o estudo do código genético, um dos campos de pesquisa mais efervescentes entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60. Publicou uma hipótese pioneira sobre a evolução do código (WOESE 1965), além de ter escrito um dos primeiros livros-texto sobre o assunto (WOESE 1967; versão brasileira dessa obra, intitulada O código genético: A base molecular para expressão genética, apareceu em 1972).

Contrastando com a maioria dos estudiosos, ele insistia em examinar a questão de um ponto de vista evolutivo. Em suas palavras (NAIR 2012, p. 1020; tradução livre):

 [Naquela época, a] evolução foi descartada como um acidente histórico que não precisava ser evocado para explicar o código, que era visto apenas como uma série de interações químicas entre moléculas.

A “linguagem” do código reflete 1) o fato de que os genes (ADN) e as proteínas são formados por longas cadeias lineares de monômeros; e 2) a diversidade de monômeros (i.e., o “alfabeto”) varia em cada caso. O ADN é formado por quatro nucleotídeos (adenina, A; citosina, C; guanina, G; timina, T), enquanto as proteínas são formadas por 20 aminoácidos.

Na transcrição, cada nucleotídeo do trecho de ADN que serve de molde é representado na molécula de ARNm pelo seu complemento (A:T, C:G), lembrando apenas o ARN tem uracila em vez de timina. Na tradução, a molécula de ARNm é lida em unidades de três nucleotídeos, os códons. Por exemplo, o trecho 3’-ACCGTTAGG-5’ (ADN) serve de molde para a sequência 5’-UGGCAAUCC-3’ (ARNm), a qual possui três códons (UGG, CAA, UCC) – os termos 5’ e 3’ indicam as duas extremidades de cada fita: os códons sempre são lidos na direção da extremidade 5’ para a 3’. Uma consulta ao código genético (e.g., WATSON et al. 2006, p. 462) revela os aminoácidos que estão associados a esses três códons: triptofano (UGG), glutamina (CAA) e cisteína (UCC).

Ribozimas e o mundo de ARN

Existem 64 códons diferentes, cada um dos quais é (quase) sempre traduzido do mesmo jeito. A tradução desses códons implica em 21 resultados diferentes: 20 aminoácidos e uma “parada”. Trata-se, portanto, de um código redundante: 61 códons são convertidos em 20 aminoácidos, outros três (UAA, UAG, UGA), os chamados códons de parada, são traduzidos como um sinal de finalização da cadeia polipeptídica. Esses aspectos criptográficos do código foram decifrados entre o final da década de 1950 e meados da década de 1960. Perguntas importantes, no entanto, permaneceram sem resposta. Por exemplo, por que os aminoácidos que exibem propriedades químicas semelhantes tendem a estar associados a códons semelhantes ou por que alguns aminoácidos têm mais códons do que outros? O tratamento dado a essas questões por Woese (e.g., WOESE 1965, 1967) ajudou a moldar o que sabemos hoje sobre o assunto.

Outro exemplo do seu espírito visionário vem de suas ideias a respeito da natureza, digamos, ambivalente do ARN: além de “informantes químicos”, essas moléculas também podem se comportar como catalisadores. Ele foi o primeiro a sugerir que moléculas de ARN poderiam exercer funções catalíticas (WOESE 1967), a exemplo do que fazem as enzimas de natureza protéica – previsões semelhantes foram feitas um pouco depois (independentemente) por Francis Crick e Leslie Orgel (1927-2007). Anos mais tarde, os primeiros exemplos dessas “moléculas ambivalentes” – chamadas hoje de ribozimas (ribo-, de ácido ribonucléico + -zimas, de enzimas) – foram identificados. Em 1989, o químico estadunidense Thomas Cech (nascido em 1947) e o biofísico canadense Sidney Altman (nascido em 1939) seriam laureados com o Prêmio Nobel em reconhecimento à pesquisa que ambos conduziram (separadamente) demonstrando a existência de ribozimas.

As ideias de Woese sobre o ARN também influenciaram o desenvolvimento de modelos a respeito da origem da vida. Esse é o caso do chamado “mundo de ARN”, modelo segundo o qual a forma primordial de vida na Terra estaria fundamentada nessas moléculas (para comentários em português, ver FREEMAN & HERRON 2009). Algumas das formas precursoras teriam evoluído para formas semelhantes às atuais, nas quais o duplo papel desempenhado antes por uma única classe de moléculas (ARN) passaria a ser executado por duas classes, uma (ADN) que armazena a informação e outra (proteína) que a expressa.

Um marcador universal

No início da década de 1960, a “efervescência molecular” iniciada na década anterior – impulsionada pelo surgimento da genética molecular e pelos avanços da chamada química pré-biótica (ver adiante) – parecia contaminar toda a biologia. Apesar disso, Woese continuava acreditando que perguntas importantes estavam sendo deixadas de lado. Ele se deu conta de que avanços significativos em torno de certas questões – como a origem do código genético e a construção de uma árvore da vida universal – dependeriam da obtenção não apenas de mais dados, mas também de dados mais apropriados. Algumas coisas precisavam mudar. Era o caso dos marcadores até então usados em estudos filogenéticos, como a hemoglobina e o citocromo C. Acontece que a hemoglobina é encontrada apenas em alguns grupos de animais (sobretudo vertebrados), enquanto o citocromo C não é encontrado nos procariontes (bactérias e arqueias). Sem um marcador universal, como poderíamos pensar na construção de uma “árvore da vida universal” (i.e., uma árvore que possa abrigar todos os grandes grupos de seres vivos)? Havia, ainda, um segundo problema: os objetos de estudo utilizados em análises filogenéticas eram quase sempre organismos multicelulares (e.g., animais ou plantas); bactérias e outros micro-organismos costumavam ser ignorados.

Na segunda metade da década de 1960, Woese daria início a um ambicioso programa de pesquisa: sequenciar e catalogar moléculas de ARN de uma ampla variedade de micro-organismos, sobretudo bactérias. O marcador escolhido por ele, o ARN ribossômico (ARNr), tem um papel-chave na síntese de proteínas. Moléculas de ARNr estão presentes nos mais variados tipos de células, sugerindo que elas poderiam servir como um marcador universal genuíno. Além disso, o comportamento dessas moléculas como uma espécie de “relógio molecular” é bastante confiável (ver WOESE 1987; para comentários em português, ver FREEMAN & HERRON 2009). É bom ressaltar que a adoção do ARNr como marcador só se tornou viável após o aparecimento de um método “manual” que permitia determinar a sequência de bases (A, C, G, U) em amostras de ácidos nucleicos. O método apareceu em 1965, tendo sido desenvolvido pelo renomado bioquímico inglês Frederick Sanger (nascido em 1918), duas vezes laureado com o Prêmio Nobel (1958 e 1980), a partir de uma técnica criada anteriormente por ele próprio para sequenciar proteínas.

Existem, na verdade, vários tipos de ARNr, incluindo o ARNr 5S, o ARNr 16S e o ARNr 23S, onde os termos 5S, 16S e 23S indicam os índices de sedimentação das moléculas quando submetidas à centrifugação – o “S” é abreviatura de “svedberg”, unidade de medida criada em homenagem ao químico sueco Theodor Svedberg (1884-1971), laureado com um Nobel (1926) e pioneiro no uso da ultracentrifugação no estudo de macromoléculas. Os índices de sedimentação são influenciados pelas dimensões das moléculas, o que, no caso dos ácidos nucleicos, é diretamente proporcional ao número de nucleotídeos presentes. Por exemplo, os ARN ribossômicos encontrados em células bacterianas possuem cerca de 120 (ARNr 5S), 1.500 (16 S) e 2.900 (23 S) bases (para detalhes técnicos ver SILVA <http://www.arb-silva.de/>; para comentários em português, ver VERMELHO et al. 2007).

