Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que tantos problemas?

A discussão que está acontecendo por parte considerável do mundo sobre as charges dinamarquesas do profeta Maomé, publicadas originalmente em veículos da imprensa dinamarquesa, e que tem causado tanto problema em função da reação violenta dos muçulmanos, que consideraram ofensivas à religião islâmica, no fundo é hipócrita e falsa, apesar das aparências. Em quase todos os lugares do chamado mundo ‘ocidental’ – na realidade, são países capitalistas ou de economias de mercado desenvolvidas, com democracias representativas liberais ou não, mas que não necessariamente se encontram do lado ocidental do globo, tipo Japão, China, Austrália, Nova Zelândia, metade da Rússia etc. – a gritaria tem sido muito forte. Representantes da grande mídia, ‘jornalistas consagrados’, autoridades, intelectuais, gente de peso da sociedade dita democrática, literalmente, caíram de pau em todos os países e líderes muçulmanos que se atreveram a se manifestar contra a publicação das charges.

O colunista Jeff Jacoby, do Boston Globe, na matéria ‘Agora somos todos dinamarqueses’, publicada pelo jornalão paulistano Folha de S. Paulo no dia 11 de fevereiro, é um deles. Na função de defensor emérito das liberdades de opinião, da manifestação das idéias e, principalmente, da liberdade de imprensa mundo afora, incorpora-se integralmente na pele de todos ocidentais. ‘Hoje os censores podem estar combatendo algumas charges pouco engraçadas de Maomé, mas amanhã serão nossas palavras e idéias que eles tentarão por todos os meios silenciar. Gostemos disso ou não, agora somos todos dinamarqueses.’ Ele tem razão, mas não é exatamente isso que já está acontecendo em grande parte do mundo dito democrático, onde mentiras, manipulações e censura têm acontecido, com amplo e maciço apoio dos Estados, das elites políticas e econômicas, numa aliança orgânica e visceral com as grandes corporações da comunicação de massa?

Continuando,

Em todo o continente [europeu], quase duas dúzias de outros jornais já se uniram na defesa desse princípio. Enquanto clérigos islâmicos proclamam um ‘dia internacional da ira’ ou declaram que ‘a guerra começou’, importantes publicações da Noruega, França, Itália, Espanha, Holanda, Alemanha, Suíça, Hungria e República Tcheca reproduziram as charges dinamarquesas. No entanto não houve demonstração comparável de coragem nos EUA. Não devemos nos deixar enganar: esse assunto não vai desaparecer, como tampouco vai desaparecer a ameaça islamo-fascista. A liberdade de expressão que temos como algo garantido e certo está sofrendo forte ameaça e, se não for bravamente defendida, pode desaparecer.

A seu favor

Na mesma toada, mas por um angulo diferente, o articulista da Folha Contardo Galligaris, no texto ‘Carta aberta às elites religiosas muçulmanas’, publicado no dia 12 de fevereiro, procura individualizar a questão. Chama a atenção dos líderes muçulmanos para o que está acontecendo. Por ser psicanalista, Contardo, com sua boca torta pelo cachimbo, adverte aos líderes religiosos para que não incentivem e que não aceitem atitudes ‘radicais’ contrárias ao que Maomé teria ensinado a seus seguidores, quanto ao respeito às diferenças religiosas, culturais etc. Explicando, através da história da forte migração de muçulmanos para a Europa, nas últimas décadas, afirma que

