Recentemente, um pequeno número de jornalistas cobrindo os conflitos armados na Síria entrevistou prisioneiros de guerra sob circunstâncias coercitivas. Ao fazer isso, os repórteres ignoraram as proteções asseguradas aos prisioneiros pelo Direito Internacional Humanitário (DIH).
As entrevistas suscitam questões importantes sobre a responsabilidade de jornalistas em um conflito armado. Até que ponto os jornalistas deveriam entender os princípios e obrigações do DIH? Até que ponto repórteres e editores deveriam aplicar esses princípios ao seu trabalho? Por fim, como os jornalistas deveriam lidar com as tensões entre o interesse público na disseminação de informação e as proteções asseguradas aos prisioneiros de guerra? Estou seriamente consciente dessas questões como ex-promotor do Tribunal Criminal Internacional da ONU na Iugoslávia e antigo conselheiro legal da Comissão Internacional de Inquérito para a Síria da ONU. As opiniões são minhas, embora elas tenham como base meus anos de trabalho pelo Direito Internacional Humanitário.
De acordo com a Convenção de Genebra de 1949, prisioneiros de guerra devem ser tratados humanamente: “eles devem ser protegidos todo o tempo, particularmente de atos de violência e intimidação e de insultos e curiosidade pública”. Quem mantém prisioneiros de guerra deve tratá-los com respeito e honra, em qualquer circunstância. Nenhuma forma de coerção pode ser infligida em prisioneiros para a obtenção de qualquer tipo de informação. Recentemente, o artigo 45 do Protocolo Adicional I para a Convenção de Genebra, aplicável a conflitos armados internacionais, garante a proteção de “prisioneiro de guerra” para pessoas que tomaram parte em um conflito e caíram sob o poder de seus inimigos. De acordo com o Protocolo Adicional II, proteções similares também são esperadas de presos em conflitos não internacionais. Por exemplo, “sua saúde física e mental e sua integridade não devem ser ameaçadas por nenhum ato ou omissão”. Ainda mais, todos os feridos, “participantes ou não do conflito armado, devem ser respeitados e protegidos” e ninguém deve tomar vantagem de suas fraquezas para maltratá-los ou prejudicá-los de qualquer forma.
Tensão
Existe um grande interesse público em proteger a liberdade de expressão e o direito de divulgar e receber informação, particularmente durante um conflito armado em que grandes violações aos direitos humanos são cometidas. Não obstante, durante uma guerra, uma tensão existe entre essas liberdades e as proteções garantidas pelo Direito Internacional Humanitário aos prisioneiros de guerra. Eu argumento que a mídia internacional na Síria nem sempre equilibrou essa tensão, resultando em exploração e abuso de prisioneiros.
Em uma reportagem transmitida no dia 17 de outubro, um correspondente da al-Jazeera entrevista um piloto sírio que foi feito prisioneiro pelo Exército Livre Sírio. Um dos olhos do piloto estava roxo e fechado de inchaço. Enquanto a entrevista avança na presença dos captores armados do prisioneiro, o jornalista explica para o público: “Não existe um jeito de saber exatamente como ele foi tratado antes de chegar aqui, ou que tipo de pressões ele sofreu. Mas queremos ouvir sua história”. Dentre outras questões, o correspondente perguntou ao prisioneiro: “Você sabia que estava bombardeando civis?”. O piloto capturado parece frágil e com medo, mas o jornalista explica: “Muitos acham que a inocência do piloto é fingida, um jeito de fugir da responsabilidade de suas ações”. A natureza dos comentários do repórter só aumenta a vulnerabilidade do piloto.
No dia 7 de dezembro, a BBC transmitiu o encontro com seis prisioneiros na Base Aérea de Mezza, em um centro de detenção da Inteligência da Força Aérea, que, como o repórter da BBC comenta, é “o mais temido serviço de inteligência sírio”. O repórter descreveu que “grupos de direitos humanos e antigos prisioneiros dizem que acontece tortura aqui”. Verdadeiramente, a Comissão de Inquérito para a Síria da ONU e a ONG Human Rights Watch documentam o uso de tortura contra os detentos em Mezza desde novembro de 2011. Na transmissão, os oficiais da Inteligência da Força Aérea “desfilam” (é o termo usado pela BBC) os seis prisioneiros para a câmera e para a equipe da Televisão Estatal Síria, meio de comunicação do governo de Assad. Vários dos homens eram idosos e, de acordo com a reportagem, “confessaram fazer parte de grupos similares à al-Qaeda”. O passaporte de um dos presos, um cidadão franco-argelino, foi filmado e transmitido, um ato que documenta sua identidade. Este homem se recusou a responder se foi ou não torturado; os outros prisioneiros falaram que não. O repórter notou que não poderia assegurar as declarações dos prisioneiros. A transmissão continuou com a descrição de como o governo de Assad culpa grupos terroristas pela violência na Síria, o que justificou o acesso da BBC aos “jihadistas”.
O valor da informação
Sem dúvida, cada reportagem tem seu valor como notícia. No entanto, além da propaganda feita para um lado do conflito sírio, a natureza e o tom das questões da al-Jazeera implicam responsabilidade de crimes contra civis ao prisioneiro, uma alegação perigosa dada sua situação vulnerável como cativo, e que pode não ser correta. Similarmente, a BBC retrata a “confissão” dos detentos na participação de grupos terroristas, um conhecimento perigoso para pessoas sob o poder do governo de Assad e uma potencial justificativa para mais violações dos direitos humanos. Por último, as condições coercitivas de cada entrevista enfraquecem o valor das informações adquiridas.
Circunstâncias podem surgir em que a publicação de informação sobre prisioneiros e detentos pode ser benéficas aos seus interesses e aos do público. Por exemplo, as fotografias de 1992 de prisioneiros na cidade de Prijedor, na Bósnia e Herzegovina, chamaram a atenção do mundo para os campos de concentração no país e o sofrimento de seus encarcerados. Em agosto de 2012, o Exército Livre Sírio permitiu que o repórter do New York Times Brian Denton fotografasse um de seus prisioneiros, que o jornal descreveu como um membro “mentalmente danificado” da unidade paramilitar do governo, com evidentes machucados, aparentando ser o resultado de abuso por parte de seus captores. Existe uma diferença, entretanto, entre uma fotografia e um material em vídeo que identifique o prisioneiro e retrate as condições do detento, e uma entrevista que extraia informações do encarcerado pode ser falsa ou colocar o prisioneiro e outros em perigo. A fotografia pode salvar a vida de alguém. A entrevista pode constituir abuso. O princípio humano do Direito Internacional Humanitário pede diferentes julgamentos em diferentes situações, mas não permite exploração ou dano a pessoas protegidas.
Então, que critério deve ser usado para equilibrar o interesse público e as proteções asseguradas pelo Direito Internacional Humanitário? Um princípio de senso comum que pode ajudar os jornalistas a responder essa questão: quando é razoável acreditar que a divulgação da cara de um detento, sua identidade e qualquer outra informação pode ajudar em sua segurança e não acarretar sua exploração ou abuso? Para ser mais duro, jornalistas devem se perguntar: essa reportagem ajuda ou prejudica os direitos humanitários deste prisioneiro de guerra?
Confusão
Por contraste, em situações de coerção, a transmissão de entrevistas ou “confissões” produz confusão em vez de informação, ainda mais com a dificuldade de apuração na Síria. Por exemplo, ambos os jornalistas descritos nesse artigo sentiram a necessidade de se distanciar da credibilidade das declarações dos presos. Assim, os direitos dos presos podem ser mais importantes que a disseminação dessas entrevistas para o interesse público. Ainda mais, estas reportagens de grandes grupos de mídia podem encorajar grupos beligerantes a utilizar seus prisioneiros como uma espécie de propaganda.
A profissão de jornalista está consciente desses perigos. Em dezembro de 2012, a organização Repórteres sem Fronteiras divulgou uma declaração expressando preocupação com o destino da jornalista ucraniana Anhar Kpchneva, alegadamente refém de rebeldes na Síria. Jornalistas presos devem “ser tratados humanamente ou soltos”, disse a organização. Dois vídeos da jornalista em que ela “confessa” ter servido como intérprete para oficiais sírios e russos apareceram na internet. A Repórteres sem Fronteiras disse que estava “profundamente preocupada que, em ambos os vídeos, a jornalista parece estar falando sob pressão”. Jornalistas em zonas de conflitos merecem a mesma preocupação que os prisioneiros de guerra com que mantêm contato.
Os meios de comunicação deveriam dar vários passos para assegurar que detentos possuam seus direitos. Organizações jornalísticas podem assegurar conhecimento dos princípios do Direito Internacional Humanitário e instruir seus jornalistas sobre os direitos humanos. Jornalistas não deveriam concordar em serem vetores de exploração. E os veículos de imprensa devem incorporar o Direito Internacional Humanitário como princípio para a cobertura de conflitos.
Essas medidas podem reduzir o risco de que lados beligerantes explorem cativos e os usem como ferramentas de propaganda. Elas também ajudam jornalistas a equilibrar a liberdade de expressão e a proteção de prisioneiros de guerra.