“A vida quer da gente é coragem.” Coragem e amor, por que sem amor, seríamos nada. Assim foi Therezinha Martins Rabêlo, porto seguro que fundiu o amor e a coragem em uma só pessoa, maior, um exemplo de mãe e esposa para todos nós. Sua vida foi uma saga, uma epopeia, uma diáspora moderna, vivendo anos e anos de incertezas, angústias e indefinições no exílio, longe de tudo e de todos. Ainda assim, encontrava força para reunir a família e agradecer por estarem juntos, vivos e salvos.
O marido, conheceu em uma aula de geografia, no Rio de Janeiro. Ele, professor. Ela, aluna. Após a aula, vendo a lapela do paletó suja de giz do mestre, depois da protocolar reverência, postou-se a limpá-la com as mãos. Era o início de tudo. Limpou o agasalho do professor e dos filhos deles, vida afora.
Filha de tradicional e conservadora família de militares cariocas, nunca negou o amor ao se apaixonar pelo jovem professor socialista, idealista e revolucionário José Maria Rabêlo. Os protestos de todos enfrentou e com ele se casou, isso tudo no Brasil da primeira metade do século passado, época da tradicional família brasileira e seus casamentos acordados.
Matriarca generosa
Ao se mudar para Minas, viveu o seu primeiro exílio, consentido. Teve oito filhos, um falecido ainda bem novinho, e enfrentou o mundo, com coragem, amor, nobreza e fé inquebrantáveis. Pelas atividades do marido, jornalista e fundador do polêmico jornal Binômio, perseguido pela ditadura militar, viveu com os filhos o exílio no Chile – até a queda de Salvador Allende e novo golpe – e Paris, onde a vida foi mais generosa com os Rabêlo. Nunca chorou a pátria perdida, mas celebrou a família reunida, dia a dia. Sabia que a vida é um eterno recomeçar.
Após o golpe militar no Brasil, José Maria escondido em casa incerta em Belo Horizonte, ela foi à casa do velho amigo da família em busca de seu marido. Por segurança, ninguém deveria saber onde ele estava, ouviu a negativa do amigo, quando argumentou: “Ele está aí sim, pois eu sinto o cheiro dele!”. Estava.
Já no Chile, o primeiro Natal no exílio… os filhos tristes, os pais rendidos, sem nada para festejar, sem dinheiro, sem brinquedos para os meninos, sem festas ou amigos, foi quando a família recebeu uma graça. O filho Pedro, se aventurando pelo sótão da casa grande, descobriu escondidas caixas e caixas empoeiradas de brinquedos abandonados, iniciando uma improvável festa. Na certa, uma oferenda de nobre família que morara ali antes. Era o renascimento da alegria, o sinal de quem alguém, além, olhava por eles.
O marido, perseguido pelos militares chilenos, refugiado com o filho mais velho na embaixada do Panamá, e o filho Pedro preso no Estádio Nacional do Chile, com a ameaça de ser fuzilado a qualquer momento, ela encontrava força, reunia os meninos, segurava-os em roda pelas mãos e falava firme: “Meus filhos, não chorem, saibam que o Pedro vai voltar, o Álvaro vai se salvar e seu pai vai nos juntar todos e nossa família estará unida novamente, como sempre foi”. Matriarca por vocação, sua casa sempre foi uma embaixada para os exilados e ela a embaixatriz generosa que estendia os braços e afagava os que estavam sem pátria.
Conquista infinita
Um dia, fomos almoçar nos arredores de Belo Horizonte, Thereza, Zé Maria e eu. Bebemos histórias, partilhamos sonhos, muitos. Quando a conta chegou ela a pegou com rapidez, diante de protestos nossos. Não ponderou. Pagou. Assim era ela.
Debilitada, acamada e internada, com a mesma bravura que enfrentou todas as agruras da vida, não fugiu da última, quando chamou o marido e protestou no hospital: “Zé Maria, isso aqui não pode continuar assim não, você tem que tomar uma providência”, estava com 84 anos de idade. Deus tomou por ele a providência que ela desejava. No dia 13 de janeiro, um anjo barroco, como os muitos que mantinha em seu altar e imagens na sala do sonhado apartamento, veio buscar Thereza, a guerreira que agora não precisaria mais lutar, pois ela tinha conquistado o infinito…
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[Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor]