Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Revisitando o poder da grande mídia

Os resultados das pesquisas CNT-Sensus, divulgados em 14/2, e DataFolha, em 22/2, tornam inescapáveis algumas importantes questões sobre a formação da opinião pública e as relações da mídia com a política em nossa sociedade. A expectativa dos institutos é que uma nova tendência parece estar se configurando. Ademais, a consolidação da imagem favorável do presidente Lula e de seu governo estaria ocorrendo – sobretudo, mas não exclusivamente – entre as camadas mais pobres da população, isto é, no amplo segmento que menos se expõe à mídia impressa e aos blogs e que tem como fonte quase exclusiva de informação o rádio e a televisão.


Apesar das pesquisas terem que ser consideradas pelo que realmente são, isto é, fotografias do momento, é irresistível a tentação de avançar desde logo algumas considerações, mesmo que sabidamente provisórias.


Como fazer sentido do que as pesquisas revelam?


Crise e impeachment


De maio a dezembro de 2005, a crise política dominou a cobertura da grande mídia. Além da gravidade dos fatos que vieram à tona, as ações da Polícia Federal e de várias Comissões de Inquérito instaladas no Congresso Nacional, controladas pelos partidos de oposição, alimentavam o noticiário diário.


Embora com alguns matizes importantes, o governo Lula, o próprio presidente e o seu partido, o PT, foram cotidianamente ‘enquadrados’ como patrocinadores de um esquema de corrupção sem precedentes na nossa história política. A principal revista do Grupo Abril, Veja – de maior circulação entre a classe média brasileira –, chegou mesmo a sugerir, inclusive graficamente em uma de suas capas (edição nº 1.917 de 10/8/2005), a semelhança entre Lula e seu governo com Collor e seu governo. O impeachment do presidente deveria ser o próximo e natural passo a ser dado pelo Congresso Nacional. E não foram poucos os editoriais, colunistas, analistas e jornalistas a decretarem o fim político do presidente Lula e do PT.


Como explicar, portanto, que, antes das várias CPIs apresentarem publicamente seus relatórios finais, as pesquisas estejam revelando uma recuperação dos índices de aprovação ao governo e ao presidente Lula semelhantes àqueles anteriores à crise política (abril/maio 2005)? Como explicar que Lula volte a liderar a corrida presidencial?


Sociedade fortalecida


Não é a grande mídia que constrói o cenário de representação (CR-P), onde as disputas políticas – sobretudo a eleitoral – ocorrem? Não são os colunistas e analistas políticos – na imprensa, no rádio e na televisão – os principais formadores da opinião pública?


A explicação não é simples. Há que se diferenciar as avaliações do governo, do presidente Lula e do PT. E, sobretudo, não se pode confundir avaliações conjunturais com consolidação hegemônica ou contra-hegemônica.


Feitas, portanto, as necessárias adaptações às circunstâncias de nossa realidade, há de se constatar um fato fundamental: o inegável fortalecimento da sociedade civil brasileira. Ao contrário do que ocorreu em outros países da América Latina, entre nós, esse processo vem se desenvolvendo desde o período autoritário e, sobretudo, nos últimos 15, 20 anos. Como desconhecer o enorme crescimento das ONGs e das inúmeras maneiras de organização dos movimentos sociais?


Mais interligações


Registre-se, por exemplo, as diversas formas de participação popular institucionalizadas pela Constituição de 1988. Nos últimos anos – sem que a grande mídia considerasse o fato digno de ser noticiado – foram criados, reestruturados e ampliados vários conselhos e realizadas conferências municipais, estaduais/regionais e nacionais, mobilizando milhões (isso mesmo, milhões) de cidadãos para discutir e propor políticas públicas em setores como Políticas Urbanas, Meio Ambiente, Direitos da Criança e do Adolescente, Segurança Alimentar e Nutricional, Esporte, Direitos Humanos, Saúde, Igualdade Racial, Ciência & Tecnologia e Inovação, Cultura e Saúde do Trabalhador. Tudo isso sem mencionar as diversas experiências de orçamento participativo implantadas em prefeituras municipais pelo país afora.


A construção hegemônica – e, portanto, também a contra-hegemônica – passa cada vez mais pelas mediações da sociedade civil organizada. A mídia – o mais onipresente e poderoso dos APH (aparelhos privados de hegemonia) – sofre cada vez mais as mediações das organizações da sociedade civil.


O que isso significa?


Na medida em que aumenta o feixe de relações sociais ao qual o cidadão comum está interligado, diminui o poder de influência direta da grande mídia. Há cada vez mais mediações entre o conteúdo da grande mídia e a forma de seu ‘consumo’ pela maioria da população.


Em nome dela


Sem insinuar comparações fáceis e consciente da enorme diferença entre os dois processos, é importante lembrar que foram as Forças Armadas e, sobretudo, a organização da sociedade civil e suas mediações que garantiram a sobrevivência política de Hugo Chavez diante da oposição articulada dos grupos dominantes de mídia na Venezuela.


Há cerca de 20 anos o pesquisador espanhol/colombiano Jesus Martin-Barbero já apontava nesta direção em seu hoje famoso livro De los medios a las mediaciones (G. Gili, 1987). A realidade brasileira parecia então muito distante de suas observações teóricas. Hoje, no entanto, a situação é outra.


Durante o período mais agudo da crise, alguns dos celebrados analistas políticos multimídia – com empáfia e arrogância – reivindicavam para si próprios não só o papel de formadores de opinião, mas de legítimos representantes da própria opinião pública. Eles reivindicavam falar em nome dela, a opinião pública! (cf. ‘Colunismo Político: A opinião privada tornada pública’ no OI 342 – ver remissão abaixo). Agora, já surgem argumentos que procuram desqualificar a opinião pública e insinuar que ela se deixa enganar pelo populismo de ‘medidas eleitoreiras’.


Crescentes mediações


O que as últimas pesquisas sugerem, no entanto, é o aprofundamento do abismo entre a opinião dominante na grande mídia impressa [sobretudo], e a opinião pública da maioria da população brasileira (cf. Urariano Mota, ‘Os desfazedores da opinião pública’ no OI 368, remissão abaixo).


A realidade que agora se delineia traz importantes implicações. As centenas de assessores – leitores inveterados de clippings da mídia impressa – e os profissionais que fazem assessoria de comunicação para políticos e autoridades certamente terão muito sobre o que refletir. Os celebrados colunistas/analistas da grande mídia mereceriam a atenção que a eles ainda se dedica como os principais ‘formadores da opinião pública’ do país?


A se confirmarem os resultados das últimas pesquisas de opinião, o poder da grande mídia no Brasil terá que ser reavaliado. Até que se conquiste o equilíbrio constitucional entre os sistemas público, privado e estatal, e o direito à comunicação seja reconhecido e praticado entre nós, a grande mídia continuará agendando os principais temas de debate público e o seu poder como ator político continuará enorme, eventualmente até mesmo determinante. Mas, com certeza, não mais inquestionável, pois sofrerá, cada vez mais, as crescentes mediações (contra-hegemônicas ou não) que proliferam na sociedade civil. Ainda bem.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)