Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Rio de Janeiro e o jornalismo popular

O Brasil de hoje não desconhece a importância de Roberto Marinho na configuração do sistema midiático que molda a realidade brasileira há mais de três décadas. A história, porém, é mais antiga, começa em 1911 quando Irineu Marinho funda o jornal A Noite.

A década de 10 do século 20 foi um momento de efervescência no Rio de Janeiro, capital de um Brasil que se modernizava. A cidade experimentava o novo modelo urbano decorrente das mudanças radicais do prefeito Pereira Passos entre 1903 e 1906. Os cortiços dos pobres foram derrubados para abrir espaço para uma cidade arejada, ventilada, “bonita”. Higienizada. Beleza que vinha da Europa, em especial de Paris. A principal mudança, dentre tantas, foi a criação da avenida Central, hoje avenida Rio Branco. Eram 1800 metros de comprimento com 33 metros de largura e um padrão para as fachadas.

A imprensa até então, grosso modo, operava apenas como instrumento de ação política, marcada pela vassalagem ainda oriunda dos áulicos dos tempos do Império. Imprensa centrada no copioso e gongórico “artigo de fundo”.

Este novo Rio de Janeiro pedia um novo jornalismo. Em 1911 surge A Noite, vespertino que vai romper com estas velhas fórmulas de jornais. Inova: estrutura-se como empresa que visava lucro, em boa medida inspirado no modelo americano cujos maiores exemplos eram o New York World de Joseph Pulitzer e oMorning Journal de William Randolph Hearst. A grande escala de vendas naturalmente atrairia publicidade e viabilizaria o negócio. Chegou a ultrapassar inacreditáveis 150 mil exemplares.

Capa dura

O Rio modernizado por Pereira Passos não perdeu seu povo e era para ele que o jornal se dirigia. A Noite dialogava com ruas, terreiros, rodas de quintais. Aliás, não à toa, um dos acionistas minoritários é João do Rio, o primeiro repórter brasileiro, também o primeiro cronista: quem antes saia à ruas em busca de boas histórias para contar? Audacioso, Irineu Marinho também criou a produtora de filmes Veritas, cuja obra mais conhecida é A quadrilha do Esqueleto.

Exemplo: em 1913 uma autoridade anuncia que não haverá perseguição ao jogo. Ousadia: Irineu Marinho coloca uma grande roleta em frente à redação. No dia seguinte, o jornal reverbera o burburinho: “O jogo é franco – uma roleta em pleno largo da Carioca”.

Em 1917 sai o primeiro disco brasileiro apresentado como samba intitulado Pelo telefone. A letra:

O chefe da polícia/ pelo telefone/ manda me avisar/ Que lá na Carioca/ tem uma roleta para se jogar…

O distanciamento da ação política não pode ser vista como omissão ou alheamento. Irineu Marinho será preso no governo Epitácio Pessoa e se protegerá num autoexílio durante o governo Artur Bernardes. Antes ainda, fora perseguido por Hermes da Fonseca. Neste autoexílio, é traído por um sócio e perde A Noite.

Inacreditável. Irineu desembarca no Brasil e 159 dias depois inaugura O Globo. Saúde frágil, morre 20 dias depois de criar este novo vespertino. Primogênito, Roberto Marinho herdou o jornal e o assumiu pouco depois com 24 anos de idade.

A autora, Maria Alice Rezende de Carvalho, historiadora e socióloga, afirma não tratar-se de biografia. Mas a vida de Irineu Marinho será o fio condutor da narrativa. Edição primorosa. Capa dura, papel perfeito para a obra e fontes que remetem ao jornalismo da época. Todas as fotos, reproduções de folhetos e páginas de jornais escolhidas a dedo e com legendas esclarecedoras. Todas as ilustrações são legendadas, o que mostra o esforço na qualidade da edição. Num bolso na parte interna da capa dura, uma reprodução fac-similar da edição de 3 de março de 1924 de A Noite.

Sem comparação

Num breve comentário na abertura do Observatório da Imprensa na TV, Alberto Dines sintetiza: “Uma festa para os olhos, banquete para a memória coletiva, acervo para a história do Rio e da imprensa brasileira. O livro Irineu Marinho – Imprensa e Cidade, de Maria Alice Rezende de Carvalho, é uma biografia, uma reportagem, um painel e um álbum de recortes dedicado ao fundador dos mais importantes vespertinos que já tivemos, A Noite e O Globo, e o artífice de um dos maiores grupos de mídia do planeta. Quando descendentes sabem lembrar os antepassados, a sociedade inteira é beneficiada”.

Sem comparações com o perfil que Pedro Bial fez de Roberto Marinho.

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[Victor Gentilli é jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]