(…) não digam que são traidores, vendidos ao sonho ocidental. Se os milhões de imigrantes muçulmanos que vivem na Europa fossem ‘vendidos’, eles estariam, hoje, solidamente integrados à população européia. Acontece o contrário, e não é apenas pela resistência das nações ocidentais. O fato é que o êxodo de populações muçulmanas à Europa inaugurou uma nova forma de emigração, especialmente trágica. Explico. Qualquer emigração é um movimento de idealização e de amor. Mesmo que procure apenas melhorias financeiras, o emigrante deposita seus sonhos no país que o hospedará. Ora, há uma tragédia que dura há décadas: a dolorosa divisão, na alma do emigrante muçulmano, entre a esperança que deposita no país para onde se muda e seu ódio mandado pela nova vida com a qual ele sonha. O conflito, caros amigos, talvez não seja entre islã e Ocidente. Talvez seja um conflito exasperado dentro da alma islâmica, entre a sedução do Ocidente e a fidelidade à cultura e à religião ancestral. Esse conflito não será resolvido por guerras ou terrores, nem por protestos nem por tratados. Ele só pode ser resolvido por vocês. Há momentos em que as elites culturais e religiosas podem decidir o destino de seus povos. Espero que não seja tarde, espero que a voz que chama do minarete ainda possa sarar o conflito da subjetividade muçulmana hodierna.

Como se o emigrante africano, asiático, muçulmano ou não, tivesse tido dos europeus uma acolhida digna, sem preconceito, racismo, violência, exploração, genocídio etc. Como se a cor da pele, os olhos amendoados ou puxados, o cabelo escuro, os costumes diferentes, a religião estranha não tivessem causado nos europeus comportamento de repulsa, de gueto. Afinal, em seus países de origem, dominados e explorados por centenas de anos por estes mesmos europeus, sofreram o mesmo comportamento, a mesma violência, exploração, preconceitos etc.! Por que seria diferente em pleno território europeu? Liberdade, fraternidade e igualdade são apenas para alguns. Os de fora, os estranhos que se ferrem…

A grande hipocrisia em toda essa discussão é que o ‘Ocidente’ está usando, estrategicamente a seu favor, essa esperada reação de parte considerável das lideranças islâmicas. O argumento que está sendo usado pelas lideranças ‘ocidentais’ com mais força e freqüência é a pretensa defesa da liberdade de imprensa, das liberdades de pensar, manifestar e agir que a democracia liberal burguesa retoricamente defende. O retórico é porque, em poucos momentos da história da democracia representativa no mundo ‘ocidental’, essas mesmas liberdades nunca estiveram tão ameaçadas, tão frágeis, tão censuradas como no momento e, ao mesmo tempo, tanto se falam delas, da necessidade de se fortalecerem, numa defesa esquisita, parcial, ‘torta’, que se pretende ser ampla, geral e irrestrita, mas não é.

De propósito?

Nada mais falso. Não existe mais imprensa livre, essa é a triste realidade do mundo moderno. A grande mídia, através das corporações que monopolizam os veículos de comunicação, com sua aliança orgânica com o poder – Estado burguês ou não –, faz o que quer, manipula informações, cria fatos, faz propaganda, campanhas políticas, apóia pessoas, candidatos, partidos, organizações, empresas, tudo sob o manto da defesa da liberdade de imprensa. A censura corre solta, só que de uma maneira mais sofisticada, disfarçada de várias formas, com os mais variados conteúdos, defendendo determinadas situações, suavizada pela propaganda & marketing. Não é mais aquela censura direta, violenta, com proibições explícitas tão comuns nas ditaduras – se bem que esta realidade ‘light’ só vale para os países mais adiantados. Os mais pobres continuam com o método violento e tradicional das ditaduras.

Cabe a questão: que moral tem a grande mídia mundial para criticar qualquer atitude islâmica se em seus próprios países a mídia continua mentindo, manipulando, criando fatos inexistentes, defendendo políticas imperialistas, de ocupação militar, como as que acontecem exatamente nos países árabes-muçulmanos? Tudo isso, toda essa farsa só tem um objetivo. O ouro negro, a exploração e a comercialização do petróleo.

Países do Primeiro Mundo, não importa de que lado do globo estejam, precisam desesperadamente do petróleo, ainda abundante e relativamente barato, mas em declínio, dos países do Oriente Médio e do Cáucaso. E para isso vale qualquer coisa. Quem pode afirmar que toda essa confusão não tenha sido preparada de propósito? Claro que as lideranças islâmicas reagiriam contra o que foi feito. Ainda mais no cenário atual de ocupação militar – Afeganistão e Iraque –, de extrema violência, com massacres, genocídios, execuções, corrupção generalizada, grande parte delas feitas pelas forças armadas americanas, inglesas, israelenses. Não é novidade para ninguém o que está acontecendo. Já aconteceu em outras ocasiões, por que então a surpresa, o falso moralismo, a hipócrita discussão que a grande mídia ‘ocidental’ está fazendo?