Examinando o “registro fóssil interno”

O objetivo primordial do programa de pesquisa iniciado por Woese era explorar a questão da origem da vida na Terra. Em 1969, em uma carta endereçada a Crick, Woese escreveu (ver WOESE & GOLDENFELD 2009, p. 16):

Há uma possibilidade, embora não uma certeza, de que isso [inferir a história evolutiva da célula] possa ser feito usando-se o “registro fóssil interno” da célula – i.e., a estrutura primária de diversos genes. Portanto, o que eu quero fazer é determinar a estrutura primária de vários genes em um grupo bem diversificado de organismos, na esperança de que, deduzindo as antigas sequências ancestrais desses genes, nós ocasionalmente estaremos em posição de enxergar aspectos da evolução da célula – i.e., sabendo que aspectos da estrutura primária estão “ligados”, que regularidades (repetições etc.) existem e como uma antiga estrutura primária se relaciona com outras (dando origem a alguma função celular diferente).

Sempre houve muita especulação em torno dos primórdios da vida, mas nem sempre as ferramentas necessárias estiveram ao alcance dos estudiosos. Em 1953, o químico estadunidense Stanley Miller (1930-2007) havia mostrado que macromoléculas orgânicas podem ser sintetizadas sob condições inteiramente abióticas – sobre a vida e obra Miller, ver COSTA (2007). Embora o alcance de tal descoberta não fosse além dos domínios da química ou da bioquímica, era algo inspirador: seria possível construir uma base experimental semelhante para o estudo da origem e evolução da célula? Foi com o propósito de encontrar uma resposta para perguntas desse tipo que Woese deu início ao seu trabalho.

Naquela época, sequenciar ácidos nucléicos era um trabalho lento e difícil. As análises moleculares, muitas das quais podem ser concluídas hoje em algumas horas, demoravam semanas ou até meses. Apesar disso, e contrariando as expectativas – colegas o viam apenas como um sujeito excêntrico à frente de um empreendimento quixotesco –, os resultados começaram a aparecer. Na primeira década de trabalho, Woese e colaboradores conseguiram sequenciar trechos comparáveis de amostras extraídos de células de umas 60 espécies diferentes, incluindo bactérias, algas e protozoários. Dez anos depois, cerca de 500 espécies de bactérias já haviam sido de algum modo examinadas. O ARNr (notadamente o ARNr 16S) revelou ser um marcador especialmente apropriado para estudos comparativos. Além disso, a ideia de usar essas moléculas para caracterizar e reconhecer micro-organismos tornou-se uma opção metodológica aceita e amplamente disseminada.

Para dimensionarmos melhor a revolução que Woese estava prestes a protagonizar, tanto no que diz respeito aos sistemas de classificação como também em relação aos fundamentos da sistemática biológica, cabe examinar antes o modo como a árvore da vida era vista até meados da década de 1970. É bom desde já ressaltar que, naquela época, os micro-organismos ainda ocupavam uma posição bastante marginal nos sistemas de classificação. Além disso, não devemos esquecer que os sistemas de classificação dos micro-organismos, sobretudo o das bactérias, eram puramente pragmáticos, com pouco ou nenhum embasamento evolutivo.

Um mundo dividido em reinos

No tempo de Aristóteles (384-322 a.C.), os objetos do mundo natural eram classificados em três “reinos”: animal, vegetal ou mineral. O próprio Carl von Linné (1707-1778) – o Lineu –, naturalista sueco que estabeleceu as bases da nomenclatura biológica, adotou uma classificação igualmente dicotômica para os seres vivos: animais vs. vegetais. O que não cabia em um reino, teria forçosamente de caber no outro. Essa visão perdurou até meados do século 19.

O primeiro sistema de classificação que tentou refletir a história evolutiva dos seres vivos talvez tenha sido o do naturalista alemão Ernest Haeckel (1834-1919). Em 1866, Haeckel apresentou uma proposta de acordo com a qual os seres vivos estariam divididos em três reinos: animais, vegetais e protistas. Este último abrigava grupos intermediários ou “problemáticos”, como esponjas e fungos, além dos micro-organismos, incluindo as bactérias. Um sistema de classificação verdadeiramente moderno só apareceria, no entanto, em meados do século 20. Em 1938, o biólogo estadunidense Herbert F. Copeland (1902-1968) publicou um artigo com uma primeira versão do seu sistema; em 1956, uma versão corrigida e mais detalhada apareceu em formato de livro. De acordo com Copeland, os seres vivos deveriam ser arranjados em quatro reinos: moneras (bactérias; extraídas dos “protistas” de Haeckel), plantas (incluindo os fungos), animais e protocistas (algas e protozoários).

