Estamos longe de uma política pública de distribuição de renda. A prova disso é o enaltecimento dos megaeventos, que nada mais representam do que a celebração da concentração de renda.
O que pode ser mais patético do que assistir a uma jovem bonita e com boa formação escolar chorando em frente ao Copacabana Palace, apenas porque gostaria de ter a oportunidade de ver de perto o Mick Jagger? Saber que a Prefeitura do Rio de Janeiro desembolsou 16% do orçamento destinado à cultura para promover o show dos Rolling Stones, grupo estrangeiro, um dos precursores do rock no mundo, que naturalmente não tem como faturar no frio que faz no Hemisfério Norte. Seria uma resposta, mas há outras.
Na noite do grande espetáculo, além de uma grávida que entrou em trabalho de parto e de 22 crianças perdidas, que faziam não se sabe o que num megaevento, não muito longe dali, na entrada de uma favela carioca, que obviamente não contava com os serviços de segurança pública necessários, as cabeças de dois jovens, decepadas por uma das facções que dominam o narcotráfico no Rio, eram exibidas em cima de um carro, enquanto os corpos, no chão, estavam dilacerados, com as vísceras à mostra.
A segurança e o atendimento de emergência durante o show foram um sucesso, segundo a mídia e a Polícia Militar. Às 7 da manhã toda a sujeira da Praia de Copacabana, quase 200 toneladas, já havia sido removida, mais um megainvestimento da Prefeitura. No mesmo horário, na discreta rua que dá acesso à favela, onde os corpos foram expostos, o sangue ainda manchava os paralelepípedos, horas depois de o IML ter levado os corpos. Alguma chuva há de dar conta dessa sujeira imprevista.
Mel Gibson, já pensou?
Como é possível, num passe de mágica e por algumas horas, garantir segurança e saúde para uma concentração de 1,5 milhão de pessoas e não ser feito o mesmo nos outros dias do ano? Deve ser porque é mais fácil controlar a manada humana reunida, limpar a sujeira concentrada, replantar em série todas as árvores arrancadas pelos fãs em catarse. Boa resposta, se a verdade não tivesse um viés mais importante: os lucros econômicos e políticos de se investir em megaeventos. Nero foi mesmo um gênio, se considerarmos o vigor de seus pensamentos e práticas, ainda em voga e tão rentáveis.
Mal acaba o circo carioca, regado a Rolling Stones, começa o dos paulistas, brindando ao U2. Milhares de fãs migram dos vários estados do Brasil para permanecer três dias na fila da compra de ingressos. Uma gaúcha, advogada, bonitinha, espicha-se toda para revelar a um repórter da TV Globo que daria tudo para receber um beijo na boca de um dos integrantes do U2.
Lembrei de uma colega, jornalista, que estava partindo para Nova York para ver se conseguia ser mais feliz. O drama dela na época, estávamos em 1989, era o fato de não conseguir se relacionar com alguém por mais de dois, três meses. Como já estava nos 34 anos, pesava a coisa dos relacionamentos fugazes, infrutíferos sob todos os pontos de vista. Estava eu lá dando uma força, quando ela, animadamente, soltou uma frase, meio exclamando, meio perguntando: já pensou se eu encontrar o Mel Gibson na Quinta Avenida? Sem pensar, respondi depressa: ora, não seja idiota, ele nem vai olhar para a tua cara. Ela se ofendeu com a franqueza da frase, dispensou o telefone de um amigo que ofereci e passou um mês em Nova York; não encontrou o Mel Gibson e até hoje está sem par. Diz que é falta de sorte ou destino, mas continua à espera de um príncipe, um homem idealizado. Da última vez que nos falamos revelou que riscou do caderninho os pretendentes que já tenham filhos com outras mulheres, também os que têm chulé, sem falar nos carecas. Ela rejeita os carecas desde os 34.
Afetos desviados
Minha colega sofre do Mal do Vapor, o mesmo mal que emana dessas almas depenadas que freqüentam megaeventos, investem em megaeventos, dependem de megaeventos, exploram megaeventos. O Mal do Vapor consiste em trocar prazeres genuínos, guiados pelo desejo, por prazeres fugazes, guiados pela aparência, pela imagem que não tem cheiro nem textura.
A pessoa que sofre do Mal do Vapor entra em êxtase facilmente, o coração acelera diante de um ícone do rock mundial, chega a chorar de paixão mas, diante de um ser humano de carne e osso, experimenta sensações de estranhamento ou até nojo, repulsa; vive uma dificuldade profunda na hora de fazer um mínimo contato verdadeiro, pele a pele. Por causa do Mal do Vapor, que a imprensa desconhece, muito menos registra, é que ocorrem pisoteios, empurrões, tapas na cara e até estupros nos megaeventos. O outro, o que está ao lado, é um competidor que merece ser punido, agredido, eliminado porque cada pessoa, entre milhares, sente-se especial e acredita piamente que se tiver a oportunidade de chegar perto do ídolo ele a escolherá. O Mal do Vapor, como toda doença, pode ser mais ou menos grave, crônico, agudo ou leve; o que o distingue é seu caráter social, globalizado poderíamos dizer.
O sucesso da imagem e das idealizações dá até para entender entre adolescentes, embora mesmo nessa faixa etária seja um desperdício de tempo investir demais naquilo ou naquele que nada dá em troca; nos vampiros megaculturais, sugadores de dinheiro, tempo e energia, que desviam os afetos verdadeiros e possíveis, fabricadores de prazeres reais, únicos nutridores para o corpo e a alma humanos.
Dá um lucro danado
Entre adultos o Mal do Vapor é coisa para psiquiatras, terapeutas, xamãs ou outros curadores da psique e do espírito. Como instrumento a ser utilizado em políticas públicas é coisa bem mais grave; quando misturado a interesses de grandes corporações midiáticas, já seria caso de clamar por intervenção jurídica.
A arte, tratada como bem de consumo, perde seu valor maior, que é o de educar. A cultura popular, substituída pela cultura do populacho, desvia os olhos do artista que podemos tocar e ver de perto, trocar idéias até, para o artista mascarado, a celebridade inalcançável, que não desperta arte, nem amor nem nada de bom nas pessoas, senão o pior dos sentimentos: a inveja. Aquela admiração toda que vemos nos olhos de quem sofre do Mal do Vapor, é pura inveja, é por inveja que se compram revistas de celebridades e se vive infeliz anos a fio por querer o que é do outro, o que é o outro. O Mal do Vapor é a doença social do não ser.
Megaeventos são joint-ventures de políticas públicas e privadas voltadas para o investimento em massa na despessoalização. O ser humano despessoalizado é infeliz ao perder a capacidade de criar e questionar, mas dá um lucro danado; é o pilar que sustenta o mercado. Por ele vale tudo, até a vista grossa da Justiça, que permite a participação de crianças nessas aglomerações.