Gostaria de iniciar esta reflexão com uma breve alegoria, buscando na linguagem literária uma abordagem mais branda para uma categoria que arrasta consigo certa carga de autoridade, e de controvérsia, a saber: a verdade.
Imaginemos, então, uma pequena ilha perdida no oceano. Habitada por apenas um punhado de pessoas, que nada mais faziam além de sobreviver, em condições bastante precárias, por incontáveis gerações. Tal pedaço imaginário de terra não possuía recursos naturais suficientes para sustentar adequadamente aqueles que dela dependiam.
Diariamente, uns poucos pescadores, fortes e destemidos, enfrentavam o furioso oceano que circundava todo o mundo conhecido para nele buscar condições de sobreviver até a próxima manhã. Entretanto, o oceano concedia apenas uma qualidade de pescado: sardinhas. Em alguns dias era mais generoso, e todos passavam bem; em outros mais cruel, e todos passavam fome. Assim sucediam-se as estações, desde o início dos tempos.
No centro da aldeia, aguardando o retorno dos valorosos pescadores, sentava-se o ancião. Este guardião da memória, que fora o melhor provedor dentre todos, era logo cercado pelas crianças da pequena comunidade, curiosas por suas histórias e aventuras. A pergunta inevitável sempre surgia, acompanhada de grande antecipação: o que há lá fora, no mundo? O ancião respondia, sem pestanejar: sardinhas! E era tudo que precisavam saber.
A verdade está lá fora
O conceito de verdade não nasceu com a filosofia. É bem mais primal, entrelaçando-se com a própria gênese da linguagem e da cultura. Nomear, por si só, constitui ato que concede certa verdade às coisas do mundo. Porém, a filosofia traz a verdade para o foco das preocupações: de virtude a ser buscada, a critério do saber.
Os primeiros pensadores gregos questionaram as explicações oferecidas, pelos mitos, para o mundo que conheciam, substituindo-as por outras, baseadas, até certo ponto, na razão e na observação. Plantaram, deste modo, a semente da filosofia, e das ciências em geral. A verdade do mito não consegue mais explicar, satisfatoriamente, a realidade.
Posteriormente, a questão da verdade será um ponto crucial no pensamento de Platão. Este descreve, em sua alegoria da caverna, o confinamento dos homens ao mundo das aparências, onde acreditam serem as sombras imperfeitas, projetadas em uma parede, toda a realidade existente. Somente o sábio consegue aventurar-se no mundo exterior, o mundo das ideias, e, fora da caverna, vislumbra a verdade: as formas das quais, na visão do filósofo, a realidade só possui cópias imperfeitas. A verdade do mundo das ideias, na visão do ateniense, é forma e fôrma para o mundo sensível.
Mundo incognoscível
A questão da verdade transita, tortuosamente, pelos séculos e pelos pensadores, até os dias atuais. Mais de dois mil anos após Platão, no século 18, Immanuel Kant, na obra Crítica da Razão Pura, propõe outro modo de lidar com a verdade, e com o conhecimento. Para o filósofo prussiano, o mundo das coisas-em-si representa um todo incognoscível, do qual só podemos perceber algumas partes, experimentadas por nós como fenômenos. Por mais ângulos que escolhermos, por mais recortes que fizermos, o todo sempre nos escapará.
Podemos considerar, a título de exemplo, o modo como vemos as cores. Nós somos capazes de perceber, a olho nu, uma determinada quantidade de cores, que correspondem ao espectro visível da luz. Por outro lado, as abelhas podem reconhecer, também, tonalidades ultravioletas, invisíveis para os olhos humanos. Logo, para uma abelha, a afirmação “esta margarida é amarela” não terá o mesmo caráter de verdade que poderia conter para nós.
Do mesmo modo podemos pensar os fatos, e os eventos. Se diversas pessoas testemunharem um acontecimento, de pontos de observação diferentes, sejam eles físicos ou subjetivos, suas descrições deste mesmo evento diferirão, substancialmente. Nenhuma delas, por melhor posicionada, poderá experimentar tal ocorrência em sua totalidade, pois mesmo a soma de todas as percepções possíveis não garante, enfim, o todo.
As faces da verdade
Qual seria a importância dessas linhas corridas, traçadas com as limitações de espaço e autor, para uma compreensão maior de nossa realidade midiática? O que o mundo das ideias, ou dos fenômenos, ou das abelhas, ou das sardinhas pode ter de paralelo com o comportamento de nossos veículos de comunicação e, principalmente, do jornalismo? Por que faz-se importante falar sobre a verdade? Porque o jornalismo pratica, aberta ou veladamente, o discurso da "busca pela verdade".
O jornalismo vende a verdade: mas não a entrega. Este é um dos muitos calotes midiáticos dos quais somos vítimas. O que a imprensa nos entrega, em todas as suas modalidades, desde as mídias impressas às eletrônicas, constitui-se – e não poderia ser de outra forma – um recorte da verdade. Evito, intencionalmente, mais uma discussão sobre a utopia de uma verdade inatingível, ou sobre a impossibilidade de uma visão objetiva dos fatos.
O problema que aqui levanto é da ordem do tempo, e não da verdade em si. Pois, mesmo se fosse possível apresentar um acontecimento contemplando todas as suas implicações, o que recebemos será sempre um recorte: não há viabilidade para a inclusão de todos os fatos, sob todas as versões, dados os espaços de tempo disponíveis tanto dos veículos quanto do(a) leitor(a) ou espectador(a).
Questão de relevância
Para isso existe a profissão de editor. Este escolherá, dentre todos os pontos de vista, dentre todos os enfoques, dentre todos os testemunhos, aqueles que considerar mais relevantes. O critério de relevância atenderá aos princípios editoriais da emissora, do jornal, enfim, de cada veículo de comunicação. No processo, muita coisa será descartada.
Esta é a questão: não da verdade, mas da relevância. Diariamente profissionais decidem o que se constitui relevante, ou não, para nós. Configura-se uma necessidade, como sabemos. Entretanto, deveremos sempre nos questionar pelo não dito, e por que não foi dito. Se estamos diante de uma forma ou de uma fôrma para nossas ideias. Aceitando passivamente o que nos oferecem, só poderemos ter certeza de uma coisa: de que amanhã comeremos sardinhas, mais uma vez.
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[André Silveira Sampaio é professor e escritor.]