Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O mito aqui e agora



Ineptire est juris gentium – a inépcia é um direito de todos. (Arthur Schopenhauer)


Em sua obra Mito e realidade, Perspectiva, 2004, Mircea Eliade afirma que a historiografia desempenha para o homem moderno o mesmo que a mitologia desempenhou para o primitivo. Nas palavras do autor:




Durante milênios, o homem trabalhou ritualmente e pensou miticamente nas analogias entre o macrocosmo e o microcosmo. Era uma das possibilidades de se ‘abrir’ para o Mundo e de participar da sacralidade do Cosmo. Desde a Renascença, quando se provou que o Universo era infinito, essa dimensão cósmica que o homem acrescentava ritualmente à sua existência nos é negada. Seria normal que o homem moderno, caído sob o domínio do Tempo e obsedado por sua própria historicidade, procurasse ‘abrir-se’ para o Mundo, adquirindo uma nova dimensão das profundezas temporais. Inconscientemente, ele se defende da pressão da História contemporânea através de uma anamnesis historiográfrica…


O poder de sedução da internet parece estar ligado às possibilidades ilimitadas que ela cria para o cidadão comum interferir no mundo sem sair de sua própria casa. A partir de seu computador pessoal, o internauta pode fundar um partido, iniciar uma campanha contra ou a favor de uma decisão política ou judicial, manter um blog, comentar uma matéria jornalística, reclamar diretamente aos órgãos públicos municipais, estaduais e federais em razão de suas ações ou omissões, apropriar-se de informações privilegiadas ou divulgá-las para prejudicar um desafeto ou beneficiar uma causa que defende. Os mais ousados estão em condições de elaborar projetos de lei e enviá-los à Assembléia Legislativa ou à Câmara dos Deputados e iniciar campanhas de mensagens a deputados apoiando suas propostas.


Ninguém duvida de que a internet já mudou completamente as relações entre os cidadãos, entre estes e o Estado e principalmente entre os ocupantes de cargos públicos eletivos e os cidadãos que dizem representar.


Anacrônico


Apesar de seus benefícios, a internet tem causado desconforto numa categoria de pessoas: os especialistas. Desde o século 19, o Ocidente atribuiu um valor excessivo aos especialistas. Faculdades foram criadas para formá-los, leis foram aprovadas para regulamentar suas profissões e, principalmente, proibir seu exercício por leigos. OABs, conselhos federais e toda uma gama de instituições públicas ou quase públicas foram criadas para defender e proteger os especialistas.


Dentre todos os especialistas os que mais sofreram o impacto da internet foram os jornalistas. Não são poucas as vozes que vociferam contra a proliferação de blogs, denunciam o mau jornalismo praticado na blogosfera ou lamentam o tempo em que os jornais eram vendidos em bancas e os jornalistas tinham o privilégio de definir o que era e o que não era notícia, bem como a ênfase a lhe dar.


Na internet todos somos leitores e jornalistas, mas alguns jornalistas querem que continuemos apenas leitores. Isto não é só infantil, é anacrônico. Assim como a historiografia desempenhou a partir da Renascença o mesmo papel que a mitologia na Antiguidade, a internet tem um papel mítico a desempenhar.


Identidades


Através da internet todas as habilidades podem ser exercitadas e, eventualmente, reconhecidas. Mesmo que não sejam desde logo reconhecidas, à medida que forem exercitadas as habilidades individuais para produzir textos (escritos, falados, iconográficos, fotográficos, televisivos e cinematográficos) e divulgá-los na internet ou usá-los com finalidade política ou lúdica colaborará para o desenvolvimento da sociedade. Na internet os acertos e os erros podem ser compartilhados, de maneira que tudo pode acabar virando estímulo ou reforço. Os artistas e os especialistas formados sob o signo da comunicação online tendem a ser mais ágeis e adaptáveis que seus colegas do passado.


Qualquer um que tenha o mínimo conhecimento de mitologia não pode desconsiderar o papel relevante que a internet já desempenha ou virá a desempenhar no desenvolvimento da humanidade. Por intermédio de um provedor gratuito e ao custo de uma ligação discada, o internauta está em condições de participar de movimentos virtuais globais ou transformá-los em realidades locais.


A criação de identidades e de convergência de propósitos através da internet é uma realidade. Isto transforma a rede de computadores num centro de re-ligação entre indivíduo e sua comunidade de eleição. A re-ligação é uma experiência mística e muitas vezes bastante agradável. Mesmo que seja terrificante, auxilia no processo de amadurecimento individual. Nesse sentido, pode-se dizer que a internet é mais do que um mercado, um fórum e uma biblioteca. Ela é mítica e mitologizante.


Incomodados


O filósofo Arthur Schopenhauer tinha uma verdadeira aversão por especialistas. Considerava-os mercadores, pois ‘sua ciência é um meio e não um fim’ (A arte de escrever, L&PM, 2005). Com alguma razão considerava que os diletantes estavam em condições de produzir algo digno de nota, porque ‘só se dedicará a um assunto com toda seriedade alguém que esteja envolvido de modo imediato e que se ocupe dele com amor, com amore’ (idem).


Durante séculos somente as pessoas ricas ou protegidas das muito ricas puderam se dedicar a um assunto por diletantismo. Com a internet, o diletantismo está ao acesso de todos. Nesse sentido, a rede é realmente revolucionária. Quanto mais cabeças pensarem e divulgarem idéias, maiores serão as probabilidades de que os verdadeiros gênios tenham sua genialidade aproveitada em benefício da humanidade.


Desde a antiguidade clássica milhões de pessoas criativas definharam amarguradas porque não puderam submeter suas idéias ao julgamento público. Agora que o público está ao alcance de todos, alguns privilegiados acostumados a ser tratados como únicos produtores culturais se mostram incomodados. A blogosfera será impiedosa com seus críticos, ignorando-os. Para compreender melhor este texto, retorne ao início. Assim, caso seja um especialista ou um leitor acostumado a dar crédito apenas aos especialistas, você poderá ignorar as afirmações de um inepto diletante. Caso contrário poderá considerar este texto uma modesta contribuição ao diletantismo virtual.

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Advogado