“Despeço-me hoje de si, caro leitor do PÚBLICO, com a sensação de conhecer melhor quem está desse lado, por trás dos milhares de mensagens que recebi, li e analisei ao longo de três anos nesta função de provedor que agora chega ao fim, e que procurei entender — bem ou mal, não me cabe julgar — como sendo a de defensor dos seus interesses e direitos.
O retrato que de si me ficou — de si que me interpelou ou através de mim interpelou a redacção do PÚBLICO, reclamando, protestando, às vezes elogiando ou apresentando sugestões — é o de uma figura múltipla, feita das opiniões e interesses diversos de gente diversa, mas com traços comuns que compõem uma imagem coerente: a de um leitor culto e exigente, que aprecia o rigor, a isenção e a profundidade das notícias, que valoriza a qualidade da informação e da opinião, que é pouco tolerante face a erros e falhas profissionais. E que está preocupado com o futuro do jornal que escolheu.
Na hora do balanço recordo, caro leitor participativo, o essencial do que me disse. Disse-me, em primeiro lugar, que quer ser mais ouvido. Quer ver respondidas as suas dúvidas e as suas críticas e gostaria que as suas próprias opiniões pudessem ser mais vezes acolhidas e partilhadas com a comunidade de leitores. Desagrada-lhe que as suas chamadas de atenção, alertando para erros ou omissões nas notícias, pareçam muitas vezes cair em saco roto. Terá notado progressos neste domínio, nomeadamente na edição para a Internet, mas sente que ao apreço que lhe é devido como comprador, assinante ou autor do clique que gerou mais um algarismo na conta das páginas consultadas na rede, nem sempre corresponde um verdadeiro diálogo.
Disse-me que valoriza notícias completas e equilibradas, que tenham por objectivo dar-lhe a conhecer os factos (e o seu contexto), e lhe permitam formar o seu próprio julgamento, sem contrabando de opiniões à mistura, sobre o conteúdo das informações divulgadas. Que aprecia, concordando ou não com o que lê, o espaço que o PÚBLICO dedica à opinião qualificada, mas não quer ver a opinião a invadir a mancha informativa. Que estima o valor acrescentado do jornalismo interpretativo e analítico, sem o qual lhe faltariam elementos para compreender melhor temas e realidades que conhece menos bem, mas exige que a interpretação seja clara, argumentada e informada por factos devidamente comprovados e contextualizados. Quer, em suma, que o tratem como o cidadão que é, e que respeitem a sua inteligência.
Disse-me que nem sempre vê estes valores assumidos de forma exemplar nas páginas impressas ou virtuais do seu jornal. Que encontra nele notícias e títulos que considera tendenciosos. Esse é um plano em que por vezes discordei de si, por julgar que o alegado enviesamento não existira, e que a matéria publicada não envolvia quebra das regras profissionais e éticas a que o jornal se obriga, explicando-se provavelmente a crítica pelas suas próprias preferências e convicções (políticas, ideológicas e outras, todos as temos), que não terá visto reflectidas como desejaria numa opção editorial independente e jornalisticamente justificada. Outras vezes, como recordará, concordei consigo, sobretudo no caso de títulos que podiam ser vistos como enganosos face à própria notícia para que remetiam.
Deu-me conta, em muitas centenas de mensagens, do incómodo e da indignação com que vê a multiplicação de atentados à língua portuguesa (erros ortográficos, pontapés na gramática, excesso de estrangeirismos) e a outras línguas (vocábulos usados ou grafados de forma imprópria, traduções deficientes) em textos publicados no jornal impresso e, mais ainda, na edição electrónica. Não posso estar mais de acordo consigo. A qualidade da escrita no PÚBLICO tem vindo a decair de forma alarmante, e creio que a aparente incapacidade para contrariar esse percurso descendente só pode explicar-se por erro de apreciação dos seus responsáveis sobre o que ele representa de falta de respeito para com os seus direitos de leitor.
Obrigou-me a reflectir sobre um rol significativo de questões de natureza ética e deontológica, suscitadas por trabalhos publicados, e nem todas fáceis de apreciar, por envolverem com frequência escolhas dilemáticas entre valores em confronto — e sei que é também do maior ou menor acerto de tais escolhas ao longo do tempo que depende a sua confiança como leitor.
Dessas questões nasceu a maioria dos textos que aqui assinei. Alguns abordaram situações pontuais, que — mesmo nos casos em que julguei as queixas pertinentes ou dignas de reflexão — não correspondem a comportamentos característicos deste jornal, valendo sobretudo como chamadas de atenção. Outros, porém, apontaram procedimentos criticáveis e preocupantes que tendem a repetir-se, exigindo debate e correcção. Sem me alongar, diria que estão nesse caso, por exemplo, o recurso excessivo a fontes anónimas, a atribuição de opiniões a pessoas não identificadas e a insuficiente verificação atempada de notícias de origem exterior à redacção do PÚBLICO veiculadas pela edição na Internet.
