Talvez a mais consagrada virtude do constitucionalismo moderno, e responsável por sua afirmação após um nebuloso período de guerras santas, tenha sido o direito à liberdade religiosa. A pretensão de convivência pacífica, quando a tradição ou a fé não conseguiram mais manter a unidade do mundo ocidental, buscou no Direito a solução para a coexistência de diversas concepções sobre a relação dos homens com Deus, mesmo diante das radicais distinções de crença e da impossibilidade de sua representação em uma única instituição, seja a Igreja ou o Reino.
Se a Constituição em sentido moderno é ao mesmo tempo criação e consequência dessa ruptura do mundo da consciência em suas dimensões interior (espiritual) e o exterior (temporal), a sua estabilização normativa, como uma espécie de nova “religião civil”, dependeu em grande medida das condições de sua aceitação por todos os integrantes dessa comunidade, considerando, como faz o historiador alemão Koselleck [KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 30] que a “consciência desprovida de amparo externo degenera em fetiche de uma justiça em causa própria”, e o arbítrio revestido de intolerância seria a causa da hobbesiana guerra de todos contra todos, de modo que só a confiança no Direito e a liberdade para as ideias que odiamos seriam capazes de fundar uma ordem legitimada pelo pluralismo.
Essa não é, contudo, uma questão estanque. A verificação de permanência das exigências de legitimação plural das democracias constitucionais é recobrada a cada vez que o poder se manifesta, e se esse poder pretende manter as mesmas condições gerais de sua aceitabilidade pelos integrantes da comunidade política não pode substituir a confiança na ordem e a liberdade para as ideias odiadas, mitos fundadores da nossa “religião civil”, pela preferência institucionalizada de um credo que assume a força conferida pela ordem para perseguir as crenças e modos de vida radicalmente contrários.
Descendentes “amaldiçoados”
Esse não é um exercício fácil, mas o resgate dessas lições parece sempre muito salutar toda vez que a aproximação entre um grupo religioso e a dimensão institucional da política se apresenta na esfera pública, como agora.
A notícia de que o pastor Marcos Feliciano será o novo presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados levanta mais do que uma oportunidade para a defesa de grupos historicamente oprimidos no Brasil. Ela clama pelo dever dos que têm na tolerância um valor caro ao constitucionalismo, de se apresentar contra a ocupação seletiva dessa instância da representação parlamentar por um setor reconhecidamente contrário à luta de minorias a que o Estado deve de tratar sob circunstâncias de igual respeito e consideração.
Como notícia do Estado de S. Paulo de quinta-feira (28/2), o deputado Marcos Feliciano provocou grande polêmica no ano de 2011, ao publicar em seu Twitter que o amor entre pessoas do mesmo sexo levava “ao ódio, ao crime e à rejeição”e que os descendentes de africanos seriam “amaldiçoados”.
A ridicularização pública
A escolha resulta de acordo de lideranças entre o Partido Social Cristão e o PT, que deixa a presidência da CDHM sob o comando da chamada “bancada evangélica”, cuja atuação tem se notabilizado pela defesa de posições fundadas na própria moral religiosa em temas como a descriminalização do aborto, a união civil homoafetiva, o uso de células-tronco embrionárias, novas técnicas de reprodução e direitos sexuais, entre outros que cercam a intrincada relação entre política, moral e religião.
Não se está aqui em busca de qualquer consenso supostamente adequado para tratar de questões de legitimação ou não da bancada religiosa no Congresso Nacional, inclusive porque se um dos fundamentos da ordem é o pluralismo, a formação da vontade no processo legislativo deve se manter aberta a mais variada gama de argumentos.
No mesmo sentido, não constitui o foco da questão a liberdade de expressão do parlamentar em manifestar posições de foro íntimo acerca de suas convicções em relação aos homossexuais e afrodescendentes no seu Twitter. Aqui o ônus da exposição devem recair exclusivamente sobre o próprio deputado, afinal a sua manifestação individual de desdém para com gays e negros pode significar apenas que estes (gays e negros) toleram ideias que odeiam: a homofobia e o racismo, sujeitando-se o congressista à ridicularização pública, como ocorreu.
Preferências religiosas
Situação distinta ocorre quando o deputado se encontra na iminência de assumir a presidência de uma comissão parlamentar, que tem como função investigar denúncias de violação aos direitos humanos e cuidar de assuntos referentes às minorias étnicas e sociais, quando o seu histórico pessoal indica posições diametralmente contrárias a qualquer significação dos mesmos direitos a que a instituição (Câmara dos Deputados) tem a missão de proteger.
No contexto de intensificação das denúncias de intolerância religiosa, que cresceram 626% no ano de 2012 (ver aqui), principalmente as praticadas contra cultos afrodescendentes como a umbanda e o candomblé, inclusive por agentes do poder público, além do aumento do índice de crimes praticados contra a população LGBT [o Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil, divulgado pela SDH, informou que, de janeiro a dezembro do ano passado, 6.809 violações de direitos humanos foram relatadas ao Disque 100, à Central de Atendimento à Mulher e à Ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a secretaria, tais violações envolveram 1.713 pessoas, o que deu uma média de 3,97 violações por vítima. Só o Disque 100 recebeu 4.614 denúncias de homofobia em 2011; ver aquie aqui], a indicação do pastor Marcos Feliciano ao posto de presidente da CDHM da Câmara não só contraria a ideia de tolerância para com a diversidade de visões de mundo existentes na sociedade, mas particularmente contribui para o enfraquecimento da confiança de que a ordem não servirá a preferências religiosas em detrimento da liberdade de todos, a não ser que seja possível reduzir essa liberdade apenas às ideias que amamos.
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[Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho é doutorando em Direito]