Um dos nomes mais associados à criação do conceito de realidade virtual, o americano Jaron Lanier usa seu conhecimento de computação e prestígio internacional para fazer um alerta sobre um perigo potencial da tecnologia digital: o totalitarismo cibernético. Em seu livro mais recente, Bem-vindo ao Futuro, Lanier direciona suas baterias contra o que chama de subcultura tecnológica, cujos membros seriam verdadeiros “maoístas digitais”. São pessoas que gravitam em torno dos laboratórios do Vale do Silício, o centro de excelência em pesquisa computacional da costa oeste dos Estados Unidos, e da redação da revista Wired, entusiasta dos programas lá desenvolvidos.
Lanier critica o fato de essa tendência ter descartado a tradição humanista da ciência da computação. O design atual da web, diz o autor, não resultou de algo inevitável. No início dos anos 90, havia várias alternativas e a que acabou prevalecendo foi a que privilegiou a coletivização da informação, em detrimento da individualização. Essa a origem do totalitarismo que Lanier combate (o primeiro livro em que ele trata do assunto, One Half of a Manifesto, de 2000, não foi publicado no Brasil).
Em Bem-vindo ao Futuro, Lanier lapida o argumento: “Quando os desenvolvedores de tecnologias digitais projetam um programa que requer que você interaja com um computador como se ele fosse uma pessoa, eles pedem que você aceite, em algum canto do seu cérebro, que você também pode ser visto como se fosse um programa.” Esse é o foco do livro, cujo título original, mais direto ao ponto, poderia ser traduzido como Você Não É um Aplicativo. O autor tem um norte claro: “Não deveríamos buscar fazer o comportamento de manada ser o mais eficiente possível. Em vez disso, deveríamos buscar inspirar o fenômeno da inteligência individual.”
Ferramenta de manipulação
Lanier conhece bem a tribo dos totalitários. Convive com eles desde o início dos anos 80, quando, com pouco mais de vinte anos, começou a brilhar nesse universo. São seus alunos, mentores, amigos. Ele os trata como adversários que merecem respeito, mas de quem discorda profundamente. “As intenções da tribo totalitarista cibernética são boas”, diz o autor. “Eles estão simplesmente seguindo um caminho aberto no passado por freudianos e marxistas bem-intencionados – e não estou sendo irônico.”
O paralelo não é descabido. Para Lanier, Freud e Marx se basearam na racionalidade para enfrentar “as estranhas e manipuladoras fantasias das religiões. Mas ambos inventaram as próprias fantasias, que eram tão estranhas quanto as religiões”. Da mesma maneira, segundo Lanier, a cultura totalitarista cibernética é uma nova religião. “A designação é muito mais do que uma metáfora aproximada, já que inclui uma nova espécie de busca por uma vida após a morte.” Tal objetivo está muito longe do que ele queria. “Quando meus amigos e eu construímos as primeiras máquinas de realidade virtual, a ideia era fazer o mundo ser mais criativo, expressivo, empático e interessante. Não era para escapar do mundo.”
Lanier identifica a aura religiosa da web, por exemplo, no fato de a Wikipédia, por não ter uma voz identificável, gerar a ilusão de que é portadora de uma verdade absoluta, como a Bíblia, cuja autoria também é compartilhada e cumulativa. Nos dois casos, “o anonimato dos autores individuais serviu para criar uma atmosfera similar à de um oráculo para o documento”, transformando-o em ferramenta de manipulação.
Linguagem musical
O autor deplora a ideia, difundida pelos arautos do Vale do Silício, de que computadores cada vez mais velozes tornarão as pessoas obsoletas. Mas não foi o que aconteceu em 1997, quando um supercomputador, o Deep Blue, derrotou o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov? Não, responde Lanier. Foram as pessoas por trás da máquina, e não a máquina, “as responsáveis por essa realização”.
O viés anti-humano da computação, de acordo com Lanier, deriva de uma série de programas que, uma vez entronizados, dificilmente podem ser substituídos, porque toda uma indústria de aplicativos se desenvolve a partir deles. Ele compara a situação com uma linha de metrô do início do século passado que, útil quando foi planejada e construída, hoje limita a velocidade e o conforto dos trens. “Os padrões e sua inevitável falta de visão de futuro impuseram um problema para a computação”, afirma Lanier, referindo-se ao que chama de “aprisionamento tecnológico”.
A arte, por exemplo, expressão maior da humanidade, pode ser esmagada por essa defasagem. O autor, que também é músico de vanguarda, tendo se apresentado com Yoko Ono e Philip Glass, lamenta que o Midi, padrão ubíquo de representação musical, restrinja a riqueza da linguagem musical por não captar as nuances de um cantor ou saxofonista. Ele registra que, embora grandes esforços, inclusive comerciais, tenham sido realizados para reformar esse software e hardware, o padrão criou raiz tão funda que não pode ser descartado.
Figura demasiadamente humana
Lanier não se filia totalmente à tradição saxã de ensaístas. Se usa a experiência pessoal para tirar conclusões gerais, não tem a mesma elegância de argumentação de escritores americanos e ingleses que elevaram o ensaio à condição de literatura. Sua escrita é desordenada, com repetições, saltos e digressões, além de por vezes ser excessivamente técnica. Além disso, o livro, escrito em 2009, deveria ter sido atualizado. Numa passagem importante, porque fala do futuro da imprensa, o autor critica a política do New York Times de permitir o acesso ilimitado a seu site, quando desde 2011 o jornal adotou, com sucesso, o paywall, sistema de cobrança de parte do seu conteúdo disponível na internet. A informação, que poderia pelo menos constar de uma nota de rodapé, desautoriza a conclusão de que aquele seria um caso de síndrome de Estocolmo jornalística.
O livro, de qualquer maneira, vale pelos muitos insights, pela tentativa de pensar na contracorrente e pelo exercício de ceticismo – mesmo quando o ceticismo parece exagerado. Afinal, a tão criticada web abriga vários vídeos do próprio Lanier, uma figura que, tocando um antigo órgão de sopro enquanto balança os loiros cabelos rastafári que chegam à cintura, não deixa de ser demasiadamente humana.
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[Oscar Pilagallo é jornalista e autor de História da Imprensa Paulista (Três Estrelas) e A Aventura do Dinheiro (Publifolha)]