Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A prisão do fotógrafo

Foi no Dia do Repórter, 16 de fevereiro, quinta-feira. Parecia uma manifestação de improviso, feita de qualquer jeito, às pressas. No começo, apenas alguns gatos pingados. Depois, aos poucos, veio vindo mais gente e os gritos foram aumentando. O ‘coro’, mesmo afinado, parecia fora de moda. As palavras de ordem eram contra a ditadura, contra a censura e pela liberdade de expressão. Só faltou o ‘povo unido, jamais será vencido’, mas essa, por sorte, eles não cantaram. Quem gritava não era o pessoal de 68 – que não existe mais faz tempo –, mas uma turma nascida com décadas de atraso. Eram quase meninos, muitos adolescentes, e estavam em frente à sede da Polícia Civil, bem no centro de Florianópolis.

Apesar da ingenuidade dos gritos, aquela garotada contagiou as pessoas que passavam. Alguns bem velhos, outros nem tanto, ficaram ali, ao lado deles, como que lembrando um tempo em que se acreditava em coisas diferentes dessas que se vêem e se vivem hoje em dia. E eu também fiquei, ouvindo… Só faltou alguém com o violão para tocar Caminhando do Vandré ou Roda Viva do Chico.

No meio dos gritos e discursos eu soube o que acontecera. Horas antes, uns 30 estudantes, não mais que isso, faziam panfletagem em frente ao Terminal Urbano. Era um protesto organizado pela Frente Tarifa Única Sim, Aumento Não contra as novas regras estabelecidas pela Prefeitura, de pagamento do transporte público. Segundo essa Frente, o novo sistema beneficia 30% da população e prejudica o resto. E os estudantes protestavam, como todas as testemunhas comprovam, inclusive a própria polícia, de maneira pacífica.

Às escuras, em surdina

Então, surgidos do nada, 10 homens vestidos de preto, roubaram – a socos e pontapés – os panfletos dos manifestantes. Não satisfeitos, ainda destruíram as faixas e o equipamento de som que estavam sendo utilizados. Quem eram esses capangas? Ninguém sabe ao certo. Só se sabe que eram muito fortes, altos e violentos. Caricaturas de ‘pitboys’, movidos por hormônios, daqueles que se usa para engordar o gado. ‘Pareciam ter sido escolhidos nas academias, de tão fortes’, relatou o estudante de Jornalismo Daniel Guimarães. Suspeita-se que alguns deles sejam seguranças particulares que trabalham em bingos e centros comerciais da capital.

A reação das vítimas foi rápida: chamaram a polícia. E os militares, como que por acaso, já estavam ali, em grande número. Chegaram em cima do laço, eficientes. Marcelo Pomar, integrante do Movimento Passe Livre, exigiu que a PM tomasse uma atitude. E o que aconteceu? O que fez a Polícia Militar de Santa Catarina? Deu cobertura aos capangas e partiu para cima dos estudantes. Marcelo Pomar foi preso. Alegação: incitação ao crime. O fotógrafo do Diário Catarinense, jornal do grupo RBS, registrava a confusão. Um policial lhe exigiu a câmera. Ele, lógico, não entregou. ‘Não pode registrar’, esbravejou o soldado. Um outro gritou: ‘Não pode tirar foto, negro veado’. Ainda assim o fotógrafo seguiu em frente. Foi preso e espancado. Alegação: desacato à autoridade.

Esta é uma velha história: o que é ilegal deve ser feito às escuras, em surdina. Nada de testemunhas, nem testemunhos, nada de fotos. Nenhum registro. Esse, como se sabe, é trabalho de rotina do poder, agora como antes. E o trabalho dos bons repórteres é o do romper o silêncio e denunciar, agora como antes.

Mentira curta

Em seguida, os agressores dispersaram-se pelo centro e a polícia nada fez. Pedi para que várias testemunhas que estavam ali comigo, em frente àquela delegacia, me contassem o que acontecera horas antes. E todos relataram essa mesma história, com perplexidade, tristeza e indignação. Mas o pior ainda estava por vir.

De repente, lá de dentro da delegacia, ouviu-se um grito. Subi as escadas, correndo. A porta de vidro estava fechada, mas a discussão era de tal forma violenta que foi possível ouvir: ‘Tu és um filho da puta’, gritou o policial civil, arma na cintura, ao advogado do Movimento do Passe Livre. A vereadora Ângela Albino, do PCdoB, no meio da confusão, tentou acalmar os ânimos e acabou sendo empurrada, com violência, por outro policial. Motivo: os policiais insistiam na versão de que nem o líder estudantil, nem o fotógrafo, estariam detidos naquele local. E, por isso, se recusavam a dar qualquer informação.

