Polêmico, radical e inegavelmente carismático. O presidente Hugo Chávez governou a Venezuela por 14 anos, saindo vitorioso de quatro eleições consecutivas. Há quase dois anos lutava contra um câncer na região pélvica. Sua morte (5/3) causou grande comoção na Venezuela e despertou a solidariedade de líderes da região. Sempre controverso, Chávez apropriou-se do legado de Simón Bolívar, libertador da América espanhola. Promoveu uma onda de estatizações, elevou o PIB, diminuiu os índices de pobreza extrema e de desemprego. Por outro lado, o país viu crescer a dívida pública, a inflação e os índices de violência.
Desde o primeiro mandato, o presidente fomentou um clima de guerra civil com a mídia privada venezuelana. Jornais foram perseguidos e profissionais de imprensa o acusaram de autoritarismo. Chávez viveu um enfrentamento constante com os canais de televisão Venevisión, Globovisión e RCTV, que conspiraram em uma tentativa de golpe em 2002. A RCTV teve o pedido de renovação de concessão negado cinco anos depois. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil (12/3) discutiu o legado de Chávez e sua relação com os meios de comunicação. Em 2009, o programa gravou dois programas na Venezuela. Trechos das entrevistas com jornalistas chavistas e opositores sobre a tensa relação entre mídia e governo foram reexibidos na terça-feira.
Alberto Dines recebeu no programa dois especialistas em política venezuelana. No Rio de Janeiro, participou Rafael Araújo, professor de História e Relações Internacionais do Centro Universitário LA SALLE do Rio de Janeiro. Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rafael estuda o chavismo e a esquerda sul-americana e escreveu diversos artigos científicos sobre o tema. Em São Paulo, o programa contou com a presença de Renato Rovai, que é jornalista e professor. Mestre em comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), Rovai edita a Revista Fórum e escreveu Midiático Poder, o Caso Venezuela e a Guerrilha Informativa.
O embate em primeiro plano
Em editorial, antes do debate ao vivo, Dines ressaltou que a estratégia de confrontação adotada por Chávez após a tentativa de golpe de 2002 fraturou o país e o tornou quase ingovernável. “Grande parte da mídia venezuelana tratou Chávez morto como tratava Chávez vivo. Foi um erro. A mídia democrática não confronta. Informa, esclarece, explica, tenta convencer”, alertou Dines. “A Venezuela está a 3.800 quilômetros de Brasília, porém, uma Venezuela fragmentada fragmenta a América Latina e afeta o Brasil. Nossa mídia precisa curar-se do chavismo ou do antichavismo e esquecer a confrontação”, sublinhou.
A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou o ex-ministro Rubens Ricupero, que classificou a cobertura da morte do presidente venezuelano como maniqueísta. “Ou é preto ou é branco. Em geral, preto. Ele é representado mais como um demônio, um puro populista, um caudilho latino americano típico, violador das liberdades. Todos esses aspectos são verdadeiros, mas isso não explica a adoração que o povo venezuelano tinha por ele. Por que isso? Porque esses artigos esquecem de dizer que ele teve uma intuição de gênio que os outros partidos não tiveram, que foi olhar para as maiorias das periferias”.
Para o ex-ministro, a situação da Venezuela pode ser avaliada de diferentes ângulos. “De um lado, o fato de que ele, em termos de Direitos Humanos, liberdade e democracia, tentou construir um modelo novo que não é muito o modelo da democracia representativa, de eleições sucessivas. E o outro ponto fraco é que ele desorganizou a economia. Embora [Chávez] falasse muito que iria construir o socialismo do século XXI, na prática, a economia da Venezuela não mudou. É um estado rentista do petróleo. Isso é: vive basicamente da renda produzida pelo petróleo”, ponderou Ricupero.
Presidente midiático
Marcos Vinicius de Freitas, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), avalia que Chávez soube utilizar a mídia com maestria. “Ele era um presidente que a gente poderia dizer que soube manipular bem a mídia em favor da sua imagem e na construção da sua personalidade. É fácil de lembrar que quando o Chávez era presidente, por exemplo, ele utilizava um programa, que ele fazia aos sábados, chamado ‘Alô, presidente’. Nesse programa, ele basicamente tomava todas as medidas de governo que iriam ser realizadas na próxima semana”, ressaltou o professor.
A aproximação com Simón Bolívar também foi examinada: “Chávez tenta até na sua hora derradeira dizer que ele, semelhante a Simón Bolívar, não morreu, ele foi envenenado. Por quê? Quando eu quero criar a figura do mártir eu utilizo essa questão da agressão externa. Alguém envenena Chávez. Ele não morreu porque o câncer o matou, ele morreu porque ele foi envenenado pelo inimigo externo que ele combateu desde o primeiro dia”. Marcos Vinicius de Freitas acredita que o sucessor de Chávez terá dois grandes problemas: o primeiro é a frágil situação econômica venezuelana, e o segundo, conseguir alcançar o carisma do presidente.
Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sublinhou o caráter combativo do presidente venezuelano: “Hugo Chávez nunca se furtou a responder as provocações, a enfrentar de peito aberto todas essas críticas. Por isso, o clima sempre foi de muita animosidade, de muita tensão. Principalmente com a imprensa brasileira, com os grandes órgãos de imprensa do Brasil, que sempre procuraram mostrá-lo da pior maneira possível”.