Em 1969, tendo o sistema de Copeland como precursor, o biólogo estadunidense Robert H. Whittaker (1920-1980) publicou um sistema de classificação segundo o qual os seres vivos deveriam ser arranjados em cinco reinos: moneras (bactérias), protistas, fungos (extraídos das “plantas” de Copeland), animais e plantas. Com algumas modificações, o sistema de cinco reinos continua sendo usado atualmente (e.g., MARGULIS & SCHWARTZ 2001), embora haja algumas propostas alternativas (e.g., CAVALIER-SMITH 2004). A despeito de certas diferenças, tanto o sistema de Copeland como o de Whittaker repousavam sobre um mesmo princípio básico: havia uma dicotomia fundamental na história da vida – procariontes (bactérias) vs. eucariontes (todos os demais) – e isso deveria ser retratado na árvore da vida e, portanto, nos sistemas de classificação.

Uma falsa dicotomia

Em 1977, Woese e George Fox (nascido em 1948) apresentaram as primeiras evidências a favor de um modelo inteiramente novo para a árvore da vida. De acordo com eles (WOESE & FOX 1977, p. 5088; tradução livre):

Dividir o mundo vivo em Prokaryotae e Eukaryotae tem servido, antes de tudo, para obscurecer o problema de quais agrupamentos atuais representam os diversos ramos primordiais da linha de descendência comum. A razão é que eucarioto/procarioto não é primariamente uma distinção filogenética, embora geralmente seja tratada como tal. […] Apesar de marcantes, essas diferenças de organização não garantem que eucariotos e procariotos sejam extremos filogenéticos.

De acordo com os autores, os sistemas de classificação, notadamente o sistema de cinco reinos, repousavam em uma falsa premissa. O modelo proposto por eles era tripartite, indo de encontro à ideia de uma dicotomia fundamental. O novo ramo abrigaria as arqueias (também chamadas às vezes de arqueobactérias), um grupo de seres procariontes até então tratados como bactérias. A árvore da vida teria assim três ramos fundamentais, dois dos quais formados exclusivamente por seres procariontes (bactérias e arqueias). A dicotomia entre procariontes e eucariontes seria ilusória e os sistemas de classificação erguidos sobre tal ilusão estariam equivocados. Curiosamente, porém, grande parte da comunidade científica se mostrou indiferente às novas ideias.

Em 1990, Woese e colaboradores (WOESE et al. 1990) apresentaram uma proposta formal visando arranjar toda a diversidade conhecida da Terra em três grandes grupos (referidos como “domínios”): Archaea (anteriormente Archaebacteria), Bacteria e Eucarya (atualmente Eukarya). O alvoroço dessa vez foi grande e não faltaram represálias. O renomado ornitólogo Ernst Mayr (1905-2004) foi um dos que partiram para a briga; a bióloga Lynn Margulis (1938-2011) também fez críticas ferrenhas ao modelo de três domínios, embora, nos últimos anos, ela tenha adotado uma posição mais conciliatória – sobre a vida e obra de Mayr e Margulis, ver, neste Observatório, os artigos “Evolucionista morre aos 100 anos“ e “Nadando contra a corrente“, respectivamente.

O achado que mudou a árvore da vida

Apesar de toda a oposição inicial, as ideias de Woese têm prevalecido. Atualmente, há pouca discordância em torno da afirmativa de que bactérias e arqueias constituem linhagens distintas e que, portanto, não podem ser mantidas juntas em um mesmo grupo taxonômico. A relação entre os três domínios (bactérias, arqueias e eucariontes) é, no entanto, algo mais controverso. Algumas análises indicam que as arqueias e os eucariontes seriam “grupos-irmãos”, pois ambos teriam surgido a partir de um ancestral único comum. Os dois grupos seriam, portanto, taxonomicamente equivalentes, conforme o modelo de três domínios dá a entender. Análises com base em outras moléculas, no entanto, produzem resultados diferentes. Uma das hipóteses alternativas sustenta que os eucariontes teriam surgido a partir de um grupo de arqueias. Nesse caso, as arqueias e os eucariontes não seriam grupos-irmãos e o modelo de três domínios teria de ser modificado.

Qualquer que seja o modelo que venha a prevalecer (dois, três ou mais domínios), cabe aqui chamar a atenção para um aspecto importante: a constatação de que as arqueias representam uma linhagem distinta, e não apenas um subgrupo de bactérias, foi um grande achado. Quer dizer, constatar a existência de um segundo grande grupo de seres procariontes não foi fruto de um programa de pesquisa designado para esse fim. O objetivo inicial, como foi dito antes, era outro: construir um amplo e detalhado banco de dados que permitisse inferir os primórdios da vida celular em nosso planeta. As arqueias meio que apareceram ao longo do caminho (ver MORELL 1997).

Em 1976, por sugestão de Ralph S. Wolfe, um colega de universidade, Woese incluiu um obscuro grupo de procariontes metanogênicos (i.e., cujo metabolismo resulta na liberação de metano) como mais um objeto de sua pesquisa. Os resultados obtidos foram surpreendentes: aqueles organismos – referidos hoje como “euriarqueias metanogênicas” (para comentários em português, ver MADIGAN et al. 2010) – tinham uma assinatura genética distinta. Arqueias e bactérias, a despeito de ocasionais “semelhanças morfológicas”, pouco ou nada têm a ver entre si. É claro que, depois que Woese e colaboradores perceberam o que tinham em mãos, pesquisas específicas foram iniciadas visando esclarecer questões próprias a respeito das arqueias. De resto, outros estudiosos ao redor do mundo passaram a se interessar e a fazer suas próprias descobertas. E a microbiologia nunca mais foi a mesma… (ver WOESE & GOLDENFELD 2009).

Comendo amendoins e especulando

Embora a discussão “dois ou três domínios?” nada tenha de trivial, a importância da descoberta das arqueias não reside apenas nisso. Devemos lembrar que, até a década de 1970, não havia um sistema de classificação que refletisse de modo minimamente satisfatório as relações evolutivas entre as linhagens de micro-organismos. Não era muito difícil reconhecer gêneros distintos – diferenciar, digamos, entre Nostoc (uma cianobactéria) e Treponema (espiroqueta) ou entre Bacteroides (flavobactéria) e Chlamydia (clamídia) –, mas ninguém podia afirmar quão próximas ou distantes em termos evolutivos tais bactérias estariam entre si.

Já no final da década de 1960, os autores de um renomado e importante livro-texto de microbiologia (STANIER et al. 1969) sustentavam que a história evolutiva das bactérias jamais seria reconstruída. Obter uma classificação natural desses organismos seria, portanto, uma tarefa impossível – cabe registrar que o renomado e influente microbiologista canadense Roger Y. Stanier (1916-1982), principal autor da obra, defendia no início de sua carreira exatamente o oposto. Nas palavras dos autores do livro (STANIER et al. 1969, p. 398, ênfase no original):

Em muitos grupos grandes de plantas superiores e animais, o desenvolvimento de uma classificação natural detalhada é relativamente fácil porque há tantas linhas de evidência indicando relações evolutivas: homologias de estruturas e desenvolvimento e, frequentemente, um extenso registro fóssil. […] O problema de inferir relações naturais se torna, consequentemente, mais agudo quando chegamos aos protistas inferiores [sic]. Todos estes organismos compartilham das propriedades estruturais características associadas à célula procariótica […] e podemos, assim, inferir com segurança uma origem comum para o grupo todo num passado evolutivo remoto; podemos também discernir quatro subgrupos principais, as algas verde-azuladas, mixobactérias, espiroquetas e eubactérias, que parecem ser diferentes entre si […]. Além deste ponto, porém, qualquer tentativa sistemática de construir um esquema pormenorizado de relações naturais se converte na mais pura especulação, completamente infundada por qualquer tipo de evidência. A única conclusão possível é, pois, que a finalidade primordial da classificação biológica não pode ser atingida no caso das bactérias.

No livro, Stanier et al. (1969) adotaram um sistema de três reinos: animais, vegetais e protistas. Estes últimos eram então informalmente subdivididos em “protistas inferiores” (bactérias) e “superiores” (algas, protozoários, fungos). Em 1970, Stanier fez o seguinte comentário (apud WOESE 1987; tradução livre):

Especulação evolutiva constitui uma espécie de metaciência, exercendo sobre alguns biólogos o mesmo fascínio intelectual que a especulação metafísica tinha sobre alguns escolásticos medievais. Isso pode ser considerado um hábito relativamente inofensivo, como comer amendoins, a menos que adquira a forma de uma obsessão, quando então se converte em um vício.

Não sei se Carl Woese gostava ou não de amendoins, mas acredito que ele não teria provocado a revolução que provocou se não estivesse imbuído de um “obsessivo interesse” por especulações evolutivas. Para fazer o que ele fez, o trabalho de “moer carne” sobre a bancada do laboratório não teria sido suficiente.

Avesso a badalações

A descoberta das arqueias teve consequências amplas e profundas. De modo semelhante, Woese ampliou ainda mais o seu leque de interesses, tratando de questões que iam do soerguimento conceitual da microbiologia até o estabelecimento definitivo da ideia de uma árvore da vida universal. Mais recentemente, um dos assuntos que ele vinha abordando com certa frequência era a questão da transferência horizontal de genes (THG). A teoria evolutiva convencional está organizada em torno da ideia de que a transmissão de caracteres hereditários é um processo vertical – isto é, os genes são transmitidos predominante ou exclusivamente de pais para os filhos. Woese foi um dos primeiros a chamar a atenção para o papel da THG, um fenômeno que pode ter sido particularmente comum e importante nos primórdios da vida celular (ver VETSIGIAN et al. 2006). Nos últimos anos, ele também passou a discutir sobre questões de cunho filosófico e educacional, como a “crise” no ensino de biologia nas escolas e universidades estadunidenses (e.g., WOESE 2004, 2005).

Além disso, se preocupava em contribuir para a educação científica da população, chamando a atenção para estereótipos e equívocos que prosperam a respeito dos micro-organismos, especialmente as bactérias. Por exemplo, muitos de nós pensamos nas bactérias apenas e tão-somente como agentes causadores de doenças. É fato que muitas delas são patogênicas, mas a imensa maioria é de vida livre e pouco ou nenhum perigo representa para os seres humanos. Na verdade, embora sejam invisíveis a olho nu, bactérias e arqueias catalisam transformações biogeoquímicas sem as quais a manutenção da vida em nosso planeta não seria mais possível. Os procariontes também correspondem a uma fatia bastante expressiva, quando não majoritária, da biomassa planetária. Estima-se, por exemplo, que a quantidade total de carbono presente em células procarióticas esteja na casa de 350-550 picogramas (uma picograma, Pg, equivale a 1015 g ou 1 quatrilhão de gramas), o que corresponderia a 60-100% da quantidade total de carbono presente nas plantas (para detalhes técnicos, ver WHITMAN et al. 1998).

Descrito como um sujeito de fala mansa, Woese era avesso a badalações. Evitava até mesmo os encontros e congressos científicos – costumava recusar os convites que recebia. Isso não impediu, contudo, que ele fosse agraciado com várias honrarias e homenagens ao longo da vida. Em 1992, ele foi laureado com a Medalha Leeuwenhoek, a maior distinção na área de microbiologia, concedida a cada década pela Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos. Em 2003, foi laureado com o prestigioso Prêmio Crafoord, concedido pela Academia Real das Ciências da Suécia. Em outubro de 2011, a revista científica Nature (Nature Reviews Microbiology) defendeu publicamente a indicação do seu nome para o Nobel. O prêmio não veio, mas uma campanha desse quilate, em tributo às contribuições de um cientista para o avanço da ciência, é uma iniciativa incomum e deve ter soado algo reconfortante.

Carl Woese faleceu em casa, em Urbana, em decorrência de complicações advindas de um câncer no pâncreas. Ele deixou viúva e um casal de filhos.

Referências

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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)]