“Sem papa e sem governo. Isso é um sonho”, disse o caricaturista Vauro, considerado o último moicano italiano por sua irredutível fé comunista, depois da renúncia de Ratzinger e das recentes eleições na Itália.
Já o octogenário diretor Ermanno Olmi,vencedor do Festival de Veneza de 1988 com o filme A lenda do santo beberão e também responsável por adaptar para o cinema o livro O diário da alma, de Angelo Roncalli, que viria a ser o papa João XXIII, disse estarmos diante de uma mudança histórica na Igreja e no mundo ocidental. Segundo ele, o conclave elegerá um êmulo de São Francisco que virá limpar os vícios aos quais o Vaticano se lançou e o novo governo da Itália terá que levar em conta o clamor dos pobres que crescem vertiginosamente neste país que segue sendo uma das economias mais desenvolvidas do planeta. Olmi previu que as surpresas do Vaticano e do resultado das eleições estão anunciando uma primavera política na Europa depois de anos de obscurantismo.
Dario Fo, prêmio Nobel de Literatura, não escondeu o entusiasmo diante do sucesso eleitoral do Movimento 5 Estrelas liderado por seu amigo Beppe Grillo. Para Fo, um cômico Grillo e seu movimento de base abriram uma nova perspectiva na Itália com seu programa de 20 pontos, permitindo a participação cidadã direta na política e criando um novo modo de tratar o meio ambiente, a cultura, os trabalhadores e, especialmente, os jovens e desocupados para quem, promete o programa, é imprescindível um salário- cidadão.
Cortes no orçamento
O panorama atual mostrado pelas estatísticas é pouco menos que terrível. Os desocupados chegam a seis milhões; os empresários se queixam que o Estado os submeteu à maior taxação já vista desde então, 68%; os operários e empregados vivem com medo de serem demitidos, não somente porque a recessão quebrou mais de mil fábricas por mês em 2012, mas porque os problemas de contaminação ambiental são crônicos e podem ser irreversíveis em vastas áreas dos arredores dos principais polos industriais, obrigando o fechamento iminente de mais atividades produtivas. É o caso da Ilva. A maior siderúrgica da Europa, localizada na província de Taranto, sul da Itália, está sob ameaça judicial de ser fechada. A falta de investimento em filtros e equipamentos adequados de depuração a levou ao limite de provocar uma catástrofe ambiental.
Para completar o panorama, a classe média está se proletarizando. Se sente atormentada pelos crescentes impostos sobre o patrimônio e está convencida de que está pagando o pato pelo descalabro geral.
Beppe Grillo denunciou durante a campanha eleitoral que a responsabilidade pelo colapso é dos partidos políticos, sem distinção, e da “casta” dos políticos profissionais. Especialmente do governo técnico do primeiro-ministro “Rigor Monti”. “Rigor” é o apelido que Grillo colocou em Monti pelos brutais cortes no orçamento a mando dos banqueiros, segundo Grillo, e da chanceler alemã, Angela Merkel. A crueldade de Monti e o apoio que lhe deram, até pouco antes das eleições, o PDL, de Berlusconi e, principalmente, o PD, de Bersani, seriam os motivos da indignação que levaram os italianos a votarem no Movimento 5 Estrelas.
Escolhido a dedo
Monti é para todos, quase unanimidade, o grande perdedor. Até dez meses atrás gozava de alto consenso de acordo com as pesquisas de opinião, mas se afundou ao impor as receitas neoliberais recomendadas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Central Europeu, presidido pelo italiano Draghi. O BCE, que emite o euro, é independente do poder político da União Europeia e dos Estados membros. O presidente é eleito pelos banqueiros e referendado pela UE.
Draghi e Monti, além de italianos, têm em comum terem sido diretores da agência de risco Goldmans&Sachs e, segundo GiulioTremonti, ex-ministro da Economia de Berlusconi, ainda jogam em equipe. Tremonti acusou Monti de consolidar o golpe que Draghi assestou contra o país quando, em 2011, “pôs uma arma na cabeça da Itália” obrigando ele e Berlusconi a assinarem a paridade do balanço do Estado, que significava o compromisso de cortar gastos essenciais, pensões e programas de bem-estar social, garantia exigida para a compra de títulos da dívida pública italiana por parte do BCE por meio do sistema bancário.
Por não se animarem a cumprir o prometido corte, Berlusconi e Tremonti foram obrigados a renunciar e “Rigor Monti”, sem nunca ter participado de uma eleição, foi escolhido a dedo pelo presidente Napolitano, com apoio do PDL de Berlusconi e do PD de Bersani. Assim, “Rigor” implementou as medidas de austeridade exigidas por Draghi e pelo BCE.
Custo da política
O certo é que o eleitorado repudiou sonoramente as receitas de “Rigor Monti”. As urnas expressaram claramente que os italianos não querem mais do mesmo porque se deram conta de que o remédio está matando o doente. Tampouco aceitam o governo da camaleônica direita que, como admitiu o próprio Tremonti, aceitou a brutal chantagem dos banqueiros e se calou.
Ficou claro também que o coquetel, ou o que seja, realizado entre o PD de Bersani e Rigor Monti foi desastroso para a centro-esquerda que, se quiser governar, vai precisar dos votos do M5Estrelas no parlamento e terá que aceitar as condições do movimento. Grillo rechaçou qualquer possibilidade de acordo. Se persistir o impasse, haverá nova eleição. Mas ainda há espaço para tratativas. O presidente Napolitano tem até 16 de março para convocar o parlamento a eleger um novo primeiro-ministro.
Nesse sentido, a CGIL, a maior confederação sindical italiana que aposta na formação de um governo com um programa mínimo que enfrente, sobretudo, as emergências sociais e do trabalho, interpretou o voto dos italianos como uma condenação à Europa do rigor e da austeridade, repudiou qualquer hipótese de governo técnico ou de grande coalizão entre PD e PDL, e propôs a redução significativa do custo da política. Poderia ser a base para um governo estável de centro-esquerda com apoio externo ou crítico do M5Estrelas, ou vice-versa.
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Mario Del Gaudio é jornalista uruguaio e vive em Gênova (Itália)