Invocando os seus interesses e expectativas pessoais, falou-me ainda, caro leitor, das áreas a que gostaria que o jornal desse maior atenção. Foram muitas as sugestões, e nem sempre praticáveis ou compatíveis entre si. Escolhi, por isso, trazer aqui apenas duas recomendações, que me parecem essenciais para a consolidação da imagem do PÚBLICO como jornal de referência.
A primeira, justificada pela tradicional opacidade dos vários poderes que condicionam a nossa vida colectiva, e pela crescente importância cívica do seu escrutínio: deve ser atribuída ao jornalismo de investigação uma prioridade editorial que hoje não se reflecte nestas páginas. Falo do trabalho de investigação original, independente, minucioso, eticamente sustentado e determinado pelo interesse público, não dos recados e das suspeições ou acusações inconsequentes e não verificadas que por aí deturpam a nobreza desse género jornalístico para gáudio de todos os populismos.
A segunda, igualmente determinada pelo tempo que vivemos: o PÚBLICO deveria investir muito mais na informação sobre a Europa, a política europeia, as tendências e conflitos que percorrem a União e os seus Estados membros. Sem esquecer que já há muito a qualidade do acompanhamento informativo das instituições europeias é uma singularidade deste jornal na nossa imprensa diária, creio que a incontornável ‘europeização da política’ a que Teresa de Sousa se referia há dias nestas páginas reclama uma atenção editorial mais forte e mais próxima. Não teremos vida democrática digna desse nome sem uma informação mais detalhada e continuada sobre os debates europeus que hoje verdadeiramente nos condicionam, e sem escrutínio permanente da actividade de quem representa os cidadãos da Europa na União, por democraticamente deficiente que seja ainda, como é, a natureza dessa representação.
Nem todas as ideias para um PÚBLICO melhor serão concretizáveis, embora algumas possam depender apenas de um debate consequente sobre prioridades editoriais. Como bem sabe, caro leitor, o primeiro problema que este jornal enfrenta é o da sua sustentabilidade financeira. Medidas recentes, como o afastamento de tantos profissionais competentes, não poderiam deixar de afectar a qualidade da sua redacção, e indicam que o esforço de sobrevivência condicionará qualquer estratégia editorial.
Recordo-lhe por isso o que tantas vezes me confidenciou entre críticas a algo que lhe desagradara: que o PÚBLICO — na expressão a que tantas vezes recorreu — ‘é apesar de tudo’ o diário da sua preferência, aquele com que mais se identifica, e cuja falta mais afectaria o seu quotidiano de cidadão informado. Eu, que a partir de hoje sou também o leitor a que aqui simbolicamente me dirijo, subscrevo e acrescento: tal perda diminuiria de modo significativo — sim, ‘apesar de tudo’ — a qualidade do espaço público português. Se lhe falo disto, é porque poderá chegar o tempo de nos perguntarmos o que poderemos também nós, leitores, fazer pela continuidade deste projecto informativo.
A confiança dos leitores num jornal obriga à contrapartida da maior transparência nas explicações que lhes são devidas. A função mediadora dos jornalistas como escrutinadores dos poderes (de todos os poderes) implica que estes sejam os primeiros a aceitar ver escrutinado o seu trabalho. Como seu provedor, caro leitor, considerei prioritário comunicar-lhe tudo o que pude apurar, em cada caso, sobre o processo de produção de uma notícia que lhe tenha suscitado dúvidas ou críticas. Devo hoje dizer-lhe que só o pude fazer com a cooperação activa da redacção do jornal.
Contrariamente a ideias feitas sobre os profissionais deste ofício, encontrei nos jornalistas do PÚBLICO (as muito raras excepções só confirmam a regra) uma grande disponibilidade para esta forma de auto-regulação ética e profissional, uma compreensão genuína da importância da reflexão e do esclarecimento sobre as queixas apresentadas pelos leitores. É um facto que justifica um olhar optimista sobre o futuro do jornal e que irá certamente ajudar — como me ajudou a mim — quem, com outras perspectivas e experiências, me suceda neste cargo.
Feitas as despedidas e agradecendo toda a sua atenção participante e crítica, permita, caro leitor, que aproveite as linhas que me restam para agradecer também, à administração e à direcção do PÚBLICO, a confiança que em mim depositaram e o modo como respeitaram a absoluta independência do meu trabalho.”