Mecanismos próprios

Em nome da luta contra o terrorismo, significativas parcelas das liberdades individuais estão sendo suprimidas das sociedades ditas democráticas. E muito pouco tem sido denunciado pela grande imprensa. Se a luta contra a censura nos países islâmicos é válida, por que isso não acontece nas sociedades ‘ocidentais’ com a mesma força e paixão? Sabe-se que a mídia americana e européia ajudaram na criação da falsa realidade de que estava havendo um massacre em Kosovo, na Sérvia, na Bósnia. Tudo mentira para justificar a ocupação militar da Otan na região e assim garantir o livre trânsito de petróleo e gás, oriundos do Cáucaso e região, para os EUA e Europa, basicamente.

A mídia americana covardemente bancou a ampliou as mentiras que a Casa Branca criou para a invasão e ocupação do Iraque. E agora, de novo, esta mesma mídia faz eco às denúncias contra o Irã, de que a nação islâmica estaria construindo bombas atômicas. E, convenientemente, silencia quanto aos armamentos atômicos que Israel, Paquistão e Índia possuem. Uns podem, outros não, é claro. Quem é amigo do rei, tudo bem, carta branca e venda nos olhos. Agora, os países do chamado ‘eixo do mal’ nada podem. Devem ficar na moita e calados, deixando que os outros decidam sobre eles, sobre o que possuem, sobre o seu futuro.

Enquanto isso, a maior potência do mundo cria seus próprios mecanismos para divulgar informações e somente aquelas que interessam ao poder americano. Como se fossem uma grande empresa de mídia, os EUA estão gastando milhões de dólares para conquistar corações, mentes e almas dos muçulmanos. Na matéria ‘Washington estabelece extensa operação para disseminar notícias boas a seu respeito em lugares hostis – EUA ampliam guerra de informações’, publicada por The New York Times e reproduzida pela Folha, também no dia 12 de fevereiro, lê-se o seguinte:

O centro de mídia em Fayeteville, Carolina do Norte, seria o orgulho de qualquer empresa global de comunicações. Em estúdios dos mais modernos, produtores preparam o misto diário de música e notícias para as estações de rádio do grupo, além de spots para emissoras de televisão amistosas. Redatores que preparam jornais e revistas para sair em Bagdá ou Cabul conversam entre si por teleconferência. Trailers contendo equipamentos de alta tecnologia estão estacionados do lado de fora, prontos para a próxima crise. O centro não faz parte de uma organização noticiosa, mas sim de uma operação militar. Os redatores e produtores são militares. A unidade de operações psicológicas sediada em Fort Bragg, com 1.200 profissionais, produz o que seus oficiais descrevem como ‘mensagens verdadeiras’ para dar apoio aos objetivos do governo americano, embora seu comandante reconheça que as matérias que produz são unilaterais e que o patrocínio americano delas é mantido em sigilo.

Na tentativa de contrabalançar o sentimento antiamericano onipresente no mundo muçulmano, a administração Bush vem conduzindo uma guerra da informação que é cara, ampla e muitas vezes oculta, segundo documentos e entrevistas com empresas contratadas e autoridades governamentais e militares. No Iraque e no Afeganistão, alvos da maioria dessas atividades, o setor militar americano opera jornais e estações de rádio, mas não revela as conexões americanas desses veículos. Estes produzem materiais jornalísticos que às vezes são creditados ao Centro Internacional de Informações, uma organização impossível de ser rastreada.

(…) A Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) ocasionalmente também mascara suas atividades. Ela financia cerca de 30 estações de rádio no Afeganistão, mas não informa os ouvintes desse fato. A agência já distribuiu no Iraque e no Afeganistão dezenas de milhares de aparelhos de áudio do tipo iPod que tocam mensagens cívicas prontas, mas a distribuição é feita através de uma empresa que promete ‘não deixar transparecer rastros dos EUA’. Para a administração Bush, transmitir sua mensagem é crucial. Mas é algo imensamente difícil, em vista da hostilidade aos EUA amplamente difundida no mundo muçulmano… Os defensores das campanhas de influência afirmam que estas são eticamente corretas e podem exercer um impacto positivo. ‘As operações psicológicas constituem uma parte essencial da guerra, mais ainda na era eletrônica’, ponderou o tenente-coronel Charles Krohn, ex-porta-voz do Exército e professor de jornalismo. ‘Se você vai invadir um país, derrubar seu governo e ocupar seu território, precisa informar a sua população o porquê disso. Isso requer um programa de comunicações bem pensado.’ (grifo do autor)

(…) Rendon dirige uma companhia de comunicações em Washington e, antes da Guerra do Afeganistão, ajudou a montar centros a partir dos quais os EUA podiam dar respostas rápidas em órgãos de imprensa estrangeiros a acusações do Taleban. O grupo Rendon tinha um histórico de trabalhos passados para o governo em regiões problemáticas do mundo. Nos anos 90 a CIA contratou Rendon para, secretamente, ajudar o nascente Congresso Nacional Iraquiano a lançar uma campanha de relações públicas contra Saddam Hussein. Ao mesmo tempo em que assessorava a Casa Branca, Rendon fechou com o Estado-Maior Conjunto um contrato de US$ 27,6 milhões para criar grupos de discussão de notícias e análise jornalística de organizações noticiosas como a rede Al Jazira.

Documentos do Pentágono dizem que as Forças Armadas americanas vêm buscando ampliar sua influência de mídia para além do Iraque, chegando aos países vizinhos, como Arábia Saudita, Síria e Jordânia. O esforço de mídia do Pentágono no Afeganistão começou pouco após a derrubada do Taleban. Num ambiente que antes era árido e parco em matéria de mídia, hoje operam 350 revistas e jornais e 68 TVs e estações de rádio. Nem todos são independentes. Os EUA vêm fornecendo dinheiro para subsidiar a mídia, além de formação para jornalistas e porta-vozes governamentais. Mas boa parte do papel dos EUA permanece escondido dos leitores e do público locais. O Exército americano publica no Afeganistão um jornal ‘irmão’, também intitulado ‘Paz’. Uma análise feita dos números do jornal revelou que ele não publicou más notícias. ‘Não temos obrigação de nos pautar pelos princípios jornalísticos da objetividade’, disse Summe, o especialista do Exército em operações psicológicas. ‘Contamos o lado americano da história a públicos-alvo aprovados’. Nem a estação de rádio nem o jornal revelam seus vínculos com as forças americanas.

Conversa para boi dormir

Diante deste quadro, onde o conceito de liberdade de imprensa é extremamente relativo, onde a censura adquiriu um novo status, onde a liberdade é limitada pelo poder de Estado e das grandes corporações, onde o medo ao terrorismo virou o grande lema que norteia comportamentos e atitudes, o pesadelo apontado por George Orwell em seu livro 1984 não só já começou como será muito mais sofisticado e aparentemente soft do que se possa imaginar.

A regra é a seguinte: para se viver no paraíso da sociedade de consumo, para se ter acesso às benesses e qualidade de vida, representadas pelas mercadorias e serviços oferecidos, e mesmo assim para uma pequena parcela da população mundial, o preço a ser pago são as liberdades, especialmente a de imprensa.

Se um outro mundo, uma outra sociedade, uma outra forma de se viver e produzir são necessários para o futuro da humanidade, uma outra mídia, uma outra imprensa, uma outra maneira de se comunicar, de divulgar informações, de manter e amplificar as liberdades de informação, imprensa, também. A imprensa de hoje faliu, está apodrecendo a olhos vistos. O que resta de mídia decente, ética, responsável socialmente deve-se fundamentalmente a alguns jornalistas, homens e mulheres, e a uns poucos veículos de imprensa que ainda mantêm alguma independência e dignidade. O resto, continua conversa para boi dormir.

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Jornalista