O problema é que a chegada dos dois foi acompanhada por dezenas de pessoas, de modo que a mentira não durou muito tempo. O estranho é que a polícia catarinense não se tenha acanhado com esse tipo de ação, depois do que aconteceu em junho do ano passado na capital. Durante três semanas, a polícia reprimiu, com extrema brutalidade, a manifestação dos estudantes contra o aumento das passagens de ônibus. Uma das cenas da barbárie praticada pelos ‘homens da lei’ foi gravada pelo cinegrafista Alex Antunes, de uma pequena TV comunitária: um policial militar aplica um golpe de caratê num garoto de 22 anos, o imobiliza e o espanca com socos no peito e na cabeça. O estudante fica desacordado. A cena correu o Brasil e recebeu o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos.

Sem sentido e sem respostas

Mesmo com toda essa repercussão negativa, a PM continua fazendo seu ‘trabalho’, de maneira sistemática, parecendo cada vez mais evidente que se trata de uma bem arquitetada política de criminalização dos movimentos sociais. Senão, vejamos: a PM vem agindo de forma semelhante com os integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) com a cumplicidade vergonhosa do Poder Judiciário e da mídia local. O caso do MAB – relatado pela repórter Juliana Kroeger na edição 101 da revista Caros Amigos – é tão absurdo e injusto que Hina Jilani, representante especial do Secretário Geral para Defesa dos Direitos Humanos da ONU, veio ao Brasil para verificar o que estava acontecendo. O tratamento dado aos militantes do MST segue a mesma linha, a ponto de um policial admitir, na TV, que ‘os cães da PM são treinados para pegar sem-terra’. E, mesmo assim, a polícia catarinense não se constrange e avança, pisando sobre todas as leis, porque ela é a lei. Ela está acima da lei e quem desobedecer será chamado de ‘negro veado’, e será espancado e será preso. Tempos estranhos esses.

Por volta das oito da noite presenciei a saída do fotógrafo e do estudante da prisão. Tive uma surpresa: o fotógrafo detido era Cláudio Silva, profissional experiente e respeitado. Sarará, como é conhecido, tem uma dúzia de prêmios nas costas e uma infinidade de grandes registros, alguns históricos e definitivos. Eu vi seu rosto marcado pelas pancadas.

No dia seguinte, abro o Diário Catarinense e me deparo com uma matéria que muito bem poderia ter sido assinada por Ronaldo Benedetti, secretário de Segurança Pública do estado. Dizia a ‘reportagem’, entre outras coisas, que Cláudio Silva, o fotógrafo, estaria, pelo teste que foi obrigado a fazer, embriagado. E, de fato, Cláudio, havia tomado uma cerveja no Mercado Público, em frente ao Terminal, como fazemos todos (ou quase todos) os jornalistas. O Mercado é uma espécie de ponto de encontro, da nova e velha guarda. Enfim, pelo que consta, isso é permitido por lei. Cláudio não foi preso dirigindo. Ele estava fotografando e um copo de cerveja não faz tão mal assim. Mas e a história dos agressores e do acobertamento da polícia? Quem eram os capangas e estavam a mando de quem? Nada. O texto era um emaranhado de frases mal escritas, sem sentido e sem respostas.

Barras e chumbos

Na sexta-feira, recebo a notícia: Cláudio Silva havia sido demitido (‘por justa causa’) da RBS. Dias depois, encontro um amigo que trabalha no jornal e lhe pergunto como anda o clima na redação. ‘Tudo em paz’, ele responde. Tudo em paz? Mas não houve protestos, manifestos contra a demissão do Cláudio, um dos mais antigos funcionários do jornal? ‘Que nada rapaz, está todo mundo preocupado com o carnaval e com o bloco dos jornalistas’. Bloco? Qual bloco? ‘O bloco ‘Pauta que Pariu’’. Infelizmente, não era uma piada.

Lembro esse episódio e vou cantarolando baixinho a velha-nova, tão antiga e tão atual, música do Chico: ‘Não posso fazer serenata / a roda de samba acabou / a gente toma iniciativa / viola na rua a cantar / mas eis que chega a roda-viva / e carrega a viola pra lá.’ Com a Roda-Viva, penso numa época – que não vivi – na qual jornalistas tinham uma coisa meio heróica e idealista, quase boba, de levar a sério a profissão. Eram quase todos muito pobres e mal pagos, mas movidos por aquela coisa de denunciar para transformar, um tempo de gente com coragem, com verve e paixão – essa coisa que os integrantes do Movimento Passe Livre, do MAB e do MST têm e por isso, só por isso, causam tanto medo aos donos do poder. Era um tempo onde se uniam ética, talento e (por que não?) uma boa dose de loucura para agüentar todas as barras e chumbos do dia-a-dia.

Mas ia se levando porque as redações eram formadas por gente com competência e integridade; qualidades que não faltam a Cláudio Silva, repórter fotográfico preso injustamente, espancado e, no final das contas, ‘demitido por justa causa’.

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Jornalista, correspondente da revista Caros Amigos; cobriu as manifestações contra a globalização em Gênova, na Itália, o conflito na Palestina e a Guerra do Iraque