Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Para onde vai o jornalismo?

Não são poucos os artigos publicados neste Observatório, assinados pelos mais diferentes e credenciados articulistas, a tematizarem a respeito da formação do jornalista, bem como a discussão recorrente quanto à necessidade (ou não) de um curso específico para o exercício da atividade jornalística.

Assim é que, pelo montante já oferecido aos leitores, nenhuma contribuição singular, no tocante a tais questões, teria a somar. Contudo, considerando o contato, já de décadas, com estudantes de Comunicação, seja na condição de recém-chegados à graduação, seja no convívio em cursos de pós-graduação, sinto-me impelido a problematizar algo que parece, progressivamente, afligir a mente de ambos os grupos, em função do que eles próprios declaram, quando expostos e/ou convidados a externar suas percepções.

O fazer sem pensar

O tema a ocupar o presente artigo não é outro senão a crescente angústia sentida por boa parte dos estudantes ante um mundo que, paradoxalmente, fascina pela sua diversidade e amedronta, em razão de sua crescente complexidade. Em nenhuma outra área, a intensidade dramática dessa dualidade é vivida com maior teor, além de poucas outras à área de comunicação se igualarem.

O motivo é simples. É na esfera da comunicação que a densidade do mundo se mostra com maior ímpeto, porque é nela que o mundo, como acontecimento, encontra o terreno fértil e amplo para a visibilidade ou para a ocultação e ainda, por vezes, a simulação. A carga, portanto, absorvida pelo estudante e/ou profissional de comunicação é pesada, quer pela exigência de focar os dramas, quer pela intromissão de uma lógica perversa a ditar as fronteiras entre o permitido e o proibido.

É pela consciência clara acerca da natureza da própria função – em sua ampla dimensão, é das mais belas e grandiosas missões – que se faz indispensável o repensar quanto aos procedimentos adotados por universidades (tanto públicas quanto particulares) no que se refere à elaboração das grades curriculares. As alterações no elenco de disciplinas verificadas ao longo da última década na área de comunicação têm sido aberratórias. Constata-se um avanço indiscriminado de conteúdos tecnicistas, em detrimento de conhecimentos com os quais se pode promover a expansão do pensar e a emancipação do olhar crítico.

Inventou-se, no Brasil, que saber universitário significa campo de formação para ‘futuros operários’ a serem despejados num ‘mercado’ que os recolhe para a reprodução de ‘modelos’. Assim, infindável leque de disciplinas com os mais exóticos nomes promete formar (ou deformar) o profissional de comunicação. Qualquer grade curricular registra o ingresso abusivo de disciplinas nas quais em seus títulos figuram as palavras ‘técnica’ e ‘marketing’, entre outras.

Ao menor esboço de uma contra-argumentação – quando possibilidade há para tanto – surge o corporativo coro de vozes para autenticar e invocar a ‘demanda do mercado’. Enquanto o mundo, principalmente após a derrocada do bloco soviético, em fins dos anos 1980, e ao 11 de setembro de 2001, mergulha na espiral do horror imponderável e ilimitado, aqueles que deveriam ser efetivamente preparados para exercerem funções mais complexas e decisivas nas múltiplas frentes do sistema midiático têm a inteligência ativa desviada para a absorção de conteúdos pequenos e fúteis, sob o falso pretexto de uma ‘formação profissional’.

Tramas sofisticadas, em todos os níveis, costuram o cotidiano e realimentam a História. No entanto, saberes profundos são varridos do horizonte universitário, ou relegados a margens inexpressivas. A propósito, numa de suas últimas visitas ao Brasil, o teórico Hans Magnus Enzensberger ficou estarrecido ao constatar o que alunos de jornalismo estudavam em seus respectivos cursos e, obviamente, o que deixavam de absorver.

Proposições curriculares

A um futuro jornalista, seriam indispensáveis (ao longo de quatro anos), uma carga horária concentrada em disciplinas com o perfil de ‘Política Internacional’, ‘Filosofia’, ‘Economia Política’, ‘Teoria da Comunicação’, ‘História Moderna e Contemporânea’, ‘Jornalismo Comparado’, ‘Línguas’ (Português, Inglês, Francês e Espanhol). Em segundo plano, outras, a exemplo de ‘Sociologia da Comunicação’, ‘Semiologia/Semiótica’, ‘Teorias Políticas’, ‘Fundamentos de Psicanálise’, ‘Estética’, ‘Psicologia Social ou de Massa’, ‘Linguagem Cinematográfica’, ‘Linguagem e Televisão’, ‘Análise de Fenômenos de Massa’. Ao tempo sobrante, então, oferecer-se-iam disciplinas eminentemente técnicas, a título de ‘complementaridade funcional’.

É ingênua a discussão em torno da redefinição da mídia brasileira, quanto a padrões éticos e de qualidade, se, no processo de formação do futuro profissional, toda a estratégia de obliteração do conhecimento real é praticada. É desse ‘formato’ desfigurador que deriva o profundo mal-estar tanto de estudantes quanto dos novos profissionais. Falta-lhes o conhecimento necessário para a absorção subjetiva dos acontecimentos graves do mundo, bem como para administrar os conflitos oriundos de suas próprias vidas. Sem suporte – efetivamente intelectual –, não há como pensar e escrever sobre as sutilezas e as gravidades das ocorrências do mundo.

O padrão vigente bem se presta para matérias no estilo ‘caso Luma’ e equivalentes, ou seja, o pobre mundo do fait divers. O problema é que matérias dessa ordem podem ser midiáticas mas seguramente não são jornalísticas. Para elas, não são necessários jornalistas. Trata-se de ‘fofocas’ para serem escritas por ‘fofoqueiros’. E só.

A função social do jornalista

Não é difícil imaginar que os defensores da ‘formação tecnicista’ rebateriam as proposições aqui arroladas com o simplório conceito da ‘eficácia prática’, fundada no mais tosco pragmatismo, sob a alegação de que a maioria absorvida pelo ‘mercado’ é escalada para matérias cotidianas, destituídas de sofisticadas compreensões. Em sendo isso verdade, fica exposto com clareza o engodo do ‘saber universitário’. Se é assim, será mais honesto transformar o curso em ‘profissionalizante’, como extensão do nível secundário.

A questão, portanto, é outra: a destinação da universidade consiste em proporcionar um suporte de conhecimento com o qual o indivíduo se municie da ‘ferramenta’ a assegurar-lhe o desempenho futuro de seu ofício, aliado a saberes dos quais ele extrairá os fundamentos capazes de lhe permitir a autonomia crítica, cujo limite ultrapassa – e em muito – a própria fronteira da profissão.

Para a profissão de jornalista, as duas faces perfiladas nos parágrafos anteriores estão, na essência mesma da atividade, em regime de absoluta comunhão. Separá-las, representa fraturar o projeto de uma carreira, prejulgando que a trajetória do futuro jornalista está condenada a abordar o banal e o trivial. E mais: tendo o jornalista função representativa ativa no corpo societário, sua deformação amplia o arco da mediocrização social. A partir daí, instala-se o círculo vicioso, acarretando a multiplicação em série de um ‘gosto’ por tudo que é de fácil digestão.

Além do exposto, outro fator se acresce ao tema: é sabido que a maioria egressa dos cursos de Comunicação não encontra ofertas para a demanda exigida, o que se estende a outras áreas. Tal fato, portanto, mais ainda intensifica e reforça o argumento referente à qualificação da vida. O quadro de um desempregado ou frustrado em seu sonho é bem menos penoso para quem consegue fazer a ‘leitura’ conjuntural e estratégica. Quanto mais não seja, o saber amplo adquirido pode, numa emergência, abrir-lhe outras opções de emprego, dadas as potencialidades adquiridas ao longo de um curso que, não sendo arrastado para os valas da pequenez, simplesmente, sem pretensões maiores, expõe o mundo.

Que as comissões interessadas na questão pensem para além do imediato. Ainda há tempo para reversões…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro