O leitor de jornais que vive seu tempo há de estranhar que os assuntos da igreja católica ainda ocupem tanto espaço na mídia. O filósofo certamente terá objeto para muitas reflexões se dedicar alguma atenção ao fato de que um representante das seitas neopentecostais está para ser ungido presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. O antropólogo pode garimpar comportamentos instigantes nos rebanhos que se expressam, como ondas, atrás de notícias, boatos, imagens e simples opiniões postadas nos meios digitais.
No entanto, são ralas as possibilidades de os melhores entre os pensadores contemporâneos chegarem sequer perto de bem interpretar o mundo em que vivemos. Por essa razão, a pretensão de alguns desses observadores da vida de explicar a realidade a partir de suas escolhas de leitura soa ridiculamente arrogante: no fundo, quase todos partem de uma visão definida por uma teoria econômica.
É como se o ser humano, na sociedade ocidental, tivesse alcançado um grau de liberdade de expressão para o qual ainda não havia construído conteúdos – pode-se dizer muito, mas há pouco a ser dito.
Desconstruindo mitos
Já se constatou em outras ocasiões, neste Observatório, que a fragmentação do noticiário dificulta a construção, por parte da imprensa, de cenários amplos e profundos o suficiente para a compreensão da realidade contemporânea.
Não é que o mundo tenha se tornado mais complicado – o fato é que a maior disponibilidade de informações sobre tudo, ainda que as informações disponíveis sejam superficiais, cria um ambiente mais complexo. Como a comunicação condiciona a cultura, o resultado é a percepção de uma maior complexidade em todos os campos.
Por esse motivo, quando o leitor crítico se defronta com um texto simples, em meio à algaravia de lucubrações que nada explicam, é como um reencontro com o sentido da vida. Esse é o efeito da crônica do escritor Milton Hatoum publicada na edição de sexta-feira (1/3) do Estado de S.Paulo com o título “Um inseto sentimental”).
Trata de um desses episódios corriqueiros do verão, despojado de reflexões exóticas, referências eruditas ou diatribes moralistas, que nos remete de volta a certos valores esquecidos.
Por que uma crônica assim singela destoa do conteúdo que caracteriza os jornais no nosso tempo? Entre outras razões, porque reconhece, expõe e recoloca entre os valores contemporâneos a emoção – mesmo o sentimento movido pela descoberta de uma velha fotografia numa caixa de papelão.
Em quaisquer dos manuais de redação dos jornais brasileiros, esse seria um tema fora da pauta. Afinal, o jornalismo anda ocupado demais em fincar seus piquetes na areia movediça do mundo contemporâneo.
Como observa o médico e cientista britânico Patrick Dixon, o que se nos apresenta é um mundo cada vez mais fugaz, urbano, tribal, universal e radical, onde a ética deixa de ser a espinha dorsal da existência para se transformar em instrumento a serviço de crenças eventuais. As incertezas estimulam as crenças, que fazem o homem se voltar para o primitivo e alimentam o fundamentalismo. O conhecimento científico, em vez de produzir mais segurança, desconstrói antigos mitos sem colocar em seu lugar uma resposta satisfatória para as inquietações humanas.
Um tema exótico
A mídia atrai os olhos do mundo para o Vaticano, onde a renúncia de um pontífice escancara as mazelas de uma corte medieval, cujo poder ainda controla boa parcela da humanidade.
Por toda parte, as entidades criadas pelo homem para organizar a vida comum, se esfacelam em escândalos e práticas criminosas. No Brasil, um representante das forças que rejeitam alguns dos direitos fundamentais das pessoas se habilita a definir o futuro desses direitos.
Um incidente num jogo de futebol se transforma em questão de segurança transnacional e médicos são acusados de criar um tribunal privado onde se decide quem vai seguir respirando.
Como música de fundo de todas as opiniões, ainda se ouve a voz de Karl Marx, como um divisor de águas ideológico a assombrar o homem pós-moderno.
No meio de tudo isso, voa o inseto sentimental de Milton Hatoum.