Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma voz crítica – e construtiva

Um segmento minúsculo da burritzia brasileira, turbinado pela Embaixada de Cuba em Brasília, deu à Veja (datada de 27/2) material de primeira para editorializar (“Veja editorializar”: passe o pleonasmo) uma defesa de Yoani Sánchez. Foi parar na capa: “A blogueira que assusta a tirania. Por que a ditadura cubana e seus seguidores no Brasil têm tanto pavor de Yoani Sánchez, a ponto de tentar calar sua voz à força”.

É um segmento desorientado, e parece ter deixado a revista igualmente perdida no tiroteio. A ditadura cubana não tem pavor de Yoani, uma ativista individual, que não pertence a nenhum dos movimentos surgidos em Miami e no país após a revolução. Movimentos que recrudesceram no contexto do “período especial”, quando o país comeu menos do que o pão que o diabo amassou.

Yoani é a primeira a dizer que quem mais promoveu sua imagem em Cuba foi Fidel Castro, ao fazê-la alvo de diatribes. Sua programada viagem ao Brasil não era segredo para ninguém, muito menos para o serviço secreto cubano. Se ela fosse a inimiga do regime que alguns imaginam, estaria presa, ou, simplesmente, ter-lhe-iam negado o passaporte.

Mais sugestivo do que imaginar Raúl Castro mandando infernizar as aparições públicas de Yoani é pensar na luta interna no governo cubano. Toda vez que tem mudança à vista, a burocracia, travestida ou não de pureza ideológica, faz o que pode para tirar o processo dos trilhos. Ou, no mínimo, para garantir espaço no período subsequente.

A proposta de Yoani é conciliação, diálogo, entendimento. Sempre foi. Antes de aproveitar uma mudança tecnológica que a repressão cubana não entendia direito – e possivelmente não entende até hoje –, fundou uma revista chamada Consenso.

Sem guerra civil

O jornalista e historiador Richard Gott termina seu livro Cuba, uma nova história (2006; edição original em 2004) com a hipótese de que Fidel, depois de ter desistido do socialismo, começou a olhar para um futuro sem ditadura, uma possibilidade alimentada pelo fato de que a revolução não descambou em lutas fratricidas. Nisso, o embargo americano e as tentativas de invadir a Ilha e matar Fidel ajudaram.

Durante o regime castrista, Cuba foi poupada da violência aberta em casa. Exportou soldados, revolucionários, instrutores, armas para dezenas de lugares na América Latina e na África, mas em seu solo, por um período inigualado em sua história, não houve conflito armado, embora tenha havido muita repressão, espionagem, medo, terror. Mas a guerra civil é pior do que tudo isso. O epílogo do livro de Gott ficou datado: os “jovens” mencionados como possíveis substitutos dos irmãos Castro no poder foram todos varridos, quiçá por inconfiáveis. Mas a tese faz sentido. Há um novo “jovem” designado.

O traço marcante de Cuba é ter-se livrado, no espaço de 100 anos, de três potências colonizadoras: Espanha, Estados Unidos e União Soviética. Existe um orgulho nacional. É uma das bases de sustentação do regime, ao lado de subsídios à população para sobreviver. Foi a retirada dos subsídios que moveu jovens egípcios a desafiar a ditadura de Mubarak. Os irmãos Castro sabem que em seu país não é preciso forçar muito a barra para a tampa da panela saltar longe.

Suplicy brilhou intensamente

No material da Veja, eriçado de adjetivos e advérbios, a “turba ignara” está adequadamente caracterizada como “patetas fantasiados de Che Guevara”. Nesse plano de baixarias retóricas, os antagonistas, Veja e manifestantes anti-Yoani, se entendem. Seria o que Proust chamou “consanguinidade de espíritos”, mais forte do que a “comunidade de opiniões”.

A reportagem faz uma correta homenagem à participação do senador Eduardo Suplicy no episódio da visita de Yoani ao Brasil. Nenhum gesto político e humano foi mais grandioso neste verão brasileiro.

A visita teria sido apenas uma sucessão preocupante de atos de força contra a palavra caso a mídia jornalística não tivesse dado à ativista a possibilidade de se expressar – mesmo em contexto algo hostil, como no Roda Vida da TV Cultura (25/2), onde alguns (algumas) jornalistas procuraram explorar mais seus (deles/delas) instintos de detetives de araque do que o potencial cultural, político, literário e comunicativo da entrevistada.

Fala como escreve

Quem tiver prestado atenção à maneira como Yoani fala entenderá uma das razões de sua proeminência. Fala como quem lê um texto, fala como escreve (infelizmente, muita gente escreve como fala). E é capaz de escrever com simplicidade, organização conceitual e riqueza de vocabulário. É uma leitora. Como dizia o velho cartaz da editora Civilização Brasileira na Rua Sete de Setembro: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.” Yoani lê o tempo todo.

No Brasil, pouca gente consegue falar assim, sem falsas vírgulas, sem cacos para atravessar a hesitação do pensamento. Antônio Carlos Villaça (1928-2005) foi uma dessas pessoas. Leonel Brizola (1922-2004), grande comunicador na televisão, usava “não é verdade?” o tempo todo para pontuar suas frases. Quem tiver curiosidade pode checar a oratória de Yoani assistindo a uma entrevista dela a Demétrio Magnoli na Globo News e comparando a fluidez dos discursos dos interlocutores.

A Época (25/2) fez algo melhor do que a Veja: deu a palavra a Yoani numa entrevista, mas as perguntas incluíram barretadas inquisitoriais aos donos de Cuba.

Yoani é boa frasista. Na TV Cultura disse preferir que suas palavras sejam manipuladas se a alternativa for o silêncio. Que não é suficientemente cínica para entrar na política convencional.

Filha do castrismo

Entre as explicações para o fenômeno Yoani é preciso apontar que ela é uma filha da Revolução (Reforma?) Cubana, no que esta teve de melhor (e de mais frustrante): a importância dada à educação, como a própria jornalista destacou no Roda Viva.

Não é mascarada. Apresenta-se de cara lavada, cabelos fora da moda, roupa singela. Fascinada pela informática, montou com peças disparatadas compradas no onipresente mercado negro seu primeiro computador. Estava pronta para a chegada das redes sociais.

Mais importante, talvez, do que tudo isso: Yoani não tem como perder tempo navegando na internet – em Cuba, para os comuns dos mortais, isso é muito caro. Então, circula pela cidade, ouve muito, pensa muito, escreve o necessário, usa uma hora de conexão por semana para programar vários tópicos sucessivos de seu blogue.

A observadora crítica, como muita gente em Cuba, tem vasto repertório e aprendeu a se virar. Chamá-la de agente da CIA é uma homenagem imerecida à agência americana, atribuindo-lhe um grau de sofisticação – e de inteligência – que ela jamais sonhou ter.

Yoani quer fazer política com P maiúsculo por meio de um jornal sério, capaz de botar o dedo nas feridas do cotidiano da Ilha, portador de alentada seção cultural, o que faria jus às melhores tradições do país. Nem sabe direito como isso será possível. Mas é otimista.