Guerra declarada
Não houve diálogo entre governo, imprensa privada e sociedade, na opinião de Bernardo Kocher, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). “A imprensa privada fez do antichavismo uma bandeira quase que exclusiva e a crítica ao governo tornou-se algo básico. Por sua vez, o governo reagiu na mesma proporção, inibindo o funcionamento de diversas empresas privadas de comunicação. E também desenvolvendo um poderoso sistema de comunicação, seja ele tradicional, como rádio e televisão, seja ele mais moderno, como, por exemplo, o Twitter. O presidente Chávez tinha uma conta no microblog e a usava constantemente para passar mensagens aos seus seguidores, à sociedade de forma geral”, disse Kocher.
“Simón Bolívar foi apropriado pelo presidente Hugo Chávez como uma espécie de fundador da nação e também fundador de um projeto social. Ele digeriu Simón Bolívar no intuito de, em um segundo momento, diferenciar o socialismo que ele vinha trazendo. Era uma imagem que tinha uma carga muito pesada por causa da Guerra Fria. Ele procurou adaptar esse projeto socialista em função de uma figura histórica que tinha um passado honrado pelos chavistas e que foi apropriado para reinterpretar o socialismo que não era o projeto de Simón Bolívar”, explicou o professor. Para ele, Chávez literalmente “derramou o petróleo” em cima da população. Transformou a renda de petróleo em renda distribuída para a população através de bens e serviços como educação, saúde e habitação.
No debate ao vivo, Dines comentou que a sociedade venezuelana está dividida, incluindo as alas da esquerda. Chávez conseguia agregar, mas o seu mais provável sucessor nas eleições marcadas para 14 de abril, o vice-presidente Nicolás Maduro, indicado pelo próprio Chávez, pode não ter a mesma habilidade. Na opinião de Rafael Araújo, Chávez conseguia aglutinar diversas correntes políticas. Há a dúvida se Maduro conseguirá manter a unidade em torno do projeto do socialismo no século XXI – uma miscelânea de várias ideologias – encabeçado por Chávez. Além do carisma, o presidente usava os discursos como ferramenta. “Ele soube usar muito a sua capacidade de oratória e a mídia. A questão agora é se o Maduro terá essa capacidade”, questionou. Rafael acredita que, neste primeiro momento, a unidade está assegurada; no entanto, é preciso que o sucessor avance dentro do projeto chavista.
Mídia politizada
Dines chamou a atenção para o fato de que a maioria da imprensa brasileira não dá o devido destaque à participação da mídia venezuelana na tentativa de golpe de 2002. A partir daquele momento, as relações entre governo e veículos de comunicação descambaram para um clima de guerra civil. Para Rafael Araújo, a mídia venezuelana se politizou. Com os partidos políticos sem legitimidade, a mídia assumiu a tarefa de fazer oposição a Chávez. “Por isso, houve o discurso do governo de que a mídia tem poder político e econômico”, explicou o professor. Os meios de comunicação foram uma poderosa ferramenta durante o golpe de 2002, inclusive para esconder informações.
“Os principais veículos de comunicação tinham noticiado que o Chávez tinha assinado uma renúncia, quando ele não assinou. Ele sofreu um golpe, e um dos elementos fundamentais que o Chávez fez questão de manter naquele momento é que não assinaria a renúncia. Na verdade, a mídia manipulou uma informação. Os principais veículos na mídia impressa, como El Universal e El Nacional, que têm edições online, se nós acessarmos daqui, veremos que nos dias do golpe não há edição”, sublinhou. Rafael Araújo relembrou que, no momento do golpe, o canal RCTV transmitia o desenho animado Tom&Jerry, ao invés de informações sobre o grave momento político. Para combater a manipulação, posteriormente, o governo criou mecanismos para controlar a imprensa, o que acabou intensificando a polarização do país.
Após as eleições de 2006, quando o presidente conquistou mais de 60% dos votos, houve uma exacerbação do discurso revolucionário, que intensificou a confrontação de ideias. De acordo com Rafael Araújo, temas como as políticas sociais do governo, que, indiscutivelmente, melhoraram as condições de vida da população mais pobre venezuelana, entraram em campo. “A partir de então, ele vai fazer uma transformação política a partir do que ele supunha ser uma democracia participativa. E esses dois elementos – o político e o social – legitimaram o discurso revolucionário”, disse o professor.
Golpismo e manipulação
Na opinião de Renato Rovai, no cenário político após a morte de Hugo Chávez, diversas personalidades têm força no campo militar e podem auxiliar na transição para o sucessor. Rovai aposta que Nicolás Maduro será eleito, principalmente porque tem a chancela do ex-presidente, um campeão de popularidade. O jornalista contou que acompanhou de perto o golpe de 2002, tendo chegado à Venezuela poucos dias após o início do movimento. Rovai relatou que encontrou à venda, em uma banca de jornal, uma revista que ostentava na capa uma foto do opositor de Chávez, Gustavo Cisneros, com a faixa presidencial, e o título “Predestinado a ser presidente”. Portanto, já havia toda uma construção da mídia prevendo Chávez fora do poder.
Um dos depoimentos que o jornalista coletou naquele período revela o engajamento da mídia venezuelana no golpe. “Em uma reunião, onde tinha uma crise estabelecida, os militares diziam: ‘nós não temos mais meios como sustentar os golpes’. Um dos donos de TV teria dito: ‘Quem tem os meios somos nós’. Ou seja, os meios de comunicação foram o tempo todo colocados em favor do golpismo”. Outro exemplo foi a edição de reportagens sobre manifestações contrárias ao governo Chávez. Para parecer que mais pessoas haviam comparecido ao evento, os canais usavam imagens de arquivo. Assim, um protesto com duas mil pessoas aparentava ter a presença de cem mil opositores.
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Lilia Diniz